segunda-feira, 25 de abril de 2016

A RIQUEZA ESPIRITUAL DO ISLAMISMO ESOTÉRICO




Por Serge Hutin, FRC*

O primeiro volume intitulado “Desde os Primórdios até a Morte dos Averroes” (1198), da importante publicação em três volumes da “História da Filosofia Islâmica”, surgiu em 1964. Foi publicado em inglês em 1993 como a “History of Islamic Philosophy”. A trilogia foi escrita pelo Professor Henry Corbin, que era diretor dos estudos islâmicos da Universidade de Sorbonne em Psaris, e que também lecionava todos os anos na Universidade de Teerã. Este livro é um testemunho vivo de alguém que compreendeu plenamente o significado mais elevado das correntes iniciáticas, teosóficas e místicas do Islamismo.

Meu objetivo não é tentar apresentar um resumo adequado, mas brando do magnífico panorama espiritual que Corbin nos oferece, mas extrair dele alguns elementos que podem nos tornar plenamente conscientes da imensa riqueza espiritual, ainda tão displicentemente islâmico em suas formas tradicionais.


O significado secreto do Corão

O Islamismo é uma religião que depende de um livro inspirado, o Corão. A religião Muçulmana de fato forma o terceiro – e último revelado – ramo do que pode ser chamada de tradição Abraâmica: Judaísmo, Cristandade e Islamismo são todas “religiões do bloco” da mesma revelação monoteísta.

Como a Bíblia, o Corão está sujeito a dois tipos de investigações, ambos totalmente genuínos. Podemos ver nele “as regras de viver neste mundo e o guia para além deste mundo”. Por um lado, existem as interpretações literais e, por outro, a exegese esotérica. O problema do “verdadeiro significado” do trabalho sagrado ditado ao Profeta Maomé não poderia de fato surgir para os iniciados do Islamismo que são totalmente leais às convicções espirituais e práticas religiosas, enquanto, ao mesmo tempo, reconhecem a existência real de homens inspirados fora de seu caminho tradicional. Por outro lado, esta tolerância ativa e manifestada, por um lado, no reconhecimento significativo do fato de que o conhecimento mais elevado de pensadores da antiga Grécia também veio do “nicho das luzes da profecia” e, por outro, na ausência entre os iniciados Muçulmanos de qualquer desconfiança com relação aos sinceros representantes da árvore Abraâmica assim como de outros caminhos. Esta forma extrema de tolerância resulta até na admissão de Cristãos e Hindus entre seus estudantes por parte de alguns Mestres Sufis no Irã e no Paquistão.

Mas, para chegar ao exato problema das exegeses esotéricas do Corão, Corbin declara o princípio bem claramente: “Indicar como meta a obtenção do significado espiritual implica que existe um significado que não é o significado espiritual, e que entre este e aquele que não existe, existe talvez uma graduação, levando à pluralidade de significados espirituais”.

E ele cita – muitas páginas adiante – uma declaração notável do 6° Imam (Guia) dos Xiitas, Jafar as-Sadiq (720 - 765 d.C.): “O Livro de Deus se constitui de quatro coisas. Existe o mundo revelado; existe a compreensão alegórica; existem os significados encobertos relacionados ao mundo oculto; existem as doutrinas espirituais mais elevadas. A palavra literal é para os mortais comuns. A compreensão alegórica pertence aos Amigos de Deus. As doutrinas espirituais mais elevadas pertencem aos profetas”.

Esta passagem pode ser interpretada da seguinte forma: “ A palavra literal é para ser ouvida, a alegoria é para a compreensão espiritual; os significados ocultos são para a visão contemplativa; as doutrinas mais elevadas dizem respeito à realização do todo do Islamismo espiritual”.

Por que o esoterismo é necessário? A razão é óbvia. O grande místíco sufi persa Al Hallaj (858-922 d.C.) não se preocupava com relação a revelar sua grande iluminação publicamente para o profano nas ruas de Bagdá. Muitos mestres sufis consideravam que não era apropriado partilhar o misticismo com as massas e isso resultou na execução dele onze anos depois. Não apenas os crentes profanos e comuns entre eles, mas até mesmo os mais devotados não conseguem compreender as verdades secretas, mas eles se arriscam a fazer com que os iniciados pareçam ímpios e sacrilégios que desprezam as crenças e práticas da religião exotérica; que foi o que aconteceu com o Al-Hallaj.

A citação anterior nos permite compreender a existência não apenas de um significado esotérico do Corão, mas de vários significados hierárquicos, correspondendo aos estágios progressivos do iniciado na direção da iluminação suprema. A diferenciação dos significados no Corão é parte integrante na hierarquia espiritual necessária dentro da humanidade. Existem três categorias:

1 - O profano comum;
2 - Aqueles que têm o potencial de se tornar possíveis iniciados (daí a necessidade de os iniciados entrarem em contato com eles);
3 - Os iniciados que estão em si divididos em vários graus de acordo com seu grau de avanço pessoal no caminho.


A hierarquia iniciática

As iniciações tradicionais muçulmanas são geralmente desconhecidas quando não distorcidas de uma forma grotesca, como demonstrado em relatos suspeitos que ainda circulam sobre o assunto. Na Europa, ouvimos histórias confusas sobre os dervixes, os Ismailis (pelo dato da Aga Khan, que é mais ou menos como se fosse seu “papa”, ser uma das personalidades de que a mídia mundial fala de bom grado) e os “Assassinos”, os seguidores de Hassan – e Sabbah, o “Velho da Montanha” e amigo do cientista e poeta Omar Khayyam, que acabaram sendo desruídos pelos Mongóis quando arrasaram a impressionante Fortaleza de Alamut.

Corbin corrige todas as idéias claramente simplistas sobre esse assunto. Particularmente, faz justiça a todas as histórias negras (como um romance gótico) divulgadas sobre os “Assassinos” por seus inimigos em primeiro lugar, e depois por gerações de autonomeados “historiadores” ocidentais especializados em sociedades secretas. Sobre o Sufismo, os livros de Corbin levantam essa questão bem claramente. O que são os Sufis? Trata-se de muçulmanos místicos que se reúnem em comunidades iniciáticas, muitas vezes de uma forma mais ou menos monástica, e que se agrupam em várias Ordens Dervis.

