domingo, 31 de janeiro de 2016

DANTE ALIGHIERI



A publicação a seguir é a compilação de dois textos do autor sobre o mesmo tema, um publicado em revista impressa em 2002 e outro publicado na internet em 2009. Como já frisamos em publicações anteriores, neste blog apresentamos textos baseados na história oficial e na hiero-história, o que não significa dizer que acreditamos em todos os dados desta última, porém estes devem ser divulgados para conhecimento do pesquisador sincero, o qual, certamente, fará o pertinente esforço para distinguir o que é lenda do que é realidade. Boa leitura!


Por Adílio Jorge Marques*

“Non Nobis, Domine, Non Nobis, Sed Nomine Tuo da Gloriam”


A VIDA

Dante Alighieri nasceu em Florença, Itália, em maio ou 5 junho de 1265, filho de Dona Bella e de Aldighiero Alighieri, vindo a falecer em 13 ou 14 de setembro de 1321, em Ravena. É considerado um dos expoentes da literatura, ao nível de Shakespeare. De família nobre, dedicou-se desde cedo aos estudos, sendo que Brunetto Latini foi um dos seus mestres. Estudou letras e ciências, desenho, música e, mais tarde, teologia.

Desde moço participou da vida política da sua cidade. Engajou-se na cavalaria republicana na batalha de Campaldino ocorrida em 11 de junho de 1289 contra os Gibelinos. Desejava seguir carreira política, e como era necessário pertencer a uma corporação para conseguir cargos públicos, Dante se inscreveu na dos médicos e farmacêuticos. Sua atuação na vida pública foi brilhante e marcante. Conforme diz Boccaccio, em Florença não se tomava nenhuma deliberação sem que ele desse a sua opinião. Várias vezes foi embaixador da República, pertencente do Conselho do Estado e, em 1300, obteve o cargo de “Priore” ou Prior, que era a suprema magistratura política florentina. Segundo ele mesmo disse em uma de suas cartas, contudo, aí começaram suas “desgraças”.

A guerra em Florença entre Guelfos e Gibelinos (os primeiros pertencentes à Aristocracia local e pró-Papal, e os segundos ligados aos interesses populares apoiados secretamente pelos Templários) era muito violenta. Dante era originalmente um Guelfo, inclusive por ser de família nobre. Os Guelfos, porém, se dividiram em duas facções: Brancos e Pretos. Como os Pretos causavam muitos conflitos na cidade, os Priores (e entre eles Dante), resolveram exilar alguns dos líderes. Estes eram pertencentes a ilustres famílias de Florença e, por vingança, os Pretos convenceram Carlos de Valois, irmão de Felipe, o Belo, que passava por Florença, e ao Papa Bonifácio VIII, de que os Brancos (e quem os ajudasse, como Dante) eram inimigos da França e de Roma. Felipe IV, o Rei causador da perseguição aos Cavaleiros Templários pouco tempo depois (1307).

Apesar de enviarem ao Papa embaixadores, entre eles Dante, para desmentir o que foi dito e para que Florença não fosse entregue oficialmente aos Pretos, os Brancos não conseguiram o efeito desejado. Enquanto Bonifácio VIII mantinha os embaixadores na expectativa de ser favorável a eles, Carlos de Valois empossou os Pretos no comando da cidade. Esta entrou em um verdadeiro período de caos. Ao retornar, Dante ficou sabendo que seus inimigos o acusavam de ser Gibelino e de ter se aproveitado de dinheiro público. Foi condenado a pagar uma pesada multa, sendo exilado e tendo suas possessões depredadas. Mudou frequentemente de cidade, servindo a vários senhores. Assim viveu os últimos anos de sua vida, morrendo aos 56 anos, em Ravena.


SUAS OBRAS

A obra poética de Dante se prende, na sua maior parte, ao seu amor puramente espiritual, um amor ao melhor estilo do ágape grego, por Beatriz de Folco Portinari. Ele a conheceu quando tinha nove anos e ela apenas oito. Tornou a vê-la depois de mais nove anos e, após, mais algumas poucas vezes, pois Beatriz casou-se com Simon de Bardi, vindo a morrer em 1290. Embora Dante também se casasse em 1291 com Gemma Donati e com ela tivesse três filhos, o amor por Beatriz continuou a inspirá-lo e às suas obras pelo resto de sua vida.

De algumas de suas obras mais importantes e marcantes podemos tecer as seguintes considerações:

A maior parte das canções, dos sonetos e das baladas que constituem o “Canzoniere” dantesco são dedicados à sua eterna amada Beatriz, e foram escritos numa época em que Dante esteve envolvido com os trovadores líricos medievais, tais como os “Fiéis de Amor”.

A “Ode Nova” – 1239 é uma história do seu diáfono amor por Beatriz, composto de vários sonetos dedicados a ela.

Dante escreveu também a “Vita Nova”, uma história dos seus amores com uma Beatriz divinizada, texto que inspira os Templários de todos os tempos, já que o amor espiritual de Dante por uma Dama era um pretexto ou exemplo do amor cavaleiresco por Nossa Senhora.

