Por
Mircea Eliade
Os profetas não desaparecem nos últimos anos do Exílio e na época pós-exílica (cf. volume II). Mas a sua mensagem desenvolve aquilo a que se poderia chamar a “teologia da salvação” esboçada por Jeremias. É permitido, pois, julgar desde já o papel do profetismo na história religiosa de Israel.
Aquilo que, antes de mais nada, surpreende nos profetas é a crítica que fazem ao culto e a ferocidade com que atacam o sincretismo, ou seja, as influências cananeias, a que dão o nome de “prostituição”. Mas essa “prostituição”, contra a qual investem sem descontinuar, representa uma das mais difundidas formas da religiosidade cósmica. Específica aos agricultores, a religiosidade cósmica prolongava a mais elementar dialética do sagrado, especialmente a crença em que o divino se encarna, ou se manifesta, nos objetos e nos ritmos cósmicos. Ora, tal crença foi denunciada pelos fiéis de Javé como a idolatria por excelência, e isso desde a penetração na Palestina. Mas nunca a religiosidade cósmica foi tão selvagemente atacada. Os profetas acabaram conseguindo esvaziar a Natureza de toda a presença divina. Setores inteiros do mundo animal – os “lugares altos”, as pedras, as fontes, as árvores, certas colheitas, determinadas flores – serão denunciados como “impuros”, visto que conspurcados pelo culto das divindades cananeias da fertilidade*. A região “pura” e santa por excelência é apenas o deserto, pois foi lá que Israel permaneceu fiel ao seu Deus. A dimensão sagrada da vegetação e, em geral, das epifanias exuberantes da Natureza, será redescoberta bem tarde, no judaísmo medieval.
O culto, em primeiro lugar os sacrifícios
cruentos, era igualmente criticado: não só ele era adulterado por elementos
cananeus, como os sacerdotes e o povo consideravam a atividade ritual a forma
perfeita de adoração. Ora, proclamam os profetas, inutilmente se procurava a
Javé em seus santuários. Deus desdenha os sacrifícios, as festas e as
cerimônias (cf., inter alia, Amós, 5:4-6, 14-15, 21-23): ele exige o
direito e a justiça (5:24). Os profetas pré-exílicos jamais definiram qual
devia ser a atividade cultual do fiel. O problema não tinha maior importância
enquanto o povo não retornasse a Javé. Os profetas não tinham por objetivo a
melhoria do culto, mas a transformação dos homens1. Só depois da
queda de Jerusalém é que Ezequiel propõe um ofício divino reformado.
A dessacralização da Natureza, a desvalorização
da atividade cultual, em síntese, a rejeição violenta e total da religiosidade
cósmica, e sobretudo a importância decisiva atribuída à regeneração espiritual
do indivíduo pelo retorno definitivo a Javé, eram a resposta dos profetas às
crises históricas que ameaçavam a própria existência dos dois reinos judeus. O
perigo era considerável e imediato. A “alegria de viver”, solidária de toda
religião cósmica, era não apenas uma apostasia, era também ilusória, condenada
a desaparecer na iminente catástrofe nacional. As formas tradicionais da
religião cósmica, isto é, o mistério da fertilidade, a solidariedade dialética
entre a vida e a morte, passavam a oferecer uma falsa segurança. Com efeito, a religião
cósmica encorajava a ilusão de que a vida não se interrompe, e portanto de que
a nação e o Estado podem sobreviver, por muito graves que sejam as crises
históricas. Em outros termos, o povo e os altos dignitários, mas também os
sacerdotes e os profetas otimistas estavam inclinados a assimilar as
adversidades de ordem histórica às catástrofes naturais (seca, inundação,
epidemias, abalos sísmicos etc). Ora, tais catástrofes nunca são totais ou
definitivas. Contudo, os profetas pré-exílicos anunciavam não só a ruína do
país e o desaparecimento do Estado; proclamavam ainda o risco do aniquilamento
total da nação.
Os profetas reagiam contra o otimismo político
oficial e atacavam a monarquia davídica por haver esta encorajado o sincretismo
em vez de estabelecer o javismo como religião de Estado. O “futuro” que eles
anunciavam era de fato iminente. Os profetas não cessavam de predizê-lo, a fim
de poderem modificar o presente, transformando interiormente os fiéis. O apaixonado
interesse que demonstravam pela política contemporânea era de ordem religiosa.
Efetivamente, a marcha dos acontecimentos era suscetível de forçar a conversão
sincera da nação e, portanto, a sua “salvação”, única possibilidade da
sobrevivência de Israel na história. A realização das predições pronunciadas
pelos profetas confirmava-lhes a mensagem, e, de maneira precisa, que os acontecimentos
históricos eram obra de Javé. Em outras palavras, os acontecimentos históricos
adquiriam uma significação religiosa, transformavam-se em “teofanias negativas”,
em “ira” de Javé. Dessa maneira, eles revelavam a sua coerência interna,
manifestando-se como a expressão concreta de uma só, única, vontade
divina.
Assim, pela primeira vez, os profetas valorizam
a história. Os acontecimentos históricos possuem, desse momento em diante,
um valor em si mesmos, na medida em que são determinados pela vontade de
Deus. Os fatos históricos tornam-se, assim, “situações” do homem em face de
Deus, e como tais adquirem um valor religioso que nada, até então, podia
assegurar-lhes. Por isso, “há verdade em afirmar que os hebreus foram os
primeiros a descobrir a significação da história como epifania de Deus, e essa
concepção, como era de esperar, foi retomada e ampliada pelo cristianismo”2.
Observemos, contudo, que a descoberta da história enquanto teofania não será
imediata e totalmente aceita pelo povo judeu, e que as antigas concepções
persistirão ainda por muito tempo.
*
Pela mesma razão, os missionários cristãos na Índia só aceitavam nas igrejas as
flores que não eram utilizadas nas cerimônias hindus, isto é, as menos belas.
NOTAS
1
– Cf. Fohrer, History of Israelite Religion, p. 278.
2
– Cf. Eliade, Le Mythe de l’eternel retour, p. 122s. Sobre a “salvação”
do tempo, sua “valorização” no âmbito da história santa israelita, ver ibid.,
p. 124s.
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