sexta-feira, 26 de abril de 2024

LIBIDO DOMINANDI

 

 

Baghavad-gītā, Capítulo 3, verso 39:

 

आवृतं ज्ञानमेतेन ज्ञानिनो नित्यवैरिणा

कामरूपेण कौन्तेय दुष्पूरेणानलेन ३९

 

āvṛtaṁ jñānam etena
jñānino nitya-vairiṇā
kāma-rūpeṇa kaunteya
duṣpūreṇānalena ca

 

Assim, a consciência pura do ser vivo está coberta por seu eterno inimigo na forma de luxúria, a qual nunca se satisfaz e arde como o fogo.

 
Trecho da explicação de Śrīla Prabhupāda:
 

Está dito no Manu-smṛti que não se pode satisfazer a luxúria com nenhuma quantidade de prazer dos sentidos, da mesma forma que o fogo nunca se extingue através de um suprimento constante de combustível. No mundo material, o sexo é o centro de todas as atividades, e desse modo este mundo material é chamado maithunya-āgāra, ou seja, as algemas da vida sexual. Nas penitenciárias comuns os criminosos são mantidos atrás das grades; similarmente, os criminosos que são desobedientes às leis do Senhor são algemados pela vida sexual.

 

* * * * * * * * * * * * * * *

 

Thus, a man’s pure consciousness is covered by his eternal enemy in the form of lust, which is never satisfied and which burns like fire.

 

Excerpt from Śrīla Prabhupāda’s purport:


It is said in the Manu-smṛti that lust cannot be satisfied by any amount of sense enjoyment, just as fire is never extinguished by a constant supply of fuel. In the material world, the center of all activities is sex, and thus this material world is called maithuṇya-āgāra, or the shackles of sex life. In the ordinary prison house, criminals are kept within bars; similarly, the criminals who are disobedient to the laws of the Lord are shackled by sex life.

 
REFERÊNCIAS:
PRABHUPĀDA, A. C. Bhaktivedanta Swami. Bhagavad-gītā as it is. With original Sanskrit text, Roman transliteration, English equivalents, translation and elaborate purpots. Nova York: Collier Books, 1972. p. 206-207.
 
PRABHUPĀDA, A. C. Bhaktivedanta Swami. Bhagavad-gītā como ele é. 1. ed. São Paulo: The Bhaktivedanta Book Trust, 1976. p. 156-157.

quinta-feira, 25 de abril de 2024

AS DISPUTAS - 2

 


Buda


O MELHOR – PARAMATTHAKA SUTTA
 

A pessoa que tem preconceitos favoráveis a determinado sistema filosófico, os tem também contrários a outros sistemas. Uma pessoa assim disputa e não consegue vencer o motivo da disputa.

Ela se apega a tudo o que parece “bom”, que soe “bem”. Ela se apega às ações que em particular lhe pareçam boas, a tudo, enfim, quanto pense ser bom e, ao fazê-lo, rotula as demais coisas de más.

Todos os que possuem experiência nesse campo concordam em que o homem que rotula uma coisa deverá tornar-se, por isso mesmo, incapaz de vê-la como naturalmente é. É por este motivo que o indivíduo disciplinado não deve dar colorido ao que vê, nem ao que ouve, devendo limitar-se à contemplação do fato em si. Também não deve basear a sua fé na virtude, ou nas vitórias que alcance, ou na tradição.

Ele não se deve fundamentar num sistema organizado de filosofia, como também deve mostrar-se favorável a qualquer deles, quer por suas palavras, quer por suas ações. Não se considera “melhor”, nem “pior” do que os outros e nem mesmo “igual”.

Livre de preconceitos e de simpatias, e sem se deixar influenciar por convenções, o indivíduo disciplinado não pertence a qualquer religião formal, nem a qualquer seita. Ele não se escraviza a regras preestabelecidas, quaisquer que elas sejam.

Para ele não mais se faz necessário qualquer esforço no sentido de transformar-se nisto ou naquilo, tanto neste mundo quanto no próximo. Além disso, deixa de estudar as diversas filosofias por não mais carecer do consolo que elas possam oferecer.

Com relação às coisas que vê e que ouve, mantém-se inatingível pelo preconceito; um brâmane como esse nunca se deixará levar, nunca se deixará iludir.

