sábado, 19 de dezembro de 2015

PRÁTICAS TEÚRGICAS DA ORDEM DOS CAVALEIROS MAÇONS, SACERDOTES ELEITOS DO UNIVERSO





Por René Le Forestier

A sociedade secreta organizada por Pasqually instituiu em proveito dos Êmulos um clero oculto e forneceu uma explicação definitiva do segredo maçônico.

O tratado da Reintegração [dos Seres], por sua exegese particular dos textos bíblicos, estabeleceu que o “verdadeiro culto divino” tinha por finalidade e por justificativa produzir “frutos espirituais provenientes de operações espirituais temporais”, ou seja, fazer aparecer “o Espírito que o Sábio (o iniciado) sujeitaria por força de sua operação”. Esse culto havia sido transmitido por uma tradição secreta, ignorada pelas tradições públicas, e cujos confidentes tinham sido Abel, Set e seu filho Enos, Enoch, os sete Menores Eleitos da posteridade de Noé, Jacó e Moisés entre os israelitas, depois os Sábios anônimos dos quais Pasqually era o herdeiro. (Pasqually incluiu, entre os Menores Eleitos, todas as personagens da Bíblia às quais Jeová tinha se manifestado por sua Palavra, ou por intermédio de seus anjos. Os fenômenos táteis, auditivos ou visuais que se produziam nas câmaras de Operação eram uma forma diluída das manifestações divinas afiançadas pela Bíblia).

Os Êmulos que recebiam seu ensinamento, e praticavam o culto divino segundo suas indicações, eram os verdadeiros sacerdotes. O nome de Elus Cohens, dado à sua sociedade, já indicava sua dignidade. (Cohens é uma adaptação da palavra hebraica Cohanim que designava a classe sacerdotal mais elevada, constituída em Jerusalém para assegurar o serviço divino no Templo. Os Cohanim, que tinham os levitas sob as suas ordens, passavam por descendentes de Aarão em linha direta e por terem entrado, em seguida, na posse das verdades secretas, reveladas pelo Eterno a Moisés e comunicadas oralmente por este ao seu irmão).
Além disso, cada um deles, para usufruir das Operações, deveria ter recebido uma “ordenação”. Essa consagração sacramental conferia-lhe uma virtude mística especial que fazia dele um “Mestre Mui Poderoso”. Esse caráter era considerado pelos Êmulos como indelével, fosse qual fosse a conduta posterior e os atos daquele que o havia recebido. Quando um deles deixou a sociedade, escreveu a um confrade que permanecera fiel à seita: “Estaremos sempre ligados como Cohens e iniciados.

[...]

A solidariedade que estabelecia entre os Cohens “regularmente ordenados” como sacramento secreto manifestava-se particularmente no exercício de suas funções sacerdotais. As Operações solenes deviam ser efetuadas exatamente na mesma hora por todos os Cohens ordenados. As Câmaras de Operação onde eles oficiavam podiam estar situadas a grande distância umas das outras, por exemplo, em Lyon, Paris e Bordeaux, mas um sincronismo perfeito era absolutamente necessário para que pudesse atuar aquilo que se chamaria, no sentido etimológico do termo, a cooperação simpática que, através do espaço, levaria a cada um dos oficiantes o auxílio espiritual de todos os seus confrades. Para materializar seu concurso, um dos círculos continha, em cada Câmara de Operação, velas em número igual ao dos Mui Poderosos Mestres, corporalmente ausentes mas presentes em intenção.

Quando cumpriam seu ministério, os Elus Cohen vestiam uma roupa especial: veste, calças e meias negras, sobre os quais eles colocavam uma túnica branca com uma barra da cor do fogo na parte de baixo, com cerca de um pé de altura; as mangas largas também tinham o mesmo barrado só que a altura era de meio pé; a gola tinha um enfeite parecido, com a largura de três dedos. Sobre a túnica eles usavam um cordão azul, e em volta do pescoço um cordão negro, que ia do ombro direito até o quadril esquerdo, uma echarpe, verde-água em diagonal no peito, e finalmente uma echarpe vermelha formando um cinto abaixo do ventre. Quando entravam na Câmara de Operações, eles não podiam usar qualquer objeto de metal, “nem mesmo um alfinete”, e usavam sapatos tipo “pantufa”, para poder tirá-los rapidamente antes de colocar o pé dentro dos círculos.

Os Elus Cohens deviam observar uma “regra de vida” especial: era-lhes. interdito consumir sangue, gordura e os rins de qualquer animal, e comer a carne de pombos domésticos. Não deviam se entregar aos prazeres dos sentidos a não ser com grande moderação, e eram obrigados a observar duas vezes por ano um longo período de jejum severo. Abstinham-se de todo alimento durante as onze horas que precediam uma Operação.

[...]

Toda operação se iniciava no minuto exato: o Mui Poderoso Mestre que desejava “tudo fazer dentro da regra” trazia para a Câmara de Operação sementes de sobreiro (cortiça) para se proteger dos fluidos nocivos que pudessem emanar do solo; as velas e o incensário deviam ser acesos com “fogo novo”. A Ordenação começava com um “holocausto de expiação” [...] Além disso, a astrologia desempenhava um papel preponderante nas Operações. O momento em que estas deviam ser iniciadas era de primordial importância, porque, sendo calculadas com exatidão, trazia ao oficiante o auxílio de um influxo astral favorável. Caso contrário, porque “os círculos planetários eram habitados por seres espirituais malignos, que se opõem aos poderes benignos e combatem a ação dos bons influxos que os seres planetários bons são encarregados de espalhar pelo mundo inteiro”, os trabalhos do Operador “não davam frutos”. Por isso toda Operação só podia acontecer durante os quatorze dias após a lua nova, e a grande Operação anual, para a qual colaboravam todos os Mui Poderosos Mestres e que, em teoria, era a mais eficaz, era marcada para o equinócio da primavera, no momento em que o Sol, reflexo do “fogo divino”, retoma o seu vigor. A do outono, embora menos poderosa, contudo, era superior aos outros “Trabalhos de três dias”.

[...] As “Obrigações espirituais” ou exercícios de devoção prescritos aos Elus Cohens [...] eram os mesmos praticados pelos fiéis da Igreja Católica. Os Êmulos recebiam a ordem de ler diariamente o ofício do Espírito Santo no “Breviário do Cristão, na prática do servidor de Deus ou da Igreja”; eles deviam recitar, antes de ir dormir, o Miserere Mei e o De Profondis; durante as três noites de Operação o Mui, Poderoso Mestre iniciava seu trabalho recitando os sete salmos e as litanias dos santos. Para tornar bem claro que o ministério dos Elus Cohens era ao mesmo tempo teúrgico e cristão, Pasqually tinha dado aos Êmulos admitidos ao grau supremo o título de “Réaux-Croix”, o primeiro termo lembrando, ao que se pode crer, o nome místico de Adão antes de sua queda, quando comandava os Espíritos; o segundo ( a cruz) sendo tirado do emblema venerado pelos cristãos de todas os credos.

[...] Uma operação é, portanto, em última análise, menos um ato de fé, adoração ou propiciação, que uma experiência no sentido científico do termo. O Elu Cohen procede como um professor de química ou física estabelecendo a existência de uma lei natural pelo resultado previsto, repetido e constante, de uma manipulação feita em determinadas condições. Essa demonstração tangível de um fato transcendente é duplamente preciosa aos olhos do operador; não só ele aprende que ,pertence à classe dos Menores espirituais e que acaba de receber a chancela da salvação, como ainda sua convicção se apóia no testemunho irrecusável de seu próprio sistema nervoso, de seus ouvidos ou de seus olhos.

[...]

Mas o Menor Espiritual não podia contar unicamente com a devoção mais sincera, com os exercícios piedosos mais assíduos e com as preces mais fervorosas, para obter essa promessa de salvação. Era-lhe necessário meditar através de “penosos trabalhos do corpo e do espírito” ao proceder às “Operações”. Por esse nome, Pasqually entendia um conjunto de atos ritualísticos, cujos detalhes eram minuciosamente determinados, pois o Êmulo era advertido de que, ao buscar colocar-se em sintonia com o mundo sobrenatural, se expunha aos maiores perigos. Não só a aproximação dos Espíritos favoráveis podia ter consequências terríveis para a forma corporal do Menor, incapaz de suportar o contato do fogo divino, do qual os Espíritos emprestavam o brilho para se tornarem visíveis, precisando tomar, a esse respeito, as maiores precauções, como ainda os Espíritos perversos tentavam incessantemente “abater” o postulante, paralisando seus membros, ou pelo menos enganá-lo assumindo um ''falso corpo de glória”, sendo indispensável que se precavesse contra seus ataques insidiosos ou brutais. Por conseguinte, a Operação tinha por objetivo expulsar os Espíritos malignos e evocar com toda a segurança os Espíritos reconciliadores.

Contra os primeiros, o Operador se servia de um “escudo”, talismã de forma triangular cujas pontas ele voltava incessantemente na direção do Sul, habitat dos demônios; ele se cercava com um ou vários círculos traçados a giz no chão, onde escrevia os nomes e “hieróglifos” de patriarcas, profetas e apóstolos “unidos ao trabalho, para melhor conter os Malvados”; pronunciava “exconjuras” para “amarrar”, deter e anular em seus abismos de trevas, Satã, Belzebú, Baram e Leviatã, “possantes demônios das quatro regiões do universo”, e suas legiões diabólicas. Ao mesmo tempo, buscava atrair os bons espíritos com fumigações balsâmicas, numerosas luzes, testemunhos de respeito e invocações propiciatórias; passava por sobre os círculos uma caçarola contendo carvões ardentes sobre os quais tinha jogado incenso; iluminava os caracteres traçados nos círculos com “estrelas” (velas de cera); em seguida, com os pés descalços e prosternado, pronunciava apelos dirigidos aos Espíritos cujos nomes havia escolhido no repertório do ritual, inscrevendo seus símbolos em toda a volta do “círculo da presença divina”; finalmente, refugiado no “círculo de recolhimento”, esperava a manifestação solicitada. As operações deviam ser repetidas por três noites seguidas, em diferentes épocas do ano.

[...]

O resultado (das Operações) era denominado “passe”. A palavra indicava que a manifestação, por natureza, era extremamente breve e fugidia; portanto, era necessária a máxima atenção para não deixá-la escapar. Os Passes que revelavam a presença momentânea do Espírito reconciliador na Câmara de Operação podiam afetar os sentidos do Êmulo de diversas formas. Ele sentia “arrepios por todo o corpo” ou ouvia sons fugazes. Em geral, “a manifestação se operava pela visão”, por meio da percepção de luzes e faíscas. Para permitir que fossem percebidas, o Operador apagava as velas no final da cerimônia e encobria a chama da única tocha que permanecia acesa. As luzes que apareciam podiam ser de diversas cores: branco e azul, branco-vermelho claro, de cor mista ou toda branca, “cor de vela branca”. Mas, fosse qual fosse seu aspecto, as luzes eram consideradas o reflexo da “forma gloriosa” de um Espírito que havia respondido, com a autorização da Divindade, à invocação de um Menor Espiritual A forma que elas assumiam, ao “repetirem” um dos hieróglifos traçados dentro dos círculos, permitia identificar o Espírito conciliador e saber que lugar ocupava na hierarquia celeste; o favor concedido ao Êmulo, era tanto precioso quanto mais elevado fosse esse lugar.


FONTE: LE FORESTIER, René. La Franc-maçonnerie occultiste au xviiie siècle: & l’ordre des Élus Coens. Paris: Arché Milano, 2010.




quarta-feira, 16 de dezembro de 2015

OS DOIS LADOS DAS CRUZADAS






Por Rodrigo Cavalcante

Cruzada. No mundo pós-11 de setembro, a simples menção dessa palavra causa polêmica. Após o ataque às torres gêmeas, o presidente George W. Bush teve de pedir desculpas por usar o termo “cruzada” para nomear sua guerra contra o terrorismo. Osama bin Laden aproveitou a gafe. Em seu pronunciamento, o terrorista classificou a guerra no Afeganistão de “cruzada religiosa contra os muçulmanos”. A palavra ressuscitava dos livros de história. Só faltava Hollywood se interessar pelo assunto. Não deu outra.

O enredo do filme Cruzadas, de Ridley Scott, que está chegando aos cinemas, gira em torno de um ferreiro que se torna cruzado. Em tempos de Guerra no Iraque, nada mais natural que um filme com tema tão espinhoso despertasse protestos antes mesmo do lançamento. Em agosto de 2004, o jornal The New York Times entregou o roteiro de Cruzadas para teólogos cristãos e islâmicos. Os cristãos não viram problema, mas os muçulmanos acusaram o filme de estar cheio de erros.

Afinal, o que foram as cruzadas? Um ato de fé e heroísmo? Um massacre covarde? “Não faz sentido buscar hoje bandidos e mocinhos”, diz o holandês Peter Demant, historiador da USP. “As batalhas tiveram significados diferentes para o Ocidente e o Oriente”. Existem, portanto, duas histórias das Cruzadas. Nada melhor do que narrar essa história dos dois pontos de vista. Como você poderá constatar nos dois textos que correm nas páginas seguintes, as versões não se contradizem. São olhares diferentes que ajudam a entender por que, nove séculos depois, o assunto continua fascinando – e causando polêmica – nos dois lados do mundo.


A VERSÃO DOS CRUZADOS

O exército de Cristo

No dia 27 de novembro de 1095, o papa Urbano II fez um comício ao ar livre nas cercanias da cidade de Clermont, na França. Na audiência, além de muitos bispos, havia nobres e cavaleiros. Depois desse sermão, o mundo nunca mais seria o mesmo.

No discurso, o papa tentou convencer os espectadores a embarcar numa missão que parecia impossível: cruzar 3 mil quilômetros até a cidade santa de Jerusalém e expulsar os muçulmanos, que dominavam o lugar desde 638. Segundo os historiadores, Urbano II deve ter usado uma linguagem vibrante e provavelmente falou dos horrores que os peregrinos cristãos à Terra Santa estavam vivendo. Do alto de sua autoridade divina de substituto de São Pedro na Igreja, o papa prometeu: quem lutasse contra os infiéis ganharia perdão de todos os pecados e lugar garantido no paraíso. Um prêmio tentador no imaginário do homem cristão medieval, sempre atormentado pela ameaça de queimar no inferno.

A reação da multidão foi imediata. Gritos de “Essa é a vontade de Deus” começaram a ecoar. A pregação mal havia terminado e o bispo Ademar de Monteil, num gesto provavelmente ensaiado, ajoelhou-se diante do papa e “tomou a cruz”, ritual de alistamento em que o voluntário recebia uma cruz de pano que deveria ser costurada na altura do ombro do uniforme de batalha. Ademar embarcaria na primeira cruzada. Dali em diante, aquela cruz passaria a identificar os “soldados de Cristo”, ou, simplesmente, “cruzados”.

Segundo os historiadores, a intenção do papa era convocar apenas cavaleiros bem preparados. Mas seu discurso empolgou especialmente os camponeses pobres que tinham pouco a perder. As cruzadas terminariam entrando para a história como o maior movimento populacional da Idade Média, redefinindo para sempre o mapa do mundo.

A ameaça do Islã

No século 11, não havia dúvidas: o Islã era a religião mais forte do planeta. Em menos de cinco séculos, desde a morte de Maomé, em 632, a palavra de Alá tinha conquistado a Península Arábica, o norte da África, a Ásia Central, Espanha, Portugal, grande parte da Índia e até um pedacinho da China.

Não era uma hegemonia apenas religiosa. Os muçulmanos superavam os cristãos em ramos como a matemática, a astronomia, a medicina e a química. Não havia cidade européia que se comparasse aos centros islâmicos. O Cairo sozinho abrigava tanta gente quanto Paris, Veneza e Florença juntas, as três maiores cidades cristãs da época.

Foi quando chegou ao papa um pedido de ajuda do Império Cristão Bizantino. A sede do império, Constantinopla (atual Istambul, capital da Turquia), era o maior centro do cristianismo naquela parte do mundo. Os bizantinos estavam preocupados com a presença nas suas fronteiras dos muçulmanos, naquela época governados por uma agressiva monarquia de etnia turca, os seljúcidas. Originados de uma tribo de saqueadores nômades das estepes da Ásia Central, os seljúcidas haviam conquistado os territórios do califado de Bagdá no século 10 e, após se converterem ao islamismo, tornaram-se a maior força muçulmana. E eles queriam mais. Já tinham tomado a cidade bizantina de Nicéia e estavam a menos de 160 quilômetros de Constantinopla, o equivalente a três dias a cavalo.

Naquele momento, não restava alternativa ao imperador bizantino Aleixo Comenos a não ser apelar para seus confrades europeus. Só que, quando o imperador avistou a primeira leva de combatentes cristãos, teve motivos de sobra para se preocupar.

Cruzada Popular

Se é verdade que a intenção do papa era enviar um exército forte e organizado, formado pela elite dos cavaleiros, ele se frustrou um pouquinho. Uma série de pregadores populares começaram a incitar o povão a atacar os “infiéis”. A promessa de remissão dos pecados, aliada à chance de pilhar tesouros lendários, era bem atraente. Velhos, mulheres e crianças resolveram se lançar na aventura.

O primeiro desses exércitos foi liderado por um pregador conhecido como Pedro, o Eremita. Já no caminho, seus seguidores criaram tumultos, massacrando comunidades judaicas em cidades como Trier e Colônia, na atual Alemanha. “As cruzadas fugiram do controle”, diz a professora Leila Rodrigues da Silva, professora de História Medieval da UFRJ. “É provável que muitas dessas pessoas nem soubessem diferenciar um judeu de um muçulmano.”

Ainda assim, o imperador bizantino recebeu os seguidores do Eremita em Constantinopla. Prudentemente, Aleixo aconselhou o grupo a aguardar a chegada de tropas mais bem equipadas. Mas a turba começou a saquear a cidade e foi obrigada a se alojar fora de Constantinopla, perto da fronteira muçulmana. Até que, em agosto de 1096, o bando inquieto cansou-se de esperar e partiu para a ofensiva. Foi massacrado.

Somente dois meses após essa “cruzada popular” começaram a chegar a Constantinopla os primeiros exércitos liderados por nobres. Esses homens estavam interessados em mais do que um lugarzinho no céu. “Nessa época, a Europa vivia um boom populacional e a pressão pela posse de terras era muito grande”, diz a historiadora da Idade Média Fátima Fernandes, da UFPR. “Os filhos de nobres que não eram primogênitos só podiam enriquecer por meio de um bom casamento, algo cada vez mais difícil. As cruzadas abriram uma esperança para eles”, diz ela.

Até que foi fácil

O primeiro líder nobre a chegar a Constantinopla, em dezembro de 1096, foi o conde Hugo de Vermandois, primo do rei da França, que veio pelo mar com seus cavaleiros e soldados. Logo depois, vindo pela mesma rota, aportou o duque da Baixa-Lorena, Godofredo de Bouillon, acompanhado de irmãos e primos. Para financiar sua participação na cruzada, Godofredo vendera seu castelo – o que prova que não pretendia voltar para casa.

Em abril de 1097, cerca de 40 mil homens atravessaram o estreito de Bósforo (que separa a Europa da Ásia) sem encontrar resistência. O governante muçulmano, o sultão turco Kilij Arslan, iludido pela facilidade com que havia derrotado os pobres cruzados do Eremita, estava mais preocupado com disputas internas com vizinhos muçulmanos do que com a chegada de um novo contingente de cristãos. Como o sultão iria perceber apenas tarde demais, esse seria o maior erro de sua vida.

Dessa vez, bem equipados com escudos, armaduras e cavalaria, os cruzados cercaram e tomaram Nicéia, devolvendo-a aos bizantinos. Em outubro de 1097, eles chegaram a Antióquia, conquistando aquela que havia sido uma das principais cidades do Império Romano. Seis meses depois, os cristãos partiram em direção a Jerusalém. A essa altura, restavam 13 mil homens, um terço do contingente inicial. Após um mês de cerco, em 13 de julho de 1099, os cruzados conseguiram finalmente entrar na cidade santa. No dia 15 venceram as últimas resistências.

Para a maioria deles, a conquista fora um milagre. Menos de quatro anos após a pregação em Clermont, os cristãos vitoriosos saíam em procissão para o Santuário do Santo Sepulcro, onde Cristo teria ressuscitado. O papa Urbano II morreu duas semanas depois, sem ter recebido a boa notícia da vitória. Mas ele também foi poupado das más notícias que chegariam depois.

Derrota após derrota

Foram criados quatro Estados cristãos nos territórios conquistados. Ao sul, o mais importante, o Reino de Jerusalém, governado por Godofredo de Bouillon. Um pouco acima estavam o Estado de Trípoli, o Principado de Antióquia e o Condado de Edessa. Os chefes desses Estados logo perceberam que a permanência lá não seria fácil.

Os governantes cristãos logo perderam o apoio dos bizantinos, porque se recusavam a reconhecer a soberania do Império na região e não haviam demonstrado nenhum escrúpulo em substituir os patriarcas da Igreja Ortodoxa Bizantina por bispos oriundos da Igreja Católica Romana. Para piorar, não havia soldados suficientes para a formação de grandes exércitos. Logo após a conquista de Jerusalém, milhares de cavaleiros regressaram à Europa.

Em 1144, a perda de Edessa para os muçulmanos foi a primeira prova da vulnerabilidade cristã. Com o objetivo de recuperar o território perdido, o papa Eugênio III lançou uma segunda cruzada em 1145, liderada por Luís VII, rei da França. Foi um fracasso. O filme que está chegando aos cinemas retrata as cruzadas a partir desse período.

Mas o pior estava por vir. Em 1187, sob a liderança de Saladino – o sultão que unificou os muçulmanos e até hoje é venerado por seguidores do Islã no mundo inteiro –, os muçulmanos reconquistaram o Reino de Jerusalém. Era o começo do fim.

A perda de Jerusalém foi um choque para a Europa cristã, apesar de Saladino ter permitido peregrinações ao Santo Sepulcro. Dali em diante, houve pelo menos mais quatro grandes cruzadas em direção à Terra Santa e os cristãos colecionaram derrotas e vexames. Um dos piores foi o de 1204, quando uma cruzada acabou atacando e saqueando a cidade cristã de Constantinopla, deixando cicatrizes profundas na relação entre os cristãos do Oriente e do Ocidente. Em 1212, organizou-se uma cruzada formada por adolescentes, a “Cruzada das Crianças”. Seus participantes, na maioria, terminaram mortos ou vendidos como escravos.

A herança cruzada

Mas, afinal, qual foi a herança das cruzadas para o Ocidente?

Segundo os historiadores, elas deixaram diversas marcas negativas, como a separação da Igreja do Ocidente e do Oriente e um rastro de violência que fez aumentar a desconfiança entre cristãos e muçulmanos nos anos seguintes.

Em compensação, é inegável que a Europa, apesar de não ter conquistado seus objetivos, saiu fortalecida. As cruzadas reforçaram a autoridade dos reis, abrindo caminho para a criação dos Estados Nacionais. Elas também impulsionaram o comércio com o Oriente, enriquecendo as cidades italianas que iriam ter papel fundamental na sofisticação das transações financeiras até resultar na criação do sistema bancário. Além disso, reforçaram a identidade cristã no Ocidente. E paradoxalmente, apresentaram os costumes orientais aos ocidentais, dos tapetes às especiarias. Essas novidades gerariam curiosidade na Europa, o que impulsionaria a busca por outras terras. Como o Brasil.

Mas isso tudo é só metade da história. Volte à página 54 para conhecer o lado menos conhecido das cruzadas.

Para saber mais
Na livraria:
The Oxford Ilustrated History of The Crusades - Jonathan Riley-Smith (org.), Oxford University Press, Reino Unido, 2001
Dicionário Temático do Ocidente Medieval - Jacques Le Goff e Jean-Claude Schmitt (orgs), Universidade do Sagrado Coração, 2002
Os Templários - Piers Paul Read, Imago, 2000
O Livro de Ouro dos Papas - Paul Johnson, Ediouro, 1998



A VERSÃO DOS ÁRABES

A invasão bárbara
Foi um dia de terror. Em 15 de julho de 1099, milhares de guerreiros loiros entraram em Jerusalém matando adultos, velhos e crianças, estuprando as mulheres e saqueando mesquitas e casas. As ruas se transformaram numa imensa poça de sangue. Os poucos sobreviventes tiveram de enterrar os parentes rapidamente antes que eles próprios fossem presos e vendidos como escravos. Dois dias depois, não havia sequer um muçulmano em Jerusalém. Tampouco havia judeus. Nas primeiras horas da batalha, muitos deles participaram da defesa do seu bairro, a Juderia. Mas, quando os cavaleiros invadiram as ruas, os judeus entraram em pânico. A comunidade inteira, repetindo um gesto ancestral, reuniu-se na sinagoga para orar. Os invasores bloquearam as saídas, jogaram lenha e atearam fogo à sinagoga. Os judeus que não morreram queimados foram assassinados na rua.

A cena é narrada em As Cruzadas Vistas pelos Árabes, do libanês radicado na França Amin Maalouf. Seu livro é uma tentativa de contar as cruzadas do ponto de vista de quem estava do lado de lá. Para os cronistas muçulmanos, na verdade, não existiram cruzadas. As investidas cristãs em seus territórios ficariam conhecidas como as invasões dos francos (porque a maioria dos cruzados falava o francês), um período de terror e brutalidade na história do Islã.

Lá vêm eles

A primeira investida dos francos, ocorrida em 1096, três anos antes do terrível ataque a Jerusalém, não chegou a assustar o sultão turco Kilij Arslan, que comandava os territórios do atual Afeganistão até o que viria a se chamar, séculos depois, de Turquia. Liderado por um tal de Pedro, o Eremita, o grupo que se aproximava de Constantinopla com a ameaça de exterminar todos os muçulmanos da região mais parecia um bando de mendigos maltrapilhos. Entre os guerreiros, havia uma multidão de mulheres, velhos e crianças – um inimigo muito menos ameaçador do que os cavaleiros mercenários que o sultão estava acostumado a enfrentar.

Durante um mês, mais ou menos, tudo o que os cavaleiros turcos fizeram foi observar a movimentação dos invasores, que se ocupavam apenas de saquear as regiões próximas do acampamento onde foram alojados. Quando parte dos europeus resolveu partir em direção às muralhas de Nicéia, cidade dominada pelos muçulmanos, uma primeira patrulha de soldados do sultão foi enviada, sem sucesso, para barrá-los. Animado pela primeira vitória, o exército do Eremita continuou o ataque a Nicéia, tomou uma fortaleza da região e comemorou se embriagando, sem saber que estava caindo numa emboscada. O sultão mandou seus cavaleiros cercarem a fortaleza e cortarem os canais que levavam àgua aos invasores. Foi só esperar que a sede se encarregasse de aniquilá-los e derrotá-los, o que levou cerca de uma semana.

Quanto ao restante dos cruzados maltrapilhos, foi ainda mais fácil exterminá-los. Tão logo os francos tentaram uma ofensiva, marchando lentamente e levantando uma nuvem de poeira, foram recebidos por um ataque de flechas. A maioria morreu ali mesmo, já que não dispunha de nenhuma proteção. Os que sobreviveram fugiram em pânico. O sultão, que havia ouvido histórias temíveis sobre os francos, respirou aliviado. Mal imaginava ele que aquela era apenas a primeira invasão e que cavaleiros bem mais preparados ainda estavam por vir.

Ataque surpresa

Em meados de 1097, um ano depois da vitória sobre os homens do Eremita, os muçulmanos não estavam lá muito preocupados com a notícia da chegada de novos invasores. Mas a segunda leva de cavaleiros francos que marchava em direção aos seus territórios em nada se parecia com aqueles maltrapilhos ingênuos e despreparados. Bem protegidos com armaduras e escudos, os cavaleiros que agora chegavam não seriam presa fácil para as flechas lançadas pelos arqueiros turcos. Quando os muçulmanos se deram conta dessa diferença, já era tarde demais.

Em poucos dias, os cruzados invadiram a cidade de Nicéia e continuaram marchando como um verdadeiro furacão. Os exércitos turcos mal acabavam de lutar contra uma leva de invasores e, pronto, chegava um novo contingente ainda mais numeroso. Em pânico, a população de cidades como Antióquia avistava desesperada a chegada daqueles cavaleiros. Não havia nada a fazer. Alguns muçulmanos acreditavam até que se tratava do fim do mundo. Relatos do período diziam que o final dos tempos seria precedido pelo nascer de um gigantesco sol negro, vindo do Oeste, acompanhado de hordas de bárbaros. Se o sol negro ainda não havia aparecido, os bárbaros, ao menos, já davam as caras.

A nova ofensiva, que culminou com a brutal invasão de Jerusalém, em julho de 1099, alteraria para sempre a visão que o Oriente tinha do Ocidente. Os saques, estupros e assassinatos de crianças não eram nada condizentes com o tratamento que os próprios mulçumanos sempre deram aos cristãos e judeus que viviam em seus territórios. Quando eles chegaram a Jerusalém, no século 7, fizeram questão de preservar as igrejas cristãs e sinagogas judaicas. O acordo era claro: desde que esses povos não insultassem o profeta e não deixassem de pagar seus impostos, eles sempre teriam a liberdade para viver de acordo com suas crenças e suas próprias leis. Os poucos casos de governos hostis aos judeus e cristãos não passavam de exceções em longos períodos de convivência pacífica.

Com a queda de Jerusalém e a derrota para os francos, os mulçumanos aprenderam uma difícil lição: enquanto estivessem desunidos, o futuro do Islã estaria comprometido. Para que essa união fosse possível, contudo, seria necessário o surgimento de um líder respeitado pela maioria dos muçulmanos. Ele apareceu quase um século depois.

A reação islâmica

O homem que se transformaria no herói da reação muçulmana era um soldado curdo chamado Salah al-Din, conhecido no Ocidente como Saladino. Até hoje seu nome é venerado como símbolo da resistência contra o Ocidente – o próprio Saddam Hussein, conhecido pelas atrocidades cometidas contra os curdos de seu país, citou várias vezes o nome de Saladino aos iraquianos nos dias que antecederam a invasão americana.

Décadas após a fundação dos reinos cristãos no Oriente, os muçulmanos ainda não haviam conseguido retomar a maioria dos territórios perdidos. As disputas entre os diversos califas e sultões tampouco ajudavam na reconquista. Em 1174, ao tornar-se o soberano mais importante do mundo muçulmano, Saladino já pensava em como unir os estados islâmicos para uma contra-ofensiva.

A chave do sucesso de Saladino era um misto de profunda convicção religiosa e pragmatismo militar. Para derrotar os cruzados, ele pregava a união de todos os muçulmanos em torno da jihad, a guerra santa do Islã. Relatos contam que ele costumava reclamar que os muçulmanos não lutavam com o mesmo fervor dos cristãos. Após organizar os exércitos e treinar novas técnicas de combate, ele conseguiria o que muitos consideravam impossível: em 1187, reconquistou a cidade sagrada de Jerusalém, que havia 88 anos estava nas mãos dos cristãos. Após entrarem na cidade, muitos muçulmanos quiseram destruir a Igreja do Santo Sepulcro e matar todos os cristãos por vingança pelas atrocidades cometidas na invasão dos cruzados. Saladino, porém, fez questão de conter os ânimos dos seus soldados, preservando tanto a igreja quanto a vida dos cristãos.

Como já era esperado, a queda de Jerusalém foi um choque para o Ocidente. A cada derrota no front cristão, novas cruzadas eram enviadas ao Oriente, arrastando a batalha por décadas. O último bastião cristão na região só seria derrubado mais de um século após a tomada de Jerusalém por Saladino. O capítulo das cruzadas medievais terminaria apenas em 1291, quando os muçulmanos expulsaram os cristãos do Reino do Acre, ao norte de Jerusalém.

O legado da briga

Durante muito tempo, uma pergunta intrigou historiadores tanto do Ocidente quanto do Oriente: se os muçulmanos saíram vitoriosos das cruzadas, por que os estados islâmicos terminaram sendo ofuscados, no séculos seguintes, pela ascensão de potências européias?

Segundo a maioria dos pesquisadores, a ascensão européia tem menos ligação com as cruzadas e mais a ver com a debilidade dos governos muçulmanos da época. Essa fraqueza estava ligada a vários fatores, entre eles a falta de identidade árabe (desde o século 9, a maioria dos dirigentes muçulmanos era estrangeira, como os turcos seljúcidas) e a incapacidade de criar instituições estáveis – como os Estados em formação na Europa Ocidental.

O fato é que as cruzadas foram um marco nas relações entre ocidentais e orientais. Naquele momento, os “invasores bárbaros” eram os ocidentais cristãos e a grande potência era a muçulmana. Sobrou daquela guerra um ressentimento amargo, que extravasa de tempos em tempos, como tem acontecido com freqüência desde o ataque terrorista de 2001. Não são poucos os muçulmanos que atribuem o atraso econômico de seus países àquela agressão quase um milênio atrás – e que querem vingança por isso.

A vitória contra os francos e a ascensão de Saladino reforçaram no imaginário muçulmano a idéia de que é possível vencer o inimigo com altivez e senso de justiça. Além disso, as lutas contra os francos ensinaram também que os muçulmanos são mais fortes quando estão unidos – tese que até hoje permanece como uma utopia no Oriente. Mas até que ponto as cruzadas devem ser lembradas em tempos de guerra no Iraque?

“Não há por que ficar buscando na história motivos para reacender animosidades entre os dois povos”, diz o historiador Demant. “As cruzadas marcaram a história por apenas dois séculos. Já a convivência pacífica entre cristãos e muçulmanos sobrevive há mais de mil anos”.

Para saber mais
Na livraria:
As Cruzadas Vistas pelos Árabes - Amin Malalouf, Brasiliense, 1998
Islamic World, Ilustrated History - Francis Robinson, Cambridge University Press, Reino Unido, 2002
Uma História dos Povos Árabes - Albert Hourani, Companhia das Letras, 1991
Islã (Coleção Para Saber Mais) - Rodrigo Cavalcante, Superinteressante, 2003

FONTE: CAVALCANTE, Rodrigo. Os 2 lados das Cruzadas. Superinteressante. ed. 213. maio 2015. p. 52-61.


UM SIMPLES GESTO DE CARINHO




Como você tem cuidado do seu cônjuge? Não nos referimos apenas ao cuidado material, como comida pronta, roupa lavada, compra do mês abastecida, contas em dia. Isso tudo é importante na vida de um casal. Referimo-nos, porém, a seu relacionamento, suas atitudes e palavras para com o cônjuge. Você é carinhoso com ele? Pense em como era antes de se casar; e como é hoje. Melhorou?

Sim, antes de as responsabilidades e obrigações aumentarem, antes de os filhos nascerem parece que tudo era mais fácil, mais tenro, mais romântico... Aas situações mudam, porém lembre-se de que a pessoa com quem você se casou é a mesma. Por isso, não deixe que a lida diária, as preocupações com a sobrevivência, a pressão social ou os enganos da mídia mexam com seus valores e alterem o amor que sentem um pelo outro. Aquele que abençoou a união de vocês também não mudou. Seu amor é é eterno e capaz de suprir cada uma de suas necessidades.

Em Efésios 5:29, o apóstolo Paulo diz: “Ninguém jamais odiou a própria carne; antes, a alimenta e dela cuida, como também Cristo o faz com a igreja”. A palavra “cuida” nesse versículo também pode ser traduzida por “acaricia”, como em 1 Tessalonicenses 2:7. Cuidar aqui significa: ter um terno cuidado amoroso, manter quente, acalentar, acariciar. Veja como isso é importante. O Senhor, que já fez tudo por nós, morrendo na cruz para nos salvar e nos dar a vida eterna, ainda nos alimenta diariamente e nos “acaricia” com Sua presença e cuidado amoroso. Ele mantém Seu amor quente. E você? Tem deixado seu amor esfriar?

Vejamos um exemplo do Antigo Testamento de como um simples gesto de carinho salvou um casamento. Isto está em Gênesis 26:1-12. “Sobreveio fome à terra além da primeira havia nos dias de Abraão, foi Isaque a Gerar, avistar-se com Abimeleque, rei dos filisteus. Apareceu-lhe o SENHOR e disse: Não desças ao Egito. Fica na terra que eu te disser; habita nela, e serei contigo e te abençoarei” (VS. 1-3). “A fome” indica uma prova, um teste pelo qual eles passaram. “Ir ao Egito” representa buscar recursos no mundo. “Permanecer na terra” implica permanecer na base da promessa de Deus e de Seu cuidado.

Os versículos 6 a 10 prosseguem mostrando que Isaque ficou em Gerar. Mas, ao ser perguntado a respeito de Rebeca, sua mulher, temendo que os homens daquele lugar o matassem por causa da formosura dela, disse que era sua irmã. Certo dia, Abimeleque, rei dos habitantes de Gerar, olhando da janela, viu que Isaque acariciava a Rebeca (v. 8). Abimeleque percebeu que ela era sua mulher pela maneira como a acariciava. Por isso chamou a Isaque e o repreendeu, dizendo: “Que é isso que nos fizeste? Facilmente algum do povo teria abusado de tua mulher, e tu, atraído sobre nós grave delito”. Imaginem se Abimeleque não tivesse visto Isaque acariciando a esposa? Que teria acontecido?

Pense nisto: um simples gesto de carinho, e feito publicamente, não só mantém a chama do amor acesa no cônjuge, melhora a autoestima de qualquer um, como também envia uma mensagem aos “moradores da terra”: “Eu amo meu cônjuge e estou bem com ele”.

“Seja bendito o teu manancial, e alegra-te com a mulher da tua mocidade, corça de amores e gazela graciosa. [...] e embriaga-te sempre com as suas carícias” (Provérbios 5: 18-19).

FONTE: Jornal Árvore da Vida. ano. 25. n. 265. p. 7

NOTA: Já que os autores suprimiram, segue Provérbios 5, 18-19 na versão integral:


“Seja bendito o teu manancial, e alegra-te com a mulher da tua mocidade, corça de amores e gazela graciosa. Os seus seios te saciem todo o tempo e embriaga-te sempre com as suas carícias.”

domingo, 25 de outubro de 2015

COMENTÁRIOS AO DISCURSO DA SERVIDÃO VOLUNTÁRIA DE ÉTIENNE DE LA BOÉTIE






Por Luiz Carlos Silva

Étienne de La Boétie afirma haver três tipos de tiranos:
1°) os que o obtêm o poder pela força das armas;
2°) aqueles que o herdam por sucessão da raça; e
3°) os que chegam ao poder por eleição do povo.

Os que obtêm o poder pelo direito da guerra, agem como em terra conquistada; quanto aos reis, nascidos e criados no seio da tirania, consideram os povos a eles submetidos como servos hereditários, têm todo o Reino e seus súditos como extensão de sua herança. Quanto ao eleito pelo povo, não nos enganemos: ao se ver alçado a um posto tão elevado, tão alto - "lisonjeado por um não sei quê que chamam de grandeza" - toma a firme resolução de não abrir mão da rês pública. "Quase sempre considera o poderio que lhe foi confiado pelo povo como se devesse ser transmitido a seus filhos".

Para La Boétie, é essa ideia funesta que o faz superar todos os outros tiranos em vícios de todo tipo e até em crueldades.

Para consolidar a nova tirania e aumentar a servidão, afastam toda e qualquer ideia de liberdade presente no espírito do povo. Em resumo, independente de como chegam ao poder, o espírito de quem governa subjugando as massas é quase sempre o mesmo: os conquistadores vêem o povo como uma presa a ser dominada; os sucessores como um rebanho que naturalmente lhes pertence e, por fim, os eleitos tratam-no como bicho a ser domado.

O trecho abaixo exemplifica que, independente da forma de governo, a tirania é sempre funesta ao povo:

“Assim, para dizer toda a verdade, encontro entre eles alguma diferença, mas não vejo por onde escolher. Sendo diversos os modos de alcançar o poder, a forma de reinar é sempre idêntica. Os eleitos procedem como quem doma touros; os conquistadores como quem se assenhoreia de uma presa a que têm direito; os sucessores como quem lida com escravos naturais" (LA BOÉTIE).

Salienta, ainda:

“Para que os homens, enquanto neles resta vestígio de homem, se deixem sujeitar, é preciso uma das duas coisas: que sejam forçados ou iludidos. Iludidos, eles também perdem a liberdade; mas, então, menos frequentemente pela sedução de outrem do que por sua própria cegueira. O povo parece esquecer que possui direitos e que é a base do governo, e essa alienação é tão profunda que se torna quase impossível despertá-lo para a realidade. Serve tão mansamente e de tão bom grado que, ao observá-lo no torpor, cegueira e loucura da servidão, poderia-se dizer não que o povo tenha perdido totalmente a liberdade, mas que nunca a conheceu verdadeiramente”.

Étienne enfatiza: “No início serve-se contra a vontade e à força; mais tarde, acostuma-se, e os que vêm depois, nunca tendo conhecido a liberdade, nem mesmo sabendo o que é, servem sem pesar e fazem voluntariamente o que seus pais só haviam feito por imposição. Assim, os homens que nascem sob o jugo, alimentados e criados na servidão, sem olhar mais longe, contentam-se em viver como nasceram; e como não pensam ter outros direitos nem outros bens, além dos que encontraram em sua entrada na vida, consideram como sua condição natural a própria condição de seu nascimento”.

Uma forte e talvez primeira razão da servidão voluntária é o costume ou hábito. Através dele se ensina a servir e a ser escravizado. A perpetuação dos mesmos acontecimentos e atitudes desagua naquela premissa popular "sempre foi assim". E à medida que o tempo passa, leva o povo não somente a engolir, pacientemente, os germes venenosos que induzem à escravidão, mas até mesmo a desejá-la: "pois por melhor que seja, o natural se perde se não é cultivado, enquanto o hábito sempre nos conforma à sua maneira, apesar de nossas tendências naturais."

Em assim sendo, pode-se nascer servo, como no período de Étienne ou das monarquias antigas e ainda existentes, ou se acomodar e sujeitar-se ao discurso midiático estipulado pelas falsas democracias atuais. Dessa sujeição decorre naturalmente a segunda razão da servidão voluntária: a Covardia! Sob a tirania (mesmo que disfarçada), inevitavelmente os homens se acovardam e se escravizam.

La Boétie preconiza: “Os escravos não têm ardor nem constância no combate. Só vão a ele como que obrigados, por assim dizer, embotados, livrando-se de um dever com dificuldade; não sentem queimar em seu coração o fogo sagrado da liberdade, que faz enfrentar todos os perigos e desejar uma bela e gloriosa morte que nos honra para sempre, junto aos nossos semelhantes; entre os homens livres, ao contrário, é a discussão, polémica, cada qual melhor, todos por um e cada um por todos; sabem que colherão uma parte igual no infortúnio da derrota ou na felicidade da vitória; mas os escravos, inteiramente sem coragem e vivacidade, têm o coração baixo e mole, e são incapazes de qualquer grande ação. Disso bem sabem os tiranos; assim, fazem todo o possível para torná-los sempre mais fracos e covardes. Artimanha dos tiranos: bestializar seus súditos!”

O poder seja de qualquer época, sempre disponibiliza instrumentos poderosos de alienação popular. A máxima do pão e circo sempre se revigora. À proporção que a sociedade parece evoluir, sofisticam-se os mecanismos para a manipulação da vontade, comportamento e colaboração voluntária ao sistema governamental. Basta observar que a globalização e a Internet muito mais escravizam e servem ao poder constituído, do que comunicam para a liberdade e iluminam verdadeiramente as consciências. O povo não percebe que o poder, através dos tempos, se camufla de forma camaleônica em mantenedor da tirania, a fim de adormecê-lo. E para transformá-lo em súdito da escravidão, disponibilizam-se todo e qualquer meio de entretenimento: drogas, shows, prostituição, jogos, carnaval, enfim, toda sorte de apelos para o entorpecimento da mente. Torna-se fácil manipular e não há necessidade de se criar mecanismos mais inteligentes para precaver-se contra o povo ignorante e miserável, fácil e bestialmente entretido e domesticado com tolices vãs.

A citação abaixo, assustadoramente nos remete à constatação de que as semelhanças do discurso do século XVI aos nossos dias não é mera coincidência:

“Os tiranos romanos foram longe” (na política do pão e circo), “festejando frequentemente os homens das decúrias” (homens do povo, agrupados de dez em dez, e alimentados às custas do tesouro público), “empanturrando essa gente embrutecida e adulando-a por onde é mais fácil de prender, pelo prazer da boca. Por isso, o mais instruído dentre eles não teria largado sua tigela de sopa para recobrar a liberdade da República de Platão. Os tiranos distribuíam amplamente o quarto de trigo, o sesteiro de vinho, o sestércio” (bolsa-família romana); “e então dava pena ouvir gritar: Viva o Rei! Os broncos não percebiam que, recebendo tudo isso, apenas recobravam uma parte de seu próprio bem, e que o tirano não teria podido dar-lhes a própria porção que recobravam se antes não a tivesse tirado deles mesmos. O que hoje apanhava o sestércio, o que se empanturrava no festim público abençoando Tibério e Nero por sua liberalidade, no dia seguinte, ao ser obrigado a abandonar seus bens à cobiça, seus filhos à luxuria, sua própria condição à crueldade desses magníficos imperadores ficavam mudos como uma pedra e imóvel como um tronco”.

Torna-se mister ressaltar que uma nação possui história, memória e tradição. E está enraizado na tradição brasileira o orgulho de ser um povo pacífico. Entretanto, a violência atinge índices alarmantes, principalmente entre os jovens. Desta forma, a aptidão para a paz não pode ser confundida com a mansidão. Sob pena de nossa sociedade incorporar a subserviência, ser facilmente iludida e enfeitiçada; e transformar-se em uma massa de ignorantes! Percebe-se hoje um paradoxo, pois a violência é efeito (e não causa) da servidão voluntária.

Reportamo-nos sobre a terceira razão da servidão voluntária, a Participação na Tirania.

La Boétie aponta quem são os interesseiros que se deixam seduzir pelo esplendor dos tesouros públicos sob a guarda do tirano, os que, em conluio, garantem e asseguram seu poder: “são sempre quatro ou cinco homens que o apoiam e que para ele sujeitam o país inteiro. Sempre foi assim: cinco ou seis obtiveram o ouvido do tirano e por si mesmos dele se aproximaram ou então, foram chamados para serem os cúmplices de suas crueldades, os companheiros de seus prazeres, os complacentes para com suas volúpias sujas e os sócios de suas rapinas. Tão bem esses seis domam seu chefe que este se torna mau para com a sociedade, não só com suas próprias maldades, mas também com as deles. Esses seis têm seiscentos que debaixo deles domam e corrompem, como corromperam o tirano. Esses seiscentos mantêm sob sua dependência seis mil, que dignificam, aos quais fazem dar o governo das províncias ou o manejo dos dinheiros públicos, para que favoreçam sua avareza e crueldade, que as mantenham ou as exerçam no momento oportuno e, aliás, façam tanto mal que só possam se manter sob sua própria tutela e instar-se das leis e de suas penas através de sua proteção. Grande é a série que vem depois deles. E quem quiser seguir o rastro não verá os seis mil mas cem mil, milhões que por essa via se agarram ao tirano, formando uma corrente ininterrupta que sobe até ele. Daí procedia o aumento do poder do senado sob Júlio César, o estabelecimento de novas funções, a escolha para os cargos - não para reorganizar a justiça, mas sim para dar novos sustentáculos à tirania. Em suma, pelos ganhos e parcelas de ganhos que se obtêm com os tiranos chega-se ao ponto em que, afinal, aqueles a quem a tirania é proveitosa são em número quase tão grande quanto aqueles para quem a liberdade seria útil. Que condição é mais miserável que a de viver assim, nada tendo de seu e recebendo de um outro sua satisfação, sua liberdade, seu corpo e sua vida! Mas eles querem servir para amealhar bens. O que torna um amigo seguro do outro é o conhecimento de sua integridade. Entre os maus, quando se juntam, há uma conspiração, não uma sociedade; Eles não se entre-apoiam mas se entre-temem. São cúmplices”.


Quero justificar a longa citação pelo seu teor de atualidade, quer dizer, todo sistema de poder se aglutina em torno de uma rede de servidão. Se o seu princípio se sustentar na tirania, tornar-se-á frágil por natureza, de onde, a todo instante assomam-se os escândalos, pois o tirano não tem amigos, não ama nem é amado. Na ilusão de que estamos livres, fundamentam-se os três caminhos que nos levam à servidão (hábito, covardia e participação). Não estamos verdadeiramente livres, mas podemos conquistar a justiça que liberta. Posto que se a servidão voluntária é inerente ao ser, a citação de Aristóteles traz esperança: "A Justiça é um hábito que nunca morre".