A característica do Sufismo tradicional é sempre se desenvolver em uma hierarquia iniciática. Para nos restringirmos ao passado, vamos tomar como exemplo a sociedade secreta dos Ikhwan as-Saafa ou “Irmãos da Pureza”, que tinham seu centro em Basra, no Iraque, durante a ascensão do Califado de Abbasid. Eles escreveram 52 tratados sobre matemática, ciências naturais, psicologia e teologia. Seus iniciados de dividiam em quatros graus, que correspondiam com a idade, com iniciação possível após os 40 anos. Aos 40 anos de idade, os membros começavam sua progressão para a iluminação. Aos 50 anos, eles poderiam mesmo estar prontos para perceber diretamente a luz espiritual na totalidade das coisas, no coração microcósmico da humanidade como no Grande Livro da Natureza. Evidentemente as idades de 40 e 50 anos pretendem caracterizar a maturidade iniciática e não devem ser confundidas com o tempo temporal da sociedade civil.  A idade de 40 ou 50 anos (33 é também frequentemente citado na tradição Cristã) é a idade em que os iniciados estão finalmente prontos, como Dante, para receber a grande iluminação, que poderia, de acordo com o real avanço do peregrino no caminho, se manifestar antes ou depois da maturidade física.

No trabalho de Corbin, encontramos capítulos detalhados sobre uma área até menos conhecida pelos europeus do que o Sufismo, a do Xiismo, de que os Ismailis são um dos dois grandes ramos históricos. O fenômeno Xiita coloca-se totalmente dentro das perspectivas de uma busca perseverante e ardente, no verdadeiro sentido esotérico, do caminho realmente espiritual do todo da Revelação Islâmica e, consequentemente, da História Islâmica. Mas esse esoterismo que se desenvolveu depois do Profeta é mais especialmente baseado no problema da autoridade suprema tanto temporal quanto espiritual do Islã. Portanto, o Xiismo se baseia na crença no Imamato, isto é, em indivíduos considerados como “Guias” (Imam significa “guia”) para toda a extensão da história desde a morte de Maomé (considerado como sendo o “Selo dos Profetas”, terminando o período dos profetas) até o fim do ciclo terreno de manifestação.

A concepção histórica do Xiismo, portanto, remota à época do próprio Maomé. Os Xiitas foram, desde o ínicio, aqueles que, ao contrário dos Sunitas (Muçulmanos que queriam manter a rigorosa observância do que é chamado de Código Sunnan das tradições orais que complementam o Corão), queriam colocar o Islã sob a governância suprema de um Imam manifestado na pessoa santa de Ali, primo e genro do Profeta.

Enquanto os “Dozeiros” Xiitas reconhecem – como indicam seus nomes – doze imans sucessivos começando por Ali, os Ismailis reconhecem apenas sete. O contraste verdadeiro é de fato apenas aparente, pois as implicações esotéricas correspondem e aparecem como complementares. Corbin nos leva à seguinte observação: “Enquanto a imamologia dos Dozeiros simbolicamente corresponde às doze constelações do Zodíaco (como as doze fontes que jorram da rocha atingida pelo cajado de Moisés), a imamologia dos ‘setenários’ do Ismailianismo simboliza os Sete Céus Planetários e suas estrelas móveis”.

Até mesmo a idéia de governo iniciático secreto por debaixo dos panos da história visível é totalmente tradicional em muitas formas de esoterismo. No Sufismo Suni encontramos, sob uma forma diferente daquela dos Xiitas, a idéia de uma hierarquia esotérica na qual o Qutb (o pólo ou eixo místico) é o ápice. Neste caso, deveríamos lembrar que tradições desse tipo atuam em vários níveis no dominio histórico assim como na iniciação pessoal. Também não se deve esquecer que os iniciadores humanos ainda têm como missão e papel permitir que o iniciado entre gradativamente em contato com “a entidade espiritual”, como o “Anjo da Filosofia” (um termo amplamente usado no esoterismo xiita), e com seu guia pessoal, o “Mestre Interno” que aparece apenas quando o estudante está pronto. Isto então explica a maneira pela qual os documentos esotéricos são simultaneamente colocados sob um ponto de vista que Corbin chama de “meta-história” e no nível do mundo visível neste plano. Isto fica óbvio no problema central da sucessão dos Grandes emissários no plano terreno.

Com relação a isso, Corbin cita um texto maravilhoso do poeta e filósofo Ismailiano persa Nasir-e Khusraw (1004-1088 d.C.): “Religião positiva é o aspecto exotérico da idéia, e a idéia é o aspecto esotérico da religião positiva. A religião positiva é o símbolo; a idéia é o simbolizado. O exotérico está em fluxo perpétuo com os ciclos e os períodos do mundo; o esotérismo é uma energia divina que não está sujeita a tornar-se”.

No decorrer dos acontecimentos neste mundo, o determinismo invisível sempre aparece através de uma forma visível. Isso é essencial na verdadeira compreensão da idéia tradicional dos ciclos da história. Acontecimentos terrenos só podem ser explicados em relação a “um drama no Céu”; na verdade, eles preparam o fim. No esoterismo islâmico, assim como nas perspectivas mais bem conhecidas na Europa do Apocalipse Cristão, o problema dos “últimos dias” desempenha um papel determinante.

No Xiismo, eles falam sobre o 12° ou último Imam, o “Imam do Tempo”, o Imam “oculto dos sentidos, mas presente no coração”. Desaparecido deste plano, “o Imam oculto” é, no entanto, acessível aos iniciados, gradativamente se tornando seu guia invisível pessoal, seu mestre interno. Até a hora do Milênio, o “Imam escondido” permanece apenas visível em sonhos ou manifestações pessoais que têm uma característica “visionária”.  Mas, quando o ciclo presente chegar a um fim, o último Imam, o Mestre Interno dos Xiitas, vai se tornar manifesto no plano terreno. É ele que vai presidir a Aurora Dourada, o advento da Nova Era. No final do presente ciclo então, o Mahdi, o “Imam oculto” que vive escondido desde 872, vai proporcionar revelação total e realização suprema.


A iluminação

As formas iniciáticas que surgiram no Islamismo pretendiam – como todos os caminhos semelhantes, baseados ou não numa religião exotérica – capacitar a luz interna a se irradiar de dentro. No Sufismo, portanto, encontramos exercícios que têm como objetivo internalizar a revelação Islâmica.

Na busca da plena iluminação, o iniciado vai reviver a experiência que teve o próprio Profeta, especialmente no tempo de seu Mi’raj - ou ascensão - uma experiência durante a qual Maomé, depois de ter sido transportado em espírito a Jerusalém, se elevou pelos sete céus até o trono de Alá. Da mesma forma, os místicos Sufis tentam compreender o Corão internamente de alguma forma, tentando encontrar, através de uma pronúncia correta dos Suras Corânicos, o mistério da “Enunciação do Livro Santo” original.