A “Divina Comédia” (iniciada entre 1307 e 1314 e terminada pouco antes de sua morte em 1321) é uma das maiores obras literárias da humanidade, sendo a obra mais conhecida do personagem deste texto. Prende-se também ao seu amor por Beatriz, sendo influenciada pelos acontecimentos de sua vida. Para muitos mitólogos e Cavaleiros de ontem e de hoje, a “Divina Comédia” é uma alegoria metafísica onde se retratam as provas iniciáticas dos Templários em relação à humanidade e mesmo em relação à própria caminhada espiritual de cada ser. Talvez uma das provas disso esteja já no Canto I do primeiro livro (Inferno), verso I, no qual Dante diz: “A meio do caminho desta vida…”. Ou seja, na metade da vida humana, provavelmente a idade de 35 anos. Segundo historiadores, estudiosos da cronologia, a experiência que assim dá origem ao poema situa-se por volta do ano 1300, além de ser o ano em que Dante assume o priorado é, segundo muitos, o ano em que ele próprio foi iniciado na Ordem do Templo, mais precisamente em Florença no mês de maio.

Outro detalhes curioso, e que talvez corrobore ou indique esta filiação com os Templários, é o fato da Divina Comédia, ter sido iniciada entre 1307 e 1314, pois foi justamente nesta época, 1307, que começaram as perseguições à Ordem, deflagradas por Felipe, o Belo, rei da França, com a conivência do Papa Clemente V. Além disso, 1314 é o ano em que o último Grão-Mestre Templário, Jacques de Molay, juntamente com mais um Preceptor da Ordem, são queimados vivos em praça pública pela Santa Inquisição, à frente da Catedral de Notre Dame. Assim, 1314 é considerado o ano da extinção definitiva da Ordem do Templo na França, abolida através de uma bula papal. Porém, como se sabe com toda a certeza, a Ordem continuou a existir por muito tempo em outros países, e com outros nomes. Para ilustrar, temos a Ordem de Cristo em Portugal, participante das grandes descobertas marítimas posteriores, através de sua influência na Escola de Sagres. A cruz das caravelas portuguesas, inclusive as que aportaram no Brasil traziam a cruz vermelha desta Ordem Iniciática, inspirada na antiga cruz templária de mesma cor, porém com outra forma. Assim aconteceu na Alemanha Inglaterra e até na própria França, pois muitos cavaleiros templários simplesmente entraram em outras ordens monásticas durante e após a perseguição.

Ainda sobre a “Divina Comédia”, importante notar que foi escrita no formato de “três linhas”, chamado terza rima pelo próprio Dante. Entendemos que nesta obra Dante prega um novo casamento entre a cruz (fé) e a águia (justiça), como única solução possível para a salvação do mundo e da humanidade. Vemoss, assim que esta é uma obra de absoluto simbolismo e de rara profundidade, até mesmo em relação a seus trabalhos anteriores e posteriores. Analisado à luz da moderna psicologia, muitos dizem que os três atos da Divina Comédia (Inferno, Purgatório e Paraíso) podem corresponder ao subconsciente, consciente e supraconsciente do homem.

Já o livro “Convite” é um compêndio da filosofia de seu tempo, exposta eloqüentemente sob a forma de comento a três das suas canções.

O “De Monarquia”, 1313, é um tratado político, escrito em latim, e que comenta a solução de Dante para um mundo unido e em paz entre Igreja e Estado, numa relação direta com este mesmo aspecto, anteriormente citado, a fé e a justiça, da Divina Comédia.

O “De Vulgari Eloquentia”, também escrito em latim, é um estudo pioneiro de estilos e lingüística, ou seja, é um tratado filológico, em que através da literatura da época e combinando dialetos italianos Dante tentou criar uma nova língua nacional. Esta obra foi deixada incompleta.

Existem também outros textos, importantes para a literatura mundial: “Epístolas”, “Questio de Aqua et Terrae”, “Convívio”.


A PRESENÇA DOS “FIÉIS DO AMOR”

É um fato que Beatriz, a sua guia no texto do Paraíso da “Divina Comédia”, não é apenas a imagem ideal da Cavalaria Medieval, mas também a provável representação das ligações de Dante com as confrarias místicas de seu tempo, tais como a “Fede Santa” (mais tarde transformada em uma das ramificações da Rosacruz), e principalmente os trovadores “Fedeli d’Amore” (“Fiéis do Amor”). Estes tinham como ideal feminino não a mulher física, mas a mulher idealizada espiritualmente, a Grande Mãe, no sentido de ser um meio nobre (ou representação) para que se tornarem “os eleitos”.

Uma outra prova disso é uma curiosa medalha existente no Museu de Viena representando o poeta, onde pode-se ler as seguintes letras: F.S.K.I.P.F.T. e que dizem “Fidei Sanctae Kadosh, Imperialis Principatus Frater Templatus”. A associação com a Fede Santa ou Fidei Sanctae é confirmada como a Ordem Templária, além disso, temos a expressão hebraica kadosh, que significa santificado ou sagrado, e que é característica das Ordens Cavalheirescas [sic], estando até hoje em voga esta expressão em ordens que, historicamente, seguiram os passos dos Templários, como as Ordens Maçônicas.