Nada há que aceite, nada há que prefira e não se prende a nenhuma filosofia, em particular. Não é por suas virtudes ou por seus feitos gloriosos que o verdadeiro brâmane há de atingir a outra margem para de lá, nunca mais voltar. (Sutta Nipata, Atthaka 5.)*

 

*Os restos do Sutta Nipata, Atthaka 5, 8, 11, 12 foram traduzidos pelo Prof. Herbert Wilkes e Dr. Gil Fortes da obra do Bhikkhu Sri Y. Nyana.

 

REFERÊNCIA:
BUDA. O MELHOR: PARAMATTHAKA SUTTA. In: SILVA, Georges da; HOMENKO, Rita. Budismo: psicologia do autoconhecimento (o caminho da correta compreensão). São Paulo: Pensamento, 1982. p. 281-282.

quarta-feira, 24 de abril de 2024

AUTOCONTROLE

 



Por Epicteto
 

Quando apreenderes pela inteligência uma ideia de algum prazer, guarda-te, como no caso de outras ideias, para não seres levado por ela; aguarda algum tempo em relação à coisa, permitindo-te alguma demora. Na sequência, pensa em ambos os períodos de tempo, o momento em que gozarás o prazer e o momento posterior, uma vez findo o gozo, no qual, mudando de opinião, te arrependerás e te condenarás; e opõe a esses dois momentos o quanto experimentarás de alegria e autoaprovação se abrires mão disso. Entretanto, caso surja uma ocasião propicia para partires para a ação, acautela-te para não seres vencido por sua doçura, por ser agradável e por sua sedução; opõe a isso o pensamento de quão preferível é estar consciente de que conquistaste uma vitória nessa situação.

 

REFERÊNCIA:
EPICTETO. Manual de Epicteto: a arte de viver melhor. Tradução: Edson Bini. 1. Ed. São Paulo: Edipro, 2021. p. 69

terça-feira, 23 de abril de 2024

AS DISPUTAS

 

SERMÃO A PASURA SOBRE AS DISCUSSÕES: PASURA SUTTA
 
Buda
 

Algumas pessoas costumam afirmar: “Esta doutrina é a que torna os homens puros”, enquanto outras dizem: “Aquela outra doutrina é que dá pureza.” Cada qual considera sua própria doutrina a única certa. As pessoas assim perdem a noção do razoável e começam a discutir entre si, chamando-se tolas umas às outras e recorrendo a velhos e repetidos argumentos; e assim é que, procurando angariar elogios, apresentam-se como autoridades no assunto. Esmagar o opositor é para elas uma verdadeira delícia. Têm pavor de ser derrotadas pela dialética alheia; ao se sentirem vencidas no debate, tais pessoas logo se mostram aborrecidas e irritadas, ao mesmo tempo em que procuram, a todos os instantes, envergonhar o rival. Se a opinião dos que ouvem lhes for desfavorável, logo se afligem e passam a guardar rancor a seu adversário.

Em alguns casos, essas contendas chegam a provocar brigas e até pancadaria.

Evitai, portanto, as disputas, pois que os elogios delas oriundos são inúteis, de nada valem. O vencedor dessas querelas enche-se de orgulho e se exalta. O elogio sobe-lhe, então, à cabeça. A semelhante orgulho segue-se, habitualmente, uma queda, pois o disputante agora se excede e na sua arrogância torna-se intolerável. Ao verdes isto, renunciai às disputas, pois que elas jamais conduzem à pureza.

Da mesma forma como o campeão real vai destemidamente lançando por aí seu desafio, assim também é que tu deves prosseguir, meu herói, embora não se trate aqui de nenhum combate. Quando os adeptos de um determinado partido começam a discutir, cada um deles convencido de que seu partido é que tem razão, dizei-lhes, sem qualquer cerimônia e bem claramente, que vós não estais interessados em discussões. Mas que poderás tu dizer, Pasura, aos que seguem seu caminho sem jamais enunciarem qualquer teoria própria em oposição às tuas, uma vez que eles não se apegam a qualquer conceito?

Cheio de confiança em tuas próprias teorias vieste aqui, Pasura, numa tentativa de vencer com elas um ser perfeito, mas não conseguiste acompanhar-lhe o ritmo, não é?... (Sutta Nipata, Atthaka 8.)

 

REFERÊNCIA:
BUDA. SERMÃO A PASURA SOBRE AS DISCUSSÕES: PASURA SUTTA. In: SILVA, Georges da; HOMENKO, Rita. Budismo: psicologia do autoconhecimento (o caminho da correta compreensão). São Paulo: Pensamento, 1982. p. 282-283.

quarta-feira, 3 de abril de 2024

ONILÉ, OS ORIXÁS E A NATUREZA

 

 

Onilé era a filha mais recatada e discreta de Olodumare.

Vivia trancada em casa do pai e quase ninguém a via.

Quase nem se sabia de sua existência.

Quando os orixás seus irmãos se reuniam no palácio do grande pai para as grandes audiências em que Olodumare comunicava suas decisões, Onilé fazia um buraco no chão e se escondia, pois sabia que as reuniões sempre terminavam em festa, com muita música e dança ao ritmo dos atabaques. Onilé não se sentia bem no meio dos outros.

Um dia o grande deus mandou os seus arautos avisarem: haveria uma grande reunião no palácio e os orixás deviam comparecer ricamente vestidos, pois ele iria distribuir entre os filhos as riquezas do mundo e depois haveria muita comida, música e dança.

Por todo os lugares os mensageiros gritaram esta ordem e todos se prepararam com esmero para o grande acontecimento.

Quando chegou por fim o grande dia, cada orixá dirigiu-se ao palácio na maior ostentação, cada um mais belamente vestido que o outro, pois este era o desejo de Olodumare.

Iemanjá chegou vestida com a espuma do mar, os braços ornados de pulseiras de algas marinhas, a cabeça cingida por um diadema de corais e pérolas, o pescoço emoldurado por uma cascata de madrepérola. Oxóssi escolheu uma túnica de ramos macios, enfeitada de peles e plumas dos mais exóticos animais. Ossaim vestiu-se com um manto de folhas perfumadas. Ogum preferiu uma couraça de aço brilhante, enfeitada com tenras folhas de palmeira. Oxum escolheu cobrir-se de ouro, trazendo nos cabelos as águas verdes dos rios.

As roupas de Oxumarê mostravam todas as cores, trazendo nas mãos os pingos frescos da chuva. Iansã escolheu para vestir-se um sibilante vento e adornou os cabelos com raios que colheu da tempestade. Xangô não fez por menos e cobriu-se com o trovão.

Oxalá trazia o corpo envolto em fibras alvíssimas de algodão e a testa ostentando uma nobre pena vermelha de papagaio. E assim por diante.

Não houve quem não usasse toda a criatividade para apresentar-se ao grande pai com a roupa mais bonita. Nunca se vira antes tanta ostentação, tanta beleza, tanto luxo.

Cada orixá que chegava ao palácio de Olodumare provocava um clamor de admiração, que se ouvia por todas as terras existentes.

Os orixás encantaram o mundo com suas vestes. Menos Onilé.

Onilé não se preocupou em vestir-se bem. Onilé não se interessou por nada.

Onilé não se mostrou para ninguém.

Onilé recolheu-se a uma funda cova que cavou no chão.

Quando todos os orixás haviam chegado, Olodumare mandou que fossem acomodados confortavelmente, sentados em esteiras dispostas ao redor do trono.

Ele disse então à assembleia que todos eram bem-vindos.

Que todos os filhos haviam cumprido seu desejo e que estavam tão bonitos que ele não saberia escolher entre eles qual seria o mais vistoso e belo. Tinha todas as riquezas do mundo para dar a eles, mas nem sabia como começar a distribuição.

Então disse Olodumare que os próprios filhos, ao escolherem o que achavam o melhor da natureza, para com aquela riqueza se apresentar perante o pai, eles mesmos já tinham feito a divisão do mundo.

Então Iemanjá ficava com o mar, Oxum com o ouro e os rios.

A Oxóssi deu as matas e todos os seus bichos, reservando as folhas para Ossaim.

Deu a Iansã o raio e a Xangô o trovão.

Fez Oxalá dono de tudo que é branco e puro, de tudo que é o princípio, deu-lhe a criação. Destinou a Oxumarê o arco-íris e a chuva.

A Ogum deu o ferro e tudo o que se faz com ele, inclusive a guerra.

E assim por diante.

Deu a cada orixá um pedaço do mundo, uma parte da natureza, um governo particular. Dividiu de acordo com o gosto de cada um.

E disse que a partir de então cada um seria o dono e governador daquela parte da natureza.

Assim, sempre que um humano tivesse alguma necessidade relacionada com uma daquelas partes da natureza, deveria pagar uma prenda ao orixá que a possuísse.

Pagaria em oferendas de comida, bebida ou outra coisa que fosse da predileção do orixá.

Os orixás, que tudo ouviram em silêncio, começaram a gritar e a dançar de alegria, fazendo um grande alarido na corte.

Olodumare pediu silêncio, ainda não havia terminado.

Disse que faltava ainda a mais importante das atribuições. Que era preciso dar a um dos filhos o governo da Terra, o mundo no qual os humanos viviam e onde produziam as comidas, bebidas e tudo o mais que deveriam ofertar aos orixás.

Disse que dava a Terra a quem se vestia da própria Terra. Quem seria? perguntavam-se todos?

“Onilé”, respondeu Olodumare. “Onilé?” todos se espantaram.

Como, se ela nem sequer viera à grande reunião? Nenhum dos presentes a vira até então.

Nenhum sequer notara sua ausência.

“Pois Onilé está entre nós”, disse Olodumare e mandou que todos olhassem no fundo da cova, onde se abrigava, vestida de terra, a discreta e recatada filha. Ali estava Onilé, em sua roupa de terra.

Onilé, a que também foi chamada de Ilê, a casa, o planeta. Olodumare disse que cada um que habitava a Terra pagasse tributo a Onilé, pois ela era a mãe de todos, o abrigo, a casa. A humanidade não sobreviveria sem Onilé. Afinal, onde ficava cada uma das riquezas que Olodumare partilhara com filhos orixás? “Tudo está na Terra”, disse Olodumare.

“O mar e os rios, o ferro e o ouro, Os animais e as plantas, tudo”, continuou.

“Até mesmo o ar e o vento, a chuva e o arco-íris, tudo existe porque a Terra existe, assim como as coisas criadas para controlar os homens e os outros seres vivos que habitam o planeta, como a vida, a saúde, a doença e mesmo a morte”. Pois então, que cada um pagasse tributo a Onilé, foi a sentença final de Olodumare.

Onilé, orixá da Terra, receberia mais presentes que os outros, pois deveria ter oferendas dos vivos e dos mortos, pois na Terra também repousam os corpos dos que já não vivem. Onilé, também chamada Aiê, a Terra, deveria ser propiciada sempre, para que o mundo dos humanos nunca fosse destruído.

Todos os presentes aplaudiram as palavras de Olodumare. Todos os orixás aclamaram Onilé.

Todos os humanos propiciaram a mãe Terra.

E então Olodumare retirou-se do mundo para sempre e deixou o governo de tudo por conta de seus filhos orixás1.

 

1 – Narrado pelo oluô Agenor Miranda Rocha, em pesquisa de campo no Rio de Janeiro, em 1999. Fragmentos em Wande Abimbola (1977, p. 111; 1997, p. 67-68). Versão apresentada em Prandi (2001, p. 410-415).

 
 
REFERÊNCIA:
PRANDI, Reginaldo. Os orixás e a natureza. Estudos Afro-Brasileiros, v. 3, n. 2, p. 285-307, 9 ago. 2022.

MISTÉRIO

 

Por Florbela Espanca
 

Mistério

 
Gosto de ti, ó chuva, nos beirados,
Dizendo coisas que ninguém entende!
Da tua cantilena se desprende
Um sonho de magia e de pecados.
 
Dos teus pálidos dedos delicados
Uma alada canção palpita e ascende,
Frases que a nossa boca não aprende
Murmúrios por caminhos desolados.
 
Pelo meu rosto branco, sempre frio,
Fazes passar o lúgubre arrepio
Das sensações estranhas, dolorosas...
 
Talvez um dia entenda o teu mistério...
Quando, inerte, na paz do cemitério,
O meu corpo matar a fome às rosas!
 

Florbela Espanca, in “Charneca em Flor”

 
 

Não Ser

 
Quem me dera voltar à inocência
Das coisas brutas, sãs, inanimadas,
Despir o vão orgulho, a incoerência:
– Mantos rotos de estátuas mutiladas!
 
Ah! arrancar às carnes laceradas
Seu mísero segredo de consciência!
Ah! poder ser apenas florescência
De astros em puras noites deslumbradas!
 
Ser nostálgico choupo ao entardecer,
De ramos graves, plácidos, absortos
Na mágica tarefa de viver!
 
Ser haste, seiva, ramaria inquieta,
Erguer ao sol o coração dos mortos
Na urna de oiro duma flor aberta!...