sexta-feira, 31 de março de 2023

DA RELIGIÃO SEM NATUREZA AO FIM DO TEMPO CÍCLICO

 



Por Mircea Eliade

 

Os profetas não desaparecem nos últimos anos do Exílio e na época pós-exílica (cf. volume II). Mas a sua mensagem desenvolve aquilo a que se poderia chamar a “teologia da salvação” esboçada por Jeremias. É permitido, pois, julgar desde já o papel do profetismo na história religiosa de Israel.

Aquilo que, antes de mais nada, surpreende nos profetas é a crítica que fazem ao culto e a ferocidade com que atacam o sincretismo, ou seja, as influências cananeias, a que dão o nome de “prostituição”. Mas essa “prostituição”, contra a qual investem sem descontinuar, representa uma das mais difundidas formas da religiosidade cósmica. Específica aos agricultores, a religiosidade cósmica prolongava a mais elementar dialética do sagrado, especialmente a crença em que o divino se encarna, ou se manifesta, nos objetos e nos ritmos cósmicos. Ora, tal crença foi denunciada pelos fiéis de Javé como a idolatria por excelência, e isso desde a penetração na Palestina. Mas nunca a religiosidade cósmica foi tão selvagemente atacada. Os profetas acabaram conseguindo esvaziar a Natureza de toda a presença divina. Setores inteiros do mundo animal – os “lugares altos”, as pedras, as fontes, as árvores, certas colheitas, determinadas flores – serão denunciados como “impuros”, visto que conspurcados pelo culto das divindades cananeias da fertilidade*. A região “pura” e santa por excelência é apenas o deserto, pois foi lá que Israel permaneceu fiel ao seu Deus. A dimensão sagrada da vegetação e, em geral, das epifanias exuberantes da Natureza, será redescoberta bem tarde, no judaísmo medieval.

O culto, em primeiro lugar os sacrifícios cruentos, era igualmente criticado: não só ele era adulterado por elementos cananeus, como os sacerdotes e o povo consideravam a atividade ritual a forma perfeita de adoração. Ora, proclamam os profetas, inutilmente se procurava a Javé em seus santuários. Deus desdenha os sacrifícios, as festas e as cerimônias (cf., inter alia, Amós, 5:4-6, 14-15, 21-23): ele exige o direito e a justiça (5:24). Os profetas pré-exílicos jamais definiram qual devia ser a atividade cultual do fiel. O problema não tinha maior importância enquanto o povo não retornasse a Javé. Os profetas não tinham por objetivo a melhoria do culto, mas a transformação dos homens1. Só depois da queda de Jerusalém é que Ezequiel propõe um ofício divino reformado.

A dessacralização da Natureza, a desvalorização da atividade cultual, em síntese, a rejeição violenta e total da religiosidade cósmica, e sobretudo a importância decisiva atribuída à regeneração espiritual do indivíduo pelo retorno definitivo a Javé, eram a resposta dos profetas às crises históricas que ameaçavam a própria existência dos dois reinos judeus. O perigo era considerável e imediato. A “alegria de viver”, solidária de toda religião cósmica, era não apenas uma apostasia, era também ilusória, condenada a desaparecer na iminente catástrofe nacional. As formas tradicionais da religião cósmica, isto é, o mistério da fertilidade, a solidariedade dialética entre a vida e a morte, passavam a oferecer uma falsa segurança. Com efeito, a religião cósmica encorajava a ilusão de que a vida não se interrompe, e portanto de que a nação e o Estado podem sobreviver, por muito graves que sejam as crises históricas. Em outros termos, o povo e os altos dignitários, mas também os sacerdotes e os profetas otimistas estavam inclinados a assimilar as adversidades de ordem histórica às catástrofes naturais (seca, inundação, epidemias, abalos sísmicos etc). Ora, tais catástrofes nunca são totais ou definitivas. Contudo, os profetas pré-exílicos anunciavam não só a ruína do país e o desaparecimento do Estado; proclamavam ainda o risco do aniquilamento total da nação.

Os profetas reagiam contra o otimismo político oficial e atacavam a monarquia davídica por haver esta encorajado o sincretismo em vez de estabelecer o javismo como religião de Estado. O “futuro” que eles anunciavam era de fato iminente. Os profetas não cessavam de predizê-lo, a fim de poderem modificar o presente, transformando interiormente os fiéis. O apaixonado interesse que demonstravam pela política contemporânea era de ordem religiosa. Efetivamente, a marcha dos acontecimentos era suscetível de forçar a conversão sincera da nação e, portanto, a sua “salvação”, única possibilidade da sobrevivência de Israel na história. A realização das predições pronunciadas pelos profetas confirmava-lhes a mensagem, e, de maneira precisa, que os acontecimentos históricos eram obra de Javé. Em outras palavras, os acontecimentos históricos adquiriam uma significação religiosa, transformavam-se em “teofanias negativas”, em “ira” de Javé. Dessa maneira, eles revelavam a sua coerência interna, manifestando-se como a expressão concreta de uma só, única, vontade divina.

Assim, pela primeira vez, os profetas valorizam a história. Os acontecimentos históricos possuem, desse momento em diante, um valor em si mesmos, na medida em que são determinados pela vontade de Deus. Os fatos históricos tornam-se, assim, “situações” do homem em face de Deus, e como tais adquirem um valor religioso que nada, até então, podia assegurar-lhes. Por isso, “há verdade em afirmar que os hebreus foram os primeiros a descobrir a significação da história como epifania de Deus, e essa concepção, como era de esperar, foi retomada e ampliada pelo cristianismo”2. Observemos, contudo, que a descoberta da história enquanto teofania não será imediata e totalmente aceita pelo povo judeu, e que as antigas concepções persistirão ainda por muito tempo.

  

* Pela mesma razão, os missionários cristãos na Índia só aceitavam nas igrejas as flores que não eram utilizadas nas cerimônias hindus, isto é, as menos belas.

 

NOTAS

1 – Cf. Fohrer, History of Israelite Religion, p. 278.

2 – Cf. Eliade, Le Mythe de l’eternel retour, p. 122s. Sobre a “salvação” do tempo, sua “valorização” no âmbito da história santa israelita, ver ibid., p. 124s.

 

REFERÊNCIA:

ELIADE, Mircea. História das Crenças e das Ideias Religiosas, v. I: da Idade da Pedra aos mistérios de Elêusis. Tradução de Roberto Cortes de Lacerda. Rio de Janeiro: Zahar, 2010. p. 334-336.

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