Em última análise, a exegese do Corão vai se alicerça no paralelo entre as vicissitudes da história e as formas nas quais a alma atinge a iluminação libertadora. Por exemplo, o maravilhoso exemplo, no Sura 95 (at-Tin), da oliveira que cresce no Monte Siani é interpretado da seguinte forma por um autor Ismaili anônimo: “ Este Sura significa que o peregrino místico percebe que sua própria personalidade, da mesma forma que o fez Moisés, nada mais é do que o “Sinai”, o santuário interno onde a Forma teofânica pode brilhar... a Luz Divina”.

Ser capaz de contemplar “na Alma da alma” e ser capaz de irradiar a Luz Divina dentro de nosso coração, este é o objetivo que o peregrino místico enfoca e vai alcançar quando a iluminação tiver finalmente desabrochado nele. Eis uma citação do grande Sufi Persa Abu Yazid Bastami (804-874 d.C), que desempenhou um papel importante na solidificação do conceito de amor divino no cerne do Sufismo: “Quando finalmente eu contemplei a verdade através da verdade, eu vivi a verdade através da verdade e existi na verdade pela verdade em um presente eterno, sem fôlego, sem palavras, sem audição, sem conhecimento, até que Deus tivesse transmitido a mim um conhecimento impulsionado por Deu conhecimento, uma linguagem transmitida de Sua Graça, um olhar moldado em Sua Luz”.

Irradiar uma Luz Divina dentro de nós e nos perdemos nela, eis o que vem a ser a Grande Iluminação. Eis mais uma passagem do místico persa al-Ghazali (1058-1111 d.C) que o professor Corbin cita: “a mariposa que se tornou amante da chama tem a luz dessa aura como alimento desde que permaneça a uma certa distância dela. É o presságio desta iluminação que amanhece que ao mesmo tempo a chama e lhe dá as boas-vindas. Mas ela precisa continuar voando até que ela a apanha. Quando a alcançou, não cabe mais a ela ir em direção à luz. A chama não é mais seu alimento, mas ela é o alimento da chama. E é ai que está o grande mistério. Num momento uma fugitiva, ela então se torna seu próprio amor, já que ela é a chama. E isso é perfeição.”

E é aqui que encontramos o objetivo de todo treinamento iniciático. Sohravardi (ou Suhrawardi, em árabe), um grande grupo filósofo persa (1155-1191 d.C), demonstra ser um autêntico iniciado quando nos conta que a alma humana deve rasgar-se para longe das trevas de seu “exílio ocidental”, ou seja, do mundo da matéria sublunar, para avançar na “direção do oriente”, de onde vem a Luz. Pelo simples ato de serem conscientes de si mesmo, os seres de luz vão se fazer presentes uns para os outros – e, observe bem isso – experimentando um dos privilégios do estado de Rosacruz, no exato sentido do termo.


A alquimia

Nas terras islâmicas, a alquimia prosperou. Para citar apenas um nome, o do ilustre Jabir ibn Hayyan (Geber no Ocidente), discípulo do 6° Imam Já’far as-Sadiq, a quem se atribuiu a definição do Hermetismo como “a ciência do equilíbrio”.

É uma questão, de fato, de se encontrar a relação que existe em cada corpo do manifestado e do oculto. Essas operações se aplicam ao material assim como ao espiritual, como Crobin nos destaca com toda propriedade: “É a transmutação da alma voltando a si mesma que vai afetar a transmutação do corpo. A alma é exatamente o local dessa transformação”. A alquimia, com seus segredos maravilhosos de total transformação humana era, sem dúvida, conhecida por muitos iniciados muçulmanos, tanto dentro do Xiismo quanto dentro das Ordens Sufis. O hermetismo islâmico provou ser um dos ramos importantes da filiação alquímica tradicional.

Henry Corbin conseguiu mostrar claramente em seu notável trabalho “Corps spirituel et Terre Celeste” (Corpo Espiritual e Terra Celestial), que é impossível compreender qualquer coisa das operações alquímicas sem vê-las como marcado os estágios de um caminho iniciático, a peregrinação espiritual na direção da redescoberta do Divino dentro de si. É apenas dessa forma que é possível compreender o sentido exato deste ensinamento do Imam Ja’far: “A forma humana é a maior evidência pela qual Deus confirma Sua Criação. É o livro que ele escreveu com Sua própria mão. É o templo que Ele construiu através de Sua sabedoria. É a reunião de todos os universos”.

É também bastante explicita a seguinte declaração do 6° Imam dos Xiitas: “A luz do Imam no coração dos crentes é mais brilhante do que o Sol, que espalha sua luz”. E a regra de ouro de todo treinamento iniciático e de toda disciplina esotérica se encontra no dizer deste Ismaili: “Aquele que conhece a si mesmo, sonhece seu Senhor”.

Com relação ao contato entre iniciados muçulmanos e cristãos, isso mereceria algumas páginas. Vamos nos contentar em lembrar os contatos , sem dúvida estabelecidos, entre os Cavaleiros Templários e os muçulmanos que formavam os assim chamados “Assassinos”. Não só todas as tradições esotéricas se encontram no ápice, mas seus relacionamentos neste plano também são uma realidade incontestável.
“O sinal do amor de Deus é outorgar três atributos àquele que O ama: uma generosidade como a do Mar, uma bondade como a do Sol e uma humildade como a da Terra”.  Yazid Bastami.

FONTE:
HUTIN, Serge. A Riqueza Espiritual do Islamismo Esotérico. Disponível em: <http://varadourosagrado.blogspot.com.br/2010/10/riqueza-espiritual-do-islamismo.html>. Acesso em: 25 abr. 2016.


O IMAM




Por Al-Farabi (865 ? - 950)

Eis como deve ser o chefe que não é dominado por nenhum outro.

Ele é o Imam; é o Senhor da Cidade Ideal; é também o Senhor da Nação Ideal e de todo o Território habitável da Terra. Mas esse lugar só pode ser concedido àquele que reuniu em si doze qualidades inatas:

A primeira é que ele possua suas faculdades plenamente e seus poderes sejam compatíveis com os atos que ele deve realizar, de modo que ao empreender um trabalho ele o realize facilmente.

A segunda é que de um modo inato ele seja dotado de boa compreensão e de boa interpretação para tudo aquilo de que se [ale; Assim ele realmente saberá o que queira dizer seu interlocutor, tal como este último queria expressar.

A terceira é que ele retenha bem o que compreenda, veja, ouça e apreenda. Em uma palavra, ele nada deve esquecer.

A quarta é que ele seja perspicaz quando veja uma coisa. Que ao menor indício ele a perceba, graças unicamente a esse indício.

A quinta é que ele possua uma boa elocução, de modo que sua língua enuncie claramente o que ele queira dizer e de uma forma completa.

A sexta é que ele ame a instrução e o aumento de seus conhecimentos.