Divulgavam o mito do comportamento heróico-solar do Cristo, simbolismo que os levaria ao inevitavelmente ao “Castelo da Sabedoria”, isto é, de volta ao seio de Deus. O caminho passaria pelo amor pleno, logo, através das suas amadas, como acontece na “Divina Comédia” entre Dante e Beatriz.

Dante Alighieri enfrenta vários perigos no Inferno, é Iniciado no Purgatório, para finalmente encontrar sua adorada Beatriz no Paraíso, sendo ela o símbolo da inteligência, da sabedoria e da Doutrina Templária. A Grande Dama representa nada mais, nada menos, do que meta e guia das aspirações místicas de todos os tempos. Segundo Paul Le Cour essa doutrina de cunho Templário era diferente da doutrina da igreja romana institucionalizada por ser a primeira de caráter joanita, ou seja, seguindo os ensinamentos esotéricos de São João Apóstolo e de São João Batista (e não Pedro). O primeiro, discípulo preferido de Jesus Cristo, como seu Mestre fora o veiculador da doutrina do Amor espiritual entre todos os homens.

Assim, o nome do grupo, “Fiéis do Amor”, ao qual Dante parece ter-se ligado, nos remete à seguinte relação: AMOR = DEUS = ESPÍRITO SANTO ou PARÁCLITO (no esoterismo cristão). Logo, os “Fiéis do Amor” seriam discípulos diretos do Espírito Santo, divinos. Não apenas eles seguiram os ensinamentos místicos joaninos, mas também os cátaros, os albigenses, os pedreiros construtores das catedrais medievais, os Rosacruzes, etc..

Os “Fiéis Do Amor” expressavam tal conhecimento e o ideal feminino enquanto trovadores e poetas (comuns na época), sempre em forma de canções, porém de maneira velada, por causa da opressão da igreja católica. Também usavam estes recursos para retratar fatos aos quais eram contra as atitudes da mesma igreja. Dante acabou por ligar-se às milícias iniciáticas dos Ghibellini, que também estavam ligadas às Antigas Tradições medievais e aos Cavaleiros do Templo, como já mencionado. Os Templários lhe inspiraram a apoiar os movimentos populares na luta contra os Guelfos, mudando sua forma de ver a vida e também influenciando diretamente na composição da “Divina Comédia” como obra de cunho iniciático.


UMA CURIOSIDADE

Um sonho salvou os treze últimos cantos da Divina Comédia que estavam perdidos após a morte do poeta. Já se haviam passado oito meses de procura quando Jacobo, o mais velho dos três filhos de Dante, viu em sonho o pai vestido de branco. Jacobo perguntou-lhe se vivia ainda “Sim” respondeu-lhe o poeta “mas a verdadeira vida, não a vossa”. O filho indagou sobre os treze cantos que estavam perdidos e teve a impressão de seu pai o conduzir ao quarto onde tinha por hábito dormir. Tocando em certo lugar da parede, lhe disse: “Aqui se encontram os versos que vindes procurando com tanto empenho.”

O filho acordou e após contar correndo o sonho a um amigo do poeta (Pietro Giardino), foram à antiga casa de Dante. No local indicado arrancou da parede um remendo de esteira de palha e descobriram um nicho contendo um rolo de papéis. Entre outros escritos lá estavam os cantos perdidos. Boccaccio, contemporâneo de Dante, incluiu o fato na sua obra “A Vida de Dante Alighieri”, após ouvir o caso diretamente de Pietro. Nunca se soube por que Dante escondeu os treze últimos cantos de sua mais importante herança literária.


BIBLIOGRAFIA

– Colangelo, Adriano; Os 3 Atos Da Divina Comédia; Planeta No 85, 1979.

– Jornal de Planeta; Um Sonho Salvou A Divina Comédia; Planeta No 30, 1975.

– The New Grolier Multimedia Encyclopedia (verbete Dante Alighieri).

– Alighieri, Dante; A Divina Comédia; Biblioteca Clássica; Vol. XLI; Atena Editora; São Paulo.

– Great Books Of The Western World; The Divine Comedy Of Dante Alighieri; Encyclopaedia Britannica Inc., 1952.

– Alighieri, Dante; A Divina Comédia; Editora Itatiaia, 1989.

– Cour, Paul Le; O Evangelho Esotérico de São João; Ed. Pensamento, 1980.

– Guénon, René; O Esoterismo de Dante; Ed. Veja, 1978.

*Adílio Jorge Marques é professor de Física e História da Ciência da rede pública e particular de ensino do Rio de Janeiro. Pesquisador em História da Ciência luso-brasileira e história das Tradições.


FONTE:

MARQUES, Adílio Jorge. Dante Alighieri. In AMORC-Cultural, 2. Trimestre 2002. Curitiba: AMORC-GLP, 2002. p. 24-31.


MARQUES, Adílio Jorge. Dante Alighieri e os Templários. Publicado em 21 set. 2009. Disponível em: <http://www.debatesculturais.com.br/dante-aliguieri-e-os-templarios/>. Acesso em: 31 jan. 2016.

sexta-feira, 15 de janeiro de 2016

CONSELHOS AO PEREGRINO PENITENTE





Por Tomás de Kempis

“Quem me segue não caminha pelas trevas”, diz o Senhor. Estas são as palavras do Cristo que nos ensinam o quanto devemos imitar sua vida e sua conduta se queremos ser iluminados e libertos de todas as cegueiras do coração. Mas acontece que muitos leitores habituais do Evangelho mostram um frágil entusiasmo porque não têm o Espírito do Cristo. Para aquele que quer compreender as suas palavras de forma plena e deleitosa, é preciso que trabalhe para conformar a elas toda a sua vida.

Em verdade, as palavras elevadas não fazem o santo e o justo, mas a vida reta torna o homem caro a Deus. Se conhecesses todo o sentido exterior da Bíblia e todos os ditos dos filósofos, de que te serviria isto sem o amor de Deus e a Sua graça? “Vaidade das vaidades, tudo é vaidade”, exceto amar a Deus e servi-Lo. Aí está a suprema sabedoria: pelo desprezo ao mundo, tender para o Reino Celeste.

Vaidade, pois, buscar os bens perecíveis e tudo esperar deles.

Vaidade, também, lutar por honrarias e se alçar a posições elevadas.

Vaidade, seguir os desejos da carne e desejar aquilo pelo que devemos ser punidos gravemente mais tarde.

Vaidade, desejar uma vida longa e pouco se preocupar em viver uma vida boa.

Vaidade, dar atenção somente à vida presente e não pensar naquelas que ainda estão por vir.

Vaidade, comprazer-se no que passa rapidamente e não ter pressa de chegar ao lugar onde se encontra a alegria eterna.

Lembra-te com freqüência deste provérbio: “os olhos não são saciados de ver nem os ouvidos fartos de ouvir”; empenha-te então em desapegar teu coração do amor ao que é visível e a te transportar para o invisível. Com efeito, aqueles que seguem sua sensualidade corrompem sua consciência e perdem o Espírito de Deus.


FONTE: KEMPIS, Tomás de. Imitação de Cristo (tradução de O. Sporeys)

DOZE FACES DO GRAAL




Por Philippe Deschamps

O tema do Graal, ou o objeto que ele designa, tem sua ori­gem nas obras de Chrétien de Troyes e assume plenamente seu espaço na lenda do rei Artur e de seus cavaleiros. Esta saga foi escrita no século XII no Ocidente: isto para a história e para o conhecimento acadêmico. Porém, o apaixonado pelo assunto descobre cedo ou tarde sua natureza universal e intemporal. Noutras palavras, há múltiplos protótipos do Graal que induzem a pensar que se trata de um símbolo ligado àquilo que foi cha­mado de “a Tradição Primordial”. Aqui, reteremos voluntariamente doze deles.

Comecemos por aquilo a que devemos chamar de “Graal luciferino”. Alguns mitos gnósticos consideram o Graal das origens como uma taça talhada numa pedra de esmeralda caída da fronte ou da coroa de Lúcifer. De maneira simbólica, é possível visualizar essa pedra como uma espécie de terceiro olho, instrumento pelo qual o anjo destronado pretensamente se comunicaria com a Inteligência Cósmica. Segundo o fi­lósofo Jacob Boehme, esse Portador de Luz, que se torna o Satã da Bíblia, representava uma primeira imagem do Deus criador. Banido de sua posição preeminente, foi substituído pelo Adão que devia ocupar seu trono e, para aquilo que nos interessa, recuperar a famosa pedra de esmeralda. Tendo Adão fracassado na manutenção de seu papel e de seu lugar, este foi transmitido a personagens como Seth, Enoque ou Noé.

Segundo o Zend Avesta, o escrito sagrado dos zoroastristas, Yima foi o primeiro ho­mem a poder se comunicar com a Divindade. De acordo com a alegoria, ele pode ser comparado a uma espécie de Noé pois, ao passo que lhe anuncia uma catástrofe iminente, Ahura Mazda, o deus dos zoroastristas, lhe aconselha reunir os melhores dos homens e mulheres, um casal de cada animal e um espécime de cada planta. Ordena-lhe que os reúna num recinto a fim de lhes colocar a sal­vo da provação catastrófica que os aguarda. Yima possuía também um anel de ouro capaz de fazer a Terra crescer em caso de superpo­pulação – poder o qual ele usou três vezes, haja vista que nessa idade de ouro ninguém morria. A preocupação com a superpopulação não é, portanto, de hoje. Entretanto, não há mais anel mágico para resolvê-la.

Muito mais tarde, no começo do século XI, o poeta iraniano Firdoussi escreveu o Livro dos Reis. Ele relata a existência de um denominado Jamshid, geralmente identifi­cado com Yima. Ele explica que Jamshid, o maior rei da Terra, estava rodeado de uma luz e que possuía uma taça com sete anéis mágicos. A esse respeito, podemos ver uma relação com o ás de copas do tarô que, através de sete torreões, faz alusão a esses sete anéis. Esse recipiente, nosso segundo Graal, lhe permitia observar o universo. Esse “es­pelho do universo” era preenchido com um líquido que tornava imortal e, de fato, é dito que Jamshid teria vivido mil anos. Ele também dotava o seu possuidor de um poder de divinação. Durante os trezentos primeiros anos de seu reino, Jamshid reinou em paz e trouxe saúde e longevidade para o seio dos homens. Um dia, porém, seguindo os con­selhos de um servidor do mal, encheu-se de orgulho e esqueceu a fonte de todas as suas benesses: a própria divindade. Perdeu então o Farr, a luz da glória. O povo se revoltou con­tra ele, que foi morto num combate contra um sectário de Ahriman, o satã iraniano. Co­meçava então a era sombria da humanidade.

A Sirah, ou Tradição Islâmica, relata um diálogo entre o profeta Maomé e alguns judeus. Estes queriam colocar o profeta à prova e lhe perguntaram: “Quem foi o primeiro homem a introduzir o culto aos ídolos?” E Maomé respondeu claramente: “Foi Jamshid, pois apoderou-se da soberania sobre todo o universo [ou seja, a famosa taça]” Ele era de uma beleza extraordinária. Então Iblis, o satã dos muçulmanos, veio tentá-lo fazendo­-se passar por Deus. Jamshid, que queria ascender ao céu, fabricou, a conselho deste, cinco ídolos e lhes atribuiu o nome de seus lugares-tenentes. Segundo o Alcorão (surata Noé 22-24), esse culto aos ídolos conduziu ao Dilúvio. Com esse Jamshid/Yima, vemos que a posse da taça permite um exercício pacífi­co do poder. Inversamente, quando o poder ultrapassa seus limites, conduz a uma ruptura do equilíbrio cósmico e à perda do objeto sagrado. Dois temas universais são então tratados conjuntamente: a taça e o Dilúvio.

O Livro dos Reis, o Shah Nameh de Fir­doussi, reporta que após a desventura de Jamshid a taça não foi entretanto perdida. Ela passou pelas mãos de Kay Kosrou, oi­tavo e último rei da dinastia kayanida, à qual o místico persa Soravardhi faz alusão com os seguintes termos: “A taça, o espelho do universo, pertencia a Kay Kosrou. Nela, ele podia ler tudo o que desejasse, contem­plar as coisas ocultas e conhecer as coisas manifestas. É dito que a taça se encontrava num estojo atado por dez laços. Quando Kay Kosrou quis ver certo dia as coisas ocultas, ele desfez os laços. Quando todos estavam desfeitos, a taça se tornou invisível. Quando o estojo, lugar de sua Junção, foi reatado, a taça se tornou visível novamente”. Na reali­dade, o estojo representa o próprio homem.

O advento e a vida desse Kay Kosrou parecem muito com as peripécias vividas pela assembleia da Távola Redonda e, mais particularmente, com as de Percival o Galês. Assim como Percival, ao nascer, seu pai foi assassinado. Cresceu junto com uma viúva numa floresta. Ainda jovem, sentiu-se fasci­nado pela cavalaria. Muitas vezes fala como um sonso e não evoca suas origens. Porém, se engajará num combate contra o mal. Nada impede de se pensar que a aventura de Kay Kosrou tenha servido de protótipo iraniano para a de Percival. A versão do romance escrito por Wolfram von Eschenbach tem sua origem, segundo o autor, num manus­crito árabe descoberto em Toledo. A versão de Chrétien de Troyes interpretaria um texto descoberto na Terra Santa por Filipe da Alsácia, conde de Flandres. Para além da realidade histórica dessas afirmações, existe sim, portanto, um perfume de Oriente islâmico, até mesmo zoroastriano, que emanaria dos romances arturianos. Uma pequena informação complementar: o jogo de xadrez vem do Irã e foi introduzido na Europa no século XII. Nos romances artu­rianos, são numerosas as cenas em que se joga xadrez – jogo iniciático por excelência.

O quarto protótipo do Graal no qual nos deteremos é o Nartamonga, do povo Nartz. Os Nàrtz são os descendentes dos Sármatas, tribo ariana do começo da nossa era cuja origem geográfica se situa próximo ao Mar Cáspio. Os Ossetas modernos se reivindicam como sucessores longínquos desses povos. Os Nartz possuíam, portanto, essa taça peculiar chamada “Nartamonga” disputada pelos che­fes da tribo. E por uma razão evidente! Esse recipiente também possuía virtudes mágicas. Ele devia servir unicamente para a produção de alimento destinado aos heróis e lhes trazia inspiração. Finalmente, é o maior dos heróis e guerreiros Nartz, Batradz, que ob­tém o privilégio da guarda do Nartamonga. Através dessa lenda dos Nartz, a existência do símbolo fortíssimo da taça é colocada como sendo comum a toda a esfera indo-iraniana e aos povos que se lhe aparentam.

É dito que os Celtas teriam descendido também desses povos antigos. Diz-se dos deuses de seu ramo irlandês, os Tuatha dé Danann, que teriam vindo do Oriente, ou do Norte do mundo, ou ainda da Grécia. Três deles tinham por atributos os instrumentos apresentados a Percival no castelo do Graal: a espada, para o deus guerreiro ou rei Nuada; a lança, para o deus luminoso Lug (a cidade de Lyon, Lugdunum, é dedicada a Lug); e por fim o caldeirão, equivalente do Graal, para Dagda, o Deus druida. Esse caldeirão celta é o mesmo que é imortalizado por Panoramix numa célebre história em quadrinhos. Nós o retemos, portanto, como um quinto Graal, com mais facilidade ainda pelo fato de os historiadores considerarem hoje em dia que a origem dos romances arturianos se encontra nas lendas célticas. O Dagda era por vezes representado como um gigante dissoluto. Ele é frequentemente comparado com o deus gaulês Gargan, a partir do qual Rabelais concebeu seu pândego e enorme Gargântua. O caldeirão do Dagda tornava imortais os guerreiros mortos em combate quando estes eram imersos nele. Representava também a soberania e o arquétipo dos famosos caldei­rões de abundância das tradições populares. O caldeirão de Gundestrup, descoberto na Dinamarca pelos arqueólogos, é uma boa representação desse maravilhoso recipien­te. Além disso, alguns cientistas estudam seriamente hoje em dia os pontos comuns, ou até mesmo a origem comum, entre a cultura religiosa dos Celtas e a da antiga Índia. Deixemos agora a esfera ariano-céltica.

Mais próxima de uma influência judaico­-cristã, trataremos agora da personagem enigmática de Melquisedeque. Esse “rei de justiça”; conforme a tradução de melchi - sé­ - dech, aparece discretamente no Antigo Tes­tamento, mas sua importância real ou simbólica se revela inversamente proporcional à quantidade de suas aparições. Ele também é qualificado de “Rei de Salem”, ou seja, da Je­rusalém antiga – o termo salem significando “paz” (salam, entre os muçulmanos). Mais do que a cidade designada por esse termo, é o estado espiritual mais elevado que é indica­do por esse nome. Melquisedeque teria sido uma personagem de carne e osso ou o símbolo de um determinado nível da hierarquia universal? Sobre ele, Saulo de Tarso afirma, em sua Epístola aos Hebreus, que não tem pai, nem mãe, nem genealogia e que sua vida não tem começo e nem fim. No que toca o nosso assunto, retemos que esse rei partilhou o pão e o vinho com Abraão, que naquela ocasião recebe uma espécie de iniciação cujo traço é revelado por sua súbita mudança de nome. De Abraão ele se torna Abrahão. A adjunção da letra hebraica He se revela aqui de uma importância capital, uma vez que designa um novo estado de tomada de consciência. E naturalmente, ainda que o texto não o diga, o vinho foi consumido numa taça que representará o nosso sexto Graal. O que en­sina essa cena, tão breve na Bíblia, mas que, paradoxalmente, dá tanto pano para manga?

A prática da Eucaristia da igreja cristã possuía provavelmente uma origem bem anterior ao Cristianismo e ao Judaísmo, e Paulo certamente sabia disso, pois faz de Jesus um sacerdote-rei da Ordem de Melquisedeque. A propósito do próprio Davi, declara-se o seguinte no salmo 110-4: “O Eterno o jurou, e disso não se arrependerá: és para sempre sa­crificador à maneira de Melquisedeque”. Essa fórmula é por vezes traduzida como: “És para sempre sacerdote segundo a Ordem de Melqui­sedeque”. Existiria, portanto, uma Ordem invi­sível dita “de Melquisedeque”, a qual possuiria por instrumento fundamental uma taça de soberania cujas origens seriam anteriores ao Cristianismo e ao Judaísmo. Salientemos que Melquisedeque era o grande sacerdote do “altíssimo” El Elyon, e que esse El Elyon era de fato um deus fenício. Esse “detalhe” sugere a ideia de uma religião universal que recobre todas as religiões locais e temporais.

Prossigamos, porém, com a pesquisa, pois outra personagem importante da Bíblia, que parece ter passado completamente des­percebida sob este ângulo, também possuía uma taça de virtudes prodigiosas: José é um dos doze filhos de Jacó, ele próprio filho de Isaque, o segundo rebento de Abrahão. Ele nasceu de Raquel, a amada esposa de Jacó, embora esta fosse estéril. Seu nascimento deveu-se, portanto, a uma intervenção divina. José é vendido e deixado para morrer por seus irmãos ciumentos, que queriam se livrar dele. De certa forma, ele se torna um apátrida rejeitado por seu povo e levado ao Egito. Lá, José se vê aprisionado. Contudo, ele possui um dom excepcional – o do “verdadeiro sonho”: Ele interpreta os sonhos do faraó, sobretudo o famoso episódio das “vacas gordas” e das “vacas magras”. Isso lhe valerá o cargo de ministro do faraó. Anos mais tarde, sucede uma fome que aflige os Hebreus. Os irmãos de José vêm ao Egito em busca de alimento. Eles reencontram o irmão, mas não o reconhecem. Ele conhece suas identidades e deseja zombar deles. Faz com que seus sacos de grãos sejam enchidos e coloca uma taça de prata no conteúdo do saco do irmão mais novo. Então, acusa-os de roubo. Eles, naturalmente, clamam sua inocência. José, “em quem estava o espírito de Deus”, tendo se tornado primeiro-ministro do faraó, pede que sejam abertos os sacos e, fingindo surpresa, lhes diz: “Por que roubaram a taça que uso para adivinhar?” (Gen 44,4 a 17). A taça de José será o sétimo Graal que reteremos.

Associamos a faculdade particular de José de utilizar o sonho com a existência dessa taça de divinação. Torna-se então possível deduzir disso que esta taça simboliza a Alma Universal e os poderes proporcionados pela faculdade particular desenvolvida pelos místicos de estabelecer um contato com ela. Possuir a taça pressupõe, portanto, adotar uma atitude de disponibilidade e de abertura particular diante das forças invisíveis na fonte da Criação. E o que aparece aqui cada vez mais claro é a existência, relatada por meio da alegoria, de um místico rei do mundo cuja identidade aparente foi conhecida pelos no­mes de Yima, Jamshid, Kay Kosrou, Melqui­sedeque, Abrahão, José, Davi, Jesus, José de Arimateia e, por fim, Artur. A essa lista po­deríamos acrescentar nomes aceitos pela Tradição Esotérica, tais como Hermes, Pitágoras e Salomão. O rei deve possuir em seu arsenal a faculdade de se comunicar com a Sabedo­ria Divina, simbolizada pela taça sagrada.

Essa taça, associada à tradicional partilha do pão e do vinho, pertence provavelmente ao patrimônio da Tradição Primordial, em sua versão inicialmente médio-oriental e posteriormente ocidental. O pão, de fato, na sua forma chata, é um dos mais antigos alimentos produzidos pela humanidade. O vinho, por sua vez, também é uma das bebi­das mais antigas já elaboradas. Ele se torna até mesmo o símbolo daquilo que existe de melhor – o nec plus ultra, a quintessência filtrada e várias vezes destilada. Partilhar o pão e o vinho se tornava então o símbolo de uma atitude tendendo a reforçar os elos da coletividade e da civilização humana, e até mesmo de uma capacidade de entrar em contato com o seu inconsciente coletivo. Esse rito, cujo valor se perde na mediocri­dade em nossa sociedade de superconsumo e de abundância, servia de argamassa social e para consolidar a paz entre os homens.

Se por um lado Chrétien de Troyes não revela verdadeiramente a natureza do Graal, a versão cisterciense por sua vez a associa claramente, através da lenda de José de Arimateia cuja fonte pode se encontrar no Evangelho de Nicodemos ou nos Atos de Pilatos, à taça da ceia, cerimônia no decur­so da qual o Mestre Jesus partilhou o vinho com seus discípulos. A esse respeito, eis o que declara o psicanalista C. G. Jung em sua obra As Raízes da Consciência, “O vinho fortifica, mas noutro sentido que não o de um alimento. Ele estimula e rejubila o coração do homem graças a uma determinada substância volátil que se costuma chamar de ‘espírito’. Diferentemente da água inofensiva, ele constitui uma essência que inspira, pois é habitado por um espírito ou um deus que engendra o êxtase da ebriedade... o pão re­presenta o meio de existência física; o vinho o meio de existência espiritual.” Especificamos aqui que o pão integral fermentado teria uma natureza próxima à do corpo humano.

De fato, esse vinho, assim como o das bodas de Cana do Evangelho de São João, conduz diretamente aos mistérios dionisíacos e às beberagens prodigiosas evocadas tanto por Rabelais quanto pelos Hindus através do Soma, ou ainda pelos Gregos e o “néctar dos deuses” Rabelais, no quinto livro do seu Pan­tagruel, realiza, através de um conto tão ex­travagante quanto iniciático, a síntese dessas noções. Ele conduz os heróis de seus romances, no desfecho de suas aventuras, ao templo da “diva garrafa”. No centro do santuário iluminado por uma lâmpada perpétua se en­contra justamente um afresco que representa o combate de Dionísio contra os indianos. Ele está acompanhado pelo deus Pã e seus Bacantes. Na ocasião dessa visita ao templo, no qual eles descem os degraus “tetrádicos”, os heróis de Rabelais recebem uma iniciação que se encerra com o consumo do conteúdo da “diva”, ou divina, “garrafa”, o que é forço­samente uma alusão ao nosso nono Graal. E o doutor Rabelais, sob o pseudônimo Alco­fribas Nasier, distila conselhos sutis: “Não se deve beber o vinho do vulgar, pois do vinho divino se torna.1” ; ou ainda: “No vinho está a verdade. Beba, imagine e diga que para Deus nada é impossível.”; e por fim, de uma maneira toda poética, na forma de uma canção: “No vinho se encontra a última libertação.”

A guerra de Dionísió na Índia nos leva a evocar o contato entre a Grécia e aquelas pa­ragens distantes. Esse encontro simboliza efe­tivamente a substituição do vinho, enquanto bebida sagrada, pelo Soma dos indianos. Este Soma era consumido pelos brâmanes e oferecido em sacrifício ·aos deuses. Assim como no Cristianismo o vinho e o pão são identificados como sendo o sangue e o corpo do Cristo, Soma, mais do que um líquido, era na realidade um deus da chuva e da Lua. Quando a Lua cresce, diz-se que Soma, ou a ener­gia vital, flui para a Terra como numa taça. Soma e o seu conteúdo, nosso décimo Graal, cujo equivalente iraniano é haoma, permite ressaltar a identidade estreita que existe entre a Divindade e o estado de consciência induzido pelo consumo de Amrita, outro qualificativo da beberagem da imortalidade.

O décimo primeiro Graal, do qual tratare­mos, é certamente o mais universal de todos. O bávaro Wolfram von Eschenbach escreve no século XIII uma adaptação do romance de Chrétien de Troyes. Este, por sua vez, não disse grande coisa a respeito da natureza do Graal. Wolfram tentará fazê-lo em seu lugar. Declara ter recebido suas informações de um misterioso provençal, Mestre Kyot, que des­cobre um manuscrito sobre o assunto escrito em árabe. O autor do texto é um judeu de nome Flegetanis, cujo pai era adorador de um bezerro: seria esta uma referência à Era de Touro? Esse Flegetanis, sendo astrólogo, vive nas constelações, e o nome do Graal está inscrito claramente entre as estrelas. Segun­do ele, um séquito de anjos o havia posto na Terra antes de retornar para as estrelas. E são cristãos desconhecidos, e depois os Templários, os seus depositários. Kyot, personagem provavelmente inventada, se pôs a procurar esses seres desconhecidos que possuíam as mais altas virtudes humanas.

E ele explica: trata-se da dinastia mítica angevina à qual pertenciam Gahmuret e seu filho Parzival. Ora, do ponto de vista político, foram os condes de Anjou – os verdadeiros – e seus descendentes que financiaram a maior parte dos romances arturianos. Os condes angevinos tinham relação com a Or­dem do Templo: Ricardo Coração de Leão e René d’Anjou teriam pertencido à Milícia do Cristo; mas que buscavam eles transmitir através da lenda do Graal? Eis o que escreve Wolfram a respeito do objeto sagrado: “Ele é chamado ‘lapis exillis’ [a pedra do exílio]. Por sua virtude, a fênix se consome, se torna cinza e renasce de suas cinzas. Torna-se mais bela do que antes. O Graal protege homens e mulheres do envelhecimento. Na sexta-feira santa uma pomba desce sobre essa pedra e deposita nela uma hóstia. Essa presença lhe confere seus poderes e uma mensagem. Ela pode então prodigalizar toda espécie de ali­mento aos Templários ligados à sua guarda.

Para Wolfram, o Graal é, portanto, uma pe­dra descida sobre a Terra. Aqueles que, antes dos homens, foram os primeiros associados à sua guarda foram os anjos que permane­ceram neutros no combate que opôs Deus e Lúcifer. Eles não tomaram partido, não fi­cando nem do lado do bem e nem do lado do mal, e Wolfram chega a se perguntar se Deus não os teria perdoado. Desde então, a pedra chama aqueles que estão destinados ao seu serviço. O Graal de Wolfram aparece então como algo bastante curioso. Ele parece trans­cender as noções religiosas clássicas e moralizadoras veiculando uma determinada ideia de pureza. Tudo se passa como se Wolfram houvesse querido indicar uma via capaz de transcender o discurso das religiões oficiais, tomando cuidado para não ser taxado de he­rege. Flegetanis é um judeu que se interessa pela tradição astrológica dos magos. Gahmuret, o pai de Parzival, já teve um filho, Firefiz, com uma moura da Espanha. O meio-irmão de Parzival é, portanto, um árabe. A via indicada parece estar, portanto, diretamente ligada à Tradição Primordial, entendida como a garantia que Deus deixou ao coração de todo homem de boa vontade, para além de sua filiação religiosa ou mesmo étnica.

O último tipo de Graal que iremos exa­minar pertence ao fim dos tempos. O Apo­calipse de São João evoca de fato sete anjos detentores de sete taças. O texto sugere que essas taças dão testemunho da onipresença e da onipotência da Divindade, não mais conforme o modelo do Criador e do Recon­ciliador, mas segundo o destruidor. Essas taças contêm de fato sete pragas e o vinho da cólera de Deus. É com esse Graal escatoló­gico final, o qual podemos ligar ao do prin­cípio, a mítica pedra de esmeralda caída da fronte de Lúcifer, que se encerra este périplo através dessas doze faces do Graal, ou “outros Graals”. O objetivo desse estudo consistia em mostrar a universalidade do tema. Sem dúvida, outras pesquisas poderiam ser feitas na África, na América ou noutras partes ... Em todos os casos abordados, esse símbolo permanece sendo portador de diversas ver­dades esotéricas profundas sobre as quais cada um deve meditar inabalavelmente.

Nota: 1. Aqui temos um jogo de palavras sofrivelmente traduzível em português, cuja sonoridade em francês não é equiparável: “Il ne faut pas beire le vin du vulgaire, car de vin, divin on devient”. (N. do T.)

FONTE: DESCHAMPS, Philippe. Doze faces do Graal. In O Rosacruz. Curitiba: AMORC-GLP, 2015. p. 24-32.