Que ele seja atraído por isto, não se cansando da cultura nem sentindo nenhum menosprezo pelo esforço despendido.

A sétima é que ele não tenha nenhuma avidez pela bebida, pela comida e pelo prazer carnal. Que evite naturalmente o jogo e deteste os prazeres que dele decorrem.

A oitava é que ele ame a verdade e os que são verdadeiros; que odeie a mentira e os mentirosos.

A nona é que ele seja dotado de grandeza de alma, que ame a generosidade e que sua alma se eleve naturalmente acima das baixezas e tenda para o que seja nobre.

A décima é que ele despreze o ouro e a prata e que para ele pouco representem todos os bens da Terra.

A décima primeira é que ele ame naturalmente a justiça e os justos e que odeie a injustiça e a tirania, assim como os que as cometam. Que ele use de equidade para com sua família e para com os Outros homens e incite os homens neste sentido. Que ele compense as vítimas da tirania, dando a cada uma o que considere belo e bom.

A décima segunda é que ele tenha uma vontade firme, decidida e audaciosa, para empreender sem medo e sem fraquejar o que ele ache que deva cumprir.

Todas estas qualidades reunidas num só indivíduo são uma coisa difícil.


Por isto é que se encontram bem poucos homens naturalmente assim dotados. Eles existem de tempos em tempos. Mas se encontramos na Cidade Ideal um homem adulto que tenha as seis primeiras condições ou cinco das doze condições, este homem poderá então ser considerado um Mestre. E se acontecer de não ser encontrado um homem assim em determinada época, então se manterão as leis e tradições estabelecidas pelo primeiro Mestre e seus discípulos que se sucederam na Cidade e se trabalhará com base nestas leis e tradições. E eles serão confirmados em sua função.

sábado, 23 de abril de 2016

A MESQUITA NASIR AL-MOLK





  
LUZES DO CÉU

O sagrado ocupa espaço e pode ser tocado com as mãos e contemplado pelo olhar. Essa experiência, por mais subjetiva que possa parecer, é inegável nos lo­cais de culto, onde o talento e a inspiração dos maiores artistas, conhecidos ou anônimos, de todos os tempos, culturas e religiões da terra, se tornaram imortais. Primícias da produção estética da humanidade, os recintos de culto de extrema beleza como a Mesquita Nasir al­-Molk materializam em um espaço a intuição do sagrado.


Culto à luz 

O Irã teve enorme influência na arquitetura religiosa do Oriente Médio, onde a areia, a argila e a cal, frágeis matérias-primas da região, moldadas por técnicas perfeitas e revestidas de ouro e de corantes naturais, formam ambientes de comovente harmonia, milimetricamente calculados e decorados com perfeição por artistas inspirados na fé.

A mesquita tradicional islâmica xiita de Nasir al-Molk – para os iranianos: Masjed-e Naseer ol-Molk –, situada na cidade de Shiraz, ao sul do Irã, com vitrais multicores, abóbadas e colunas revestidas de azulejos ge­ométricos coloridos ou dourados e com o piso vitrificado e forrado com tapetes de lã natural, é um dos mais surpreendentes e inspiradores templos conhecidos. Quando os vitrais pro­jetam no ambiente sagrado a luz matinal, a atmosfera de mistério e espiritualidade eleva o templo à mais alta nobreza da produção cultural humana.

Construída entre 1876 e 1888, por desejo do príncipe Mirza Hasan Ali Nasir al Molk, da dinastia Qajar, e idealizada pelos arqui­tetos e decoradores Muhammad Reza Kashi e Muhammad Hasan, a mesquita tem quase 130 anos de frequência cotidiana de fiéis, como lugar de oração e estudo. Atualmente é mantida pela Fundação Nasir al-Molk, que dedica a maior parte de sua renda anual para a assistência aos pobres e para o cuidado e a manutenção desse precioso patrimônio histórico e simbólico do povo iraniano e da humanidade.

A população do Irã é herdeira cultural do império persa e de quase 18 séculos de prática do masdeísmo, a fé no deus Ahura Masda, mais conhecida por zoroastrismo, fundado pelo líder espiritual Zaratustra (em persa) ou Zoroastro (em grego). Ele, que viveu em época incerta, entre os séculos 10º e 7º a.E.C. (antes da Era Comum ou Era Cristã), era médico e sonhava com o bem-estar integral das pessoas, em uma sociedade que unisse uma espiritua­lidade harmoniosa e a boa qualidade de vida. Quando a conquista árabe do século 12 impôs o islã como religião nacional, a espiritualida­de de Maomé sofreu benéfica influência do ethos cultural e religioso masdeísta do povo iraniano. Em um ambiente árido e pobre no aspecto da variedade de elementos naturais, a luz, vinda do sol ou do fogo, foi o principal símbolo religioso persa. Os templos masdeís­tas, até hoje em atividade no Irã, cultuam o fogo, enquanto as mesquitas filtram os raios do sol que inundam os ambientes de oração.

Canta um antigo hino do Avesta, o texto li­túrgico masdeísta, proclamado por sacerdotes que cuidavam de rebanhos e representavam um povo de pastores: “Submeto todos os bens do mundo Ahura Mazda, o deus bom, de boas medidas/santo, brilhante e glorioso, do qual vêm todas as coisas excelentes: de quem vêm o boi, a santidade (Ahsa), a luz e a felicidade que se junta à luz” (citado por Yves Lambert, em O Nascimento das Religiões da Pré-História às Religiões Universalistas, p. 351).


A luz no Alcorão Sagrado

O islamismo foi fundado entre os séculos 6º e 7º e herdou as tradições judaicas, cristãs e masdeístas, que circulavam ao lado de mercadorias e culturas, nas grandes rotas de caravanas do Oriente Médio. O símbolo da luz, central nas três matrizes religiosas, inundou a fé islâmica, como comprova várias passagens do Alcorão Sagrado. A Surata 24, à semelhança do masdeísmo, identifica o próprio Deus com a luz do firmamento e do fogo: “Allah é a Luz dos céus e da terra. O exemplo da Sua Luz é como o de um nicho em que há uma candeia; esta está num recipiente; e este é como uma estrela brilhante, alimentada pelo azeita de uma árvore bendita, a oliveira, que não é oriental nem ocidental, cujo azeite brilha, ainda que não o toque o fogo. É luz sobre luz! Allah conduz a Sua Luz até a quem Lhe apraz. Allah dá exemplos aos humanos, porque é Onisciente. (Semelhante luz brilha) nos templos que Allah tem consentido sejam erigidos, para que neles seja celebrado o Seu nome e neles O glorifiquem, de manhã e à tarde” (24ª Surata, an nur – a luz 35-36).

O mal é simbolizado pelas trevas e o caminho de Deus pela luz, o que é explícito em outra passagem corânica: “Já vos chegou de Allah uma Luz e um Livro esclarecedor, pelo qual Allah conduzirá aos caminhos da salvação aqueles que procurarem a Sua complacência e, por Sua vontade, tirá-los-á das trevas e os levará para a luz, encaminhando-os para a senda reta 95ª Surata, al máida – mesa posta, 15b-16). E continua: “É Ele Quem faz o dia suceder à noite. Nisto há sinais para aqueles que refletem” (13ª Surata, ar ra’d – o trovão 3b); “Quem crer em Allah, Ele lhe iluminará o coração, porque Allah é Onisciente” (64ª Surata, at taghábun – as defraudações recíprocas, 11a).

Os brilhantes artistas que idealizaram e construíram a mesquita de Nasir al-Molk, talvez profundamente imbuídos de espiritualidade, calcularam a melhor posição para captar os primeiros raios do sol e traduziram na luminosidade de cada centímetro da decoração o imperativo do texto sagrado: “Sabei que as mesquitas são (casas) de Allah” (72ª Surata, al jin – os gênios, 18a), fazendo eco ao ato de fé: “Dize: amparo no Senhor da Alvorada (Surata 113ª, al falac – a alvorada, 1).

No interior de um templo, seja ele de qualquer tradição religiosa que for, deixar-se iluminar pela luz simbólicas é permitir, no âmbito da fé, que o ser Transcendente pouse o olhar no crente, o traspasse com sua paz e o eleve à experiência espiritual. Pode-se afirmar que os peregrinos experimentam algo semelhante no interior da Mesquita de Nasir al-Molk.



DIÁLOGO. Luzes do céu. In Diálogo – religião e cultura. ano XX. n. 79. agosto/setembro 2015. Paulus: São Paulo, 2015. p. 28-33.






































segunda-feira, 18 de abril de 2016

RESUMO BIOGRÁFICO DE HERMANN HESSE




Hermann Hesse: o guru dos hippies

Por Edgar Welzel

Nobel de Literatura, Hermann Hesse é um dos mais importantes escritores alemães do século 20 e sua obra provoca uma espécie de culto místico. O autor do romance “O Lobo da Estepe” quis mudar-se para o Brasil e, depressivo, foi paciente de J. B. Lang e de C. G. Jung

A Floresta Negra, no Sudoeste da Alemanha, é uma das mais belas regiões do país. A área abrange quase a metade do Estado de Baden-Württemberg — que, ao Sul, faz limite com a Suíça e, a Oeste, com a França. A topografia é acidentada com vales, colinas e montanhas cobertas de densa mata de pinheiros que, ao sol do verão, assumem uma cor verde-escuro quase beirando ao preto, daí o nome de Floresta Negra. A Oeste, formando a divisa com a França, serpenteia languidamente o Reno, a mais importante veia aquática europeia, cujas nascentes têm suas origens nos Alpes suíços; em seu percurso penetra o território alemão do Sul ao Norte, onde faz um desvio em direção à Holanda e lá desemboca no rio Maas — formando um intrincado delta cujos braços espraiam-se no Mar do Norte. A Floresta Negra estende-se além do Reno, em território francês, onde as árvores são da mesma família e a cor verde-escuro viceja. O que muda é apenas o nome: os franceses chamam-na de Floresta dos Vosgues.

Em território alemão, no coração desta floresta, encontra-se a pequena e pitoresca cidade de Calw, um nome que soa estranho para os que não vivem na região. A localização geográfica de Calw, cujas origens datam do ano 1075, também é estranha: a cidade encontra-se numa depressão. No linguajar corriqueiro, diríamos que Calw situa-se num buraco. A cidade é cortada pelo Nagold, rio que, em termos de Brasil, seria considerado riacho. Mesmo assim, o Nagold, no passado certamente com mais água, teve uma importante função na história da cidade. Até o século 19, o pequeno rio era a principal via de transporte fluvial para os troncos de pinheiros da Floresta Negra. Eram amarrados em balsa e transportados via rio Neckar até ao Reno, de onde seguiam até à Holanda e, não raro, para a Inglaterra.

Durante quase toda a Idade Média, Calw foi um grande centro de comércio — com estabelecimentos manufatureiros de couro, moinhos, serrarias, marcenarias e artesãos de móveis e de construção de casas do estilo enxaimel, a arquitetura típica da região.

O Sul da Alemanha, a partir do século 17 até meados do século 20, era fortemente influenciado pelo pietismo, o maior movimento reformista dentro do protestantismo europeu após a Reforma Protestante. Os pietistas, profundamente crentes, conservadores e intransigentes a tudo quanto era novo, levavam o conteúdo da Bíblia ao pé da letra e eram, por isso, considerados ortodoxos dentro do protestantismo.

Foi neste ambiente que, em 2 de julho de 1877, nasceu e passou a sua infância e parte da adolescência Hermann Hesse, o mais lido escritor alemão do século 20. Perscrutar a vida desse autor não é tarefa rotineira e quem a enceta deve estar ciente de que, caso tiver percepção para os sentimentos mais intrínsecos da alma humana, acaba perscrutando a si mesmo.

Hermann Hesse não aceitou e muito menos se conformou com o ambiente no qual nascera e crescera. Muito cedo deu mostras de rebeldia contra a “camisa de força” que lhe fora imposta pelo ambiente pietista. No círculo familiar sua rebeldia contra a extremada religiosidade causou tanto incompreensão quanto preocupação, pois os Hesse, por gerações, eram crentes convictos, engajados na igreja, em serviços missionários e na publicação de literatura religiosa.

Portanto, o jovem foi a primeira ovelha negra de uma linhagem familiar que não conhecia nada além do sacrifício à religião. Mais tarde, Hermann Hesse registrou em seu diário uma observação que explica um dos motivos de sua rebeldia adolescente: “Que pessoas encarem a sua vida como vassalas de Deus e que procurem, isentas de qualquer impulso egoístico, viver a serviço e sacrifício para com Deus foi uma vivência da minha juventude que me influenciou profundamente”.

Hermann Hesse foi um homem que, durante toda a sua vida, teve que lutar contra dúvidas, anseios e aflições. O ambiente familiar pietista, por ser rígido, serviu de húmus no qual se desenvolveram seus futuros devaneios psíquicos por meio dos quais acabou encontrando o seu caminho à literatura. Durante toda a sua vida, Hesse foi um solitário que não suportava pessoas por muito tempo ao seu redor. Mesmo suas mulheres — teve três —, só as tolerava a certa distância. Em sua obra “O Lobo da Estepe” (best seller também no Brasil), Hesse registrou uma frase elucidativa: “Solidão é independência, com ela eu sempre sonhara e a obtivera afinal após tantos anos”.

Para compreender a beleza, a profundidade e o sentido da obra literária de Hermann Hesse é preciso entranhar-se nos labirintos da alma do autor. É necessário perceber Hermann Hesse como indivíduo, entender o ambiente em que viveu e conhecer a sua genealogia. Seus parentes, além de pietistas, tinham ampla cultura humanista.

Sua vida é bem documentada, o que vale para os seus ancestrais tanto da linhagem paterna, os Hesse, como da materna, os Gundert. Os bisavós tinham o hábito de guardar todo e qualquer papel, por mais insignificante que fosse. Cartas, apontamentos, cartões postais, simples bilhetes — tudo era guardado. O mesmo costume tinham também os avós e seus pais. Graças a esse cuidado, os registros, documentos e demais fontes de informações existentes sobre a ascendência de Hesse são amplas. A dedicação à literatura e à arte de escrever já eram hábitos que existiam nos dois ramos familiares de seus ancestrais.

O avô paterno, dr. Carl Hermann Hesse (1802-1896), nasceu em Livland, na Estônia, à época pertencente à Rússia. Era casado com uma alemã, médico e conselheiro de Estado, em Weissenstein, na Estônia. Além do russo, falava alemão, latim, grego e hebraico. Como pietista, ministrava aulas bíblicas, fundou um orfanato, escreveu artigos para jornais e é autor de vários livros, entre os quais uma ampla autobiografia em dois volumes. Hermann Hesse, o neto escritor, não chegou a conhecer o avô pessoalmente mas, desde jovem, manteve com ele regular correspondência até sua morte.

O avô materno, dr. Hermann Gundert, nasceu em Stuttgart, na Alemanha, em 1814. Fez seus estudos preliminares no célebre mosteiro de Maulbronn, cujas origens datam do século 11 e a seguir matriculou-se no Tübinger Stift, fundado em 1536, uma instituição de elite, ligada à Universidade de Tübingen. Em seus quase cinco séculos de existência, o Tübinger Stift formou grandes homens da cultura alemã, como o astrônomo Johannes Kepler, o poeta Friedrich Hölderlin, os filósofos Georg Wilhelm Friedrich Hegel e Friedrich Schelling e o escritor e tradutor Eduard Mörike.

O dr. Gundert era pessoa de ampla cultura. Começou a escrever durante os seus estudos preliminares em Maulbronn. Datam desse período vários dramas, entre eles um sobre Pedro, o Grande. Ampla era a sua vocação para as línguas. Durante a sua formação em Tübingen, estudou latim, grego, hebraico, inglês, francês, italiano, indu e malaiala. Terminados os estudos, passou um período na Inglaterra e de lá partiu para Tschirakal, na Índia, onde inicialmente trabalhou como professor. Não demorou, interessou-se por atividades missionárias e ocupou-se da área de seu interesse, as línguas. Estudou vários dialetos indus, traduziu a Bíblia do latim para o malaiala e compilou o primeiro dicionário inglês-malaiala, trabalho que lhe custou mais de 30 anos de pesquisa e continua sendo obra básica até os dias de hoje. No Estado de Kerala, na Índia, fundou um jornal, escreveu livros escolares, traduziu obras do sânscrito para o malaiala, inclusive um documento budista dos primeiros séculos da era cristã. Casou-se, na Índia, com Julie Dubois, filha de calvinistas da região de Genebra, com quem teve dez filhos, entre os quais Marie Gundert, a mãe de Hermann Hesse. Julie Dubois (avó de Hermann Hesse) nunca chegou a falar e escrever o alemão corretamente, mas, além de sua língua materna, o francês, dominava perfeitamente o inglês e o indu e vários dialetos. Cultivava uma vida ascética, era rigorosa e intransigente.

Gundert regressou à Alemanha em 1859 e assumiu uma editora de literatura religiosa. Viveu em Calw por mais 33 anos, dedicou grande parte desse tempo às pesquisas linguísticas. No Estado indu de Kerala, Gundert é respeitado como grande cientista linguístico. O Estado o homenageou com monumento, nome de rua e placa comemorativa. Gundert escreveu mais de oito mil cartas, que foram usadas por um de seus genros, Johannes Hesse, o pai de Hermann Hesse, para publicação de uma biografia sobre o sogro.

Johannes Hesse (1847-1916), filho do dr. Carl Hermann Hesse, nasceu em Weissenstein, na Estônia. Hermann Hesse — com um avô paterno russo casado com uma alemã, um avô materno alemão casado com uma francesa; o pai russo casado com uma alemã e ele próprio nascido em Calw — tinha dúvidas quanto a sua nacionalidade. Em suas notas autobiográficas, escreve: “Naquela época eu não sabia qual era a minha nacionalidade, provavelmente russa, pois meu pai foi súdito russo e tinha um passaporte russo; a mãe, nascida na Índia, era filha de um suábio e de uma francesa-suíça. Tal origem mesclada impediu-me de ter maior respeito perante nacionalismos e limites fronteiriços”.

Em 1919, ao decidir que a região da Floresta Negra era a sua origem, berço, cultura, pátria, Hermann Hesse passa a se considerar cidadão alemão. Segundo as leis vigentes da época, como filho de um missionário alemão-báltico (russo) casado com uma mulher nascida na Índia, oficialmente o escritor era cidadão russo. Entre 1883 e 1890 e a partir de 1923 tornou-se cidadão suíço. No entremeio, tinha também os direitos de cidadania do Estado alemão de Baden-Württemberg.

Johannes Hesse, pai de Hermann, indivíduo franzino, nervoso, leitor incansável, laborioso em anotar e registrar tudo que lia, ouvia e observava, aos 16 anos resolveu ser missionário. Seus textos, escritos nessa idade, não revelam nenhum fanatismo; ao contrário, era um homem pensativo e ponderado. Além da biografia sobre o sogro, escreveu outras 16 obras. Na Índia, a serviço missionário, casou-se com a viúva Marie Gundert, a filha de Hermann Gundert. Marie Gundert, mãe de Hermann Hesse, era escritora. Publicou vários livros, entre os quais encontra-se uma biografia sobre o naturalista inglês David Livingstone. Falava um inglês impecável, razão pela qual os pais de Hermann Hesse costumavam comunicar-se em inglês.

Hermann Hesse conheceu muito bem o avô materno, Hermann Gundert, com o qual manteve estreito contato. Tinha-o em grande conta e dedicava-lhe uma imensa afeição. No texto autobiográfico “A Meninice de um Mágico”, Hermann Hesse fala com sentimentalismo sobre o avô: “E todas essas coisas pertenciam ao avô, e ele, o idoso, respeitado, po­deroso, com sua densa barba branca, sabia tudo, mais poderoso do que meu pai e minha mãe, estava em poder de muitas outras coisas e poderes… sua sala e sua biblioteca, ele era também um mágico, um homem que sabia de tudo, um sábio. Ele entendia todas as línguas dos homens, mais do que trinta, talvez também a língua dos deuses, talvez a língua das estrelas, ele escrevia e falava o páli e o sânscrito, falava e cantava canções em canarês, bengalês, hindustâni e singalês e recitava orações e textos dos muçulmanos na língua destes. Recebia muitas visitas e eles falavam em todas as línguas”.

Diante desse manancial cultural, com vários escritores entre seus ancestrais, o pequeno Hermann Hesse, fortemente influenciado pelo avô materno e pelo próprio pai, teve, desde tenra idade, uma educação condicionada ao preparo do serviço missionário, como foram seus pais, avós e bisavós. Sob o peso da profunda religiosidade, o jovem Hesse decidiu não se tornar “vassalo de Deus”. Começam assim os conflitos com Johannes, que, embora não fosse um pai extremado, queria o filho como missionário. Prova disso é o fato de que o pai começou a ministrar-lhe aulas de latim desde a infância. Hermann Hesse, mais tarde, comenta esse período em “Meninice de um Mágico”: “Até a idade de 13 anos nunca me preocupei com o que seria da minha vida futura e que profissão deveria seguir”. Uma das coisas que Hermann admirava em seu pai, que falava várias línguas, era o seu estilo claro e preciso ao usar a língua alemã.

Os primeiros intensos abalos psíquicos que Hermann sofreu aconteceram durante seus primeiros quatro anos de ensino elementar na escola que frequentava em Calw, com o irmão mais novo, Hans (1882-1935). Os métodos educacionais eram rígidos. Castigos corporais eram medidas usuais aceitas tanto pelos pais como pelas autoridades. Abusos, com graves lesões corporais, eram frequentes e impunes. Hans sofreu um trauma escolar em virtude dos métodos educacionais pelos quais passou e do qual não conseguiu livrar-se durante o resto de sua curta vida, que terminaria em suicídio. Hermann Hesse abordou essa tragédia nos livros “Demian”, “O Jogo das Contas de Vidro” e “Debaixo das Rodas”. Nessa a personagem principal, Hans Gie­benrath, em referência a seu irmão morto, é retratada como vítima dos métodos educacionais. Nessa obra encontra-se a seguinte passagem: “A escola é a única instituição cultural que, apesar de levar a sério, me irrita. Em mim a escola estragou muita coisa e conheço poucas personalidades que não passaram pela mesma experiência. Para sobreviver nesse ambiente você precisa aprender a mentir e o irmão Hans era um menino sério e é por isso que na escola em Calw quase o mataram, quebraram-lhe a espinha dorsal”.
Em 1891, o pai matriculou Hermann Hesse, de 14 anos, no renomado mosteiro de Maulbronn, onde o avô materno estudara. O astrônomo Johannes Kepler, que nasceu em Weil der Stadt, pequena localidade a nove quilômetros de Calw, frequentou o mesmo ginásio do mosteiro de Maulbronn, três séculos antes de Hermann Hesse (de 1586 a 1589).


“Serei escritor ou nada”

Em Maulbronn, o seminarista Hermann Hesse redigiu algumas peças de teatro em latim — que ele mesmo ensaiava com colegas e as apresentava aos alunos internos. Suas cartas aos pais eram em forma de rima e muitas em latim. Ele gostava do ambiente, mas vivia com receio de acabar virando missionário. Resolveu enfrentar o pai escrevendo-lhe uma carta com uma frase derradeira: “Serei escritor ou nada”. Mais tarde Hesse confessa: “Quanto mais avançava em idade, tanto mais compreendi quanta semelhança eu tinha com o meu pai”.

Depois de sete meses em Maulbronn, Hermann fugiu do internato. Só foi encontrado dois dias depois, confuso e transtornado. Após uma tentativa de suicídio, foi internado numa clínica psiquiátrica. Após o tratamento, ingressou num ginásio em Cannstatt, um bairro de Stuttgart. Não suportando o ambiente escolar, Hermann deixou o estabelecimento e começou a trabalhar numa livraria em Esslingen, onde suportou apenas três dias.

Regressou à casa dos pais em Calw e foi trabalhar como aprendiz na firma Perrot, que fabricava relógios para torres de igreja. Permaneceu no emprego por um ano e meio. Durante esse período, aos 17 anos, Hermann Hesse falava seriamente de planos para emigrar para o Brasil, assunto frequente nos seus apontamentos e escritos.

O relacionamento com a mãe Marie era normal e Hermann costumava dizer que a amava. O relacionamento sofreu uma ruptura abrupta numa época em que Hermann já publicara textos, comentários e seu nome já era conhecido. Hermann redigiu um pequeno texto com o título “Minha Mãe”, convencido de que ela o apreciaria. Enganou-se. A mãe, num gesto indelicado, humilhou e reduziu a nada o trabalho do filho. Passado mais de meio século, Hesse recordou com amargura do episódio e disse nunca ter perdoado a mãe.

A partir desse episódio a vida de Hermann Hesse transforma-se numa roda viva. Em 1895 começa a trabalhar numa livraria em Tübingen (que ainda existe), publica algumas poesias e uma obra com o título “Uma Hora Após a Meia-Noite”, escreve regularmente para o jornal suíço “Allgemeine Schweizer Zeitung”, e viaja três meses pela Itália. Ao regressar, trabalha num antiquário em Wattenwyl, na Suíça, e seu romance “Hermann Lauscher” é publicado. Em 1903, volta a viajar pela Itália, desta vez, acompanhado pela fotógrafa Maria Bernoulli. Ao mesmo tempo, publica sua obra “Peter Camenzind” (1904), seu primeiro romance cujo enredo contém muitos paralelos biográficos. “Peter Camenzind” torna-se um best-seller, Hesse casa com Maria Bernoulli e compra uma propriedade em Gaienhofen, no Lago de Constança, na divisa da Alemanha com a Suíça.

Às margens do lago, a criatividade literária de Hermann Hesse desenvolve-se em bom ritmo. Em 1906 publica “Debaixo das Rodas” e em 1910 “Gertrudes”, novela escrita em primeira pessoa, na qual o autor narra os infortúnios de uma dolorosa experiência de amor. Entre 1905 e 1911 nascem os seus três filhos, Bruno, Heiner e Martin. Para distrair-se Hermann Hesse pratica a jardinagem. Na área que circunda a casa, Hesse planta árvores, arbustos e cultiva rosas. Muito do que plantou na época continua a vicejar até hoje sob os cuidados de uma sociedade mantenedora que tem o zelo de conservar a propriedade e cultivar as mesmas plantas, rosas e flores que Hesse cultivara.

Em 1911 Hesse parte para uma viagem à Índia. Queria conhecer o lugar no qual a mãe nascera e onde os pais trabalharam. A viagem estende-se à Indonésia e à China. Ao regressar publica “Da Índia”. Essa viagem à Índia o decepciona por não encontrar lá o que os pais idolatravam.

Enquanto isso Maria Bernoulli começa a ter problemas psíquicos. Hermann Hesse demonstra não ser capaz de lidar e viver com uma situação dessas. Chega à conclusão que, para dar continuidade à sua ocupação literária, precisa de sossego. Maria é internada num hospital psiquiátrico e os três filhos são entregues à tutela de parentes e amigos. Resolve mudar-se para a Suíça. Deixa a propriedade e seus bens em Gaienhofen, leva consigo apenas a sua escrivaninha, vai à Berna onde aloja-se na Casa Welti. Em 1914 publica “Rosshalde”, romance no qual fala do fracasso do matrimônio de um casal de artistas. A obra traz marcantes traços biográficos. Em toda a literatura alemã Hesse é o autor que mais traços autobiográficos incluiu em sua obra.

No início da Primeira Guerra Mundial, Hermann Hesse se engaja em projetos e serviços humanitários. Um de seus trabalhos foi a criação de um grupo que se ocupou com a remessa de livros para presos em campos de concentração. Em 1915 publica “Knulp”, obra na qual o autor mostra ao leitor o quanto o homem depende de convenções sociais.

Em 1916 Hermann Hesse é acometido de uma crise nervosa que o prende por meses no sanatório Sonnmatt, em Lucerna, na Suíça. Tem início uma profunda amizade com o psicanalista J. B. Lang. Nesse estado de espírito publica um artigo contra a guerra sob o pseudônimo de Emil Sinclair e começa a ocupar-se regularmente com a pintura aquarelista.


O guru dos hippies

Em 1919 publica “O Regresso de Zaratustra”, obra dirigida aos jovens: “O mundo não está aí para ser melhorado. Mas vocês estão aí para serem vocês mesmos. Vocês estão aí a fim de que este mundo sombrio, com esse acorde e com esse tom de vocês, fique mais rico. Seja você mesmo e o mundo tornar-se-á mais belo e mais rico”. Paralelamente Hermann Hesse muda-se para a Casa Camuzzi, em Montagnola, no Tessino, onde permanece até 1931.

Ainda em 1919 Hesse publica “Demian”, sob o pseudônimo de Emil Sinclair, e faz amizade com Ruth Wenger, com a qual acaba se casando. O casamento dura apenas três anos, de 1924 a 1927. Em 1921 Hesse começa a escrever “Sidarta”, o qual teve que interromper em virtude de um bloqueio psíquico. Hesse cai em profunda depressão. Começa a sua segunda análise psicanalítica, dessa vez, com o renomado psiquiatra C. G. Jung. Em 1922 termina e publica “Sidarta”, sobre o qual Henry Miller escreveu: “Sidarta é, para mim, um medicamento mais eficiente do que o Novo Testamento”.

Nesse entretempo Hesse publicou várias obras, entre elas, “O Lobo da Estepe” (1927). No mesmo ano Ninon Dolbin aloja-se na Casa Camuzzi, aparentemente como secretária. Em 1931 Hesse começa a escrever “O Jogo das Contas de Vidro” e se casa com Ninon Dolbin. Em 1931 Hesse muda-se para a “Casa Rossa”, uma mansão construída por um abastado admirador, H.C. Bodmer, que deu a Hesse o direito de ocupá-la até a sua morte. No muro da porta de entrada Hermann Hesse prendeu uma tabuleta com os seguintes dizeres: “Não recebo visitas”. Certo dia subiu à montanha seu amigo Thomas Mann. Este, ao ler os dizeres, deu meia-volta. Conta-se que nunca mais os dois escritores voltaram a se encontrar. A “Casa Rossa” hoje é propriedade particular.

Em 1943, doze anos após iniciá-lo, publica sua obra máxima “O Jogo das Contas de Vidro”. Em 1946 Hermann Hesse é agraciado com o Prêmio Nobel de Literatura.

Não é possível comentar todas as obras de Hesse num texto relativamente breve. Além disso, há resenhas de seus livros em mais de cinquenta línguas. Por esta razão procuramos dar especial ênfase ao homem Hermann Hesse, pois é imprescindível conhecê-lo para podermos compreender e fruir o conteúdo, a beleza e a profundidade de sua obra.

Hermann Hesse ainda era vivo e sua obra já tinha sido traduzida para 34 idiomas. “Parece-me que os japoneses são os que melhor me entendem e os que menos me entendem são os americanos. Mas esse também não é o meu mundo. Nunca chegarei lá”, comentou logo após ter recebido o Nobel. Em meados dos anos 1950, o editor Siegfried Unseld recomprou os direitos sobre a obra de Hermann Hesse por 2 mil dólares. Assinado o contrato, Unseld e o antigo editor foram para o almoço, durante o qual o americano disse: “Se o sr. quiser rescindir esse contrato tão desvantajoso, podemos cancelá-lo”. Unseld não o cancelou e, passados dez anos, as obras de Hermann Hesse tornaram-se su­cesso também nos Estados Unidos quando a juventude hippie, à procura de novas alternativas de vida, confrontou-se com os textos de Hesse, este passou a ser visto como uma espécie de guru. Outro fator que contribuiu para o sucesso de Hesse nos Estados Unidos foi a banda “Steppenwolf” (Lobo da Estepe), que adotou o nome do livro e fez com que a obra influenciasse várias gerações.

Hermann Hesse, além de dedicar-se a seus textos, empenhava grande parte de seu tempo em responder cartas de leitores. Nesse particular, supera Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832), o grande autor clássico da literatura alemã, que escreveu mais de 30 mil cartas. Hermann Hesse escreveu mais de 40 mil, a maioria delas ainda estão preservadas. Não apenas trocava correspondência com renomados homens da literatura, como Thomas Mann, Stefan Zweig e Romain Rolland, mas também com políticos, chefes de Estado e com milhares de leitores que lhe escreviam pedindo conselhos ou ajuda para problemas da alma humana. Hesse fazia questão de responder pessoalmente às cartas que recebia. Ao responder às perguntas pessoais de leitores, Hesse costumava apelar à moral, à ética, à tolerância e aos fundamentos básicos do cristianismo do qual tentara livrar-se em Maulbronn.

Até agora apenas parte de suas cartas foram publicadas em dois volumes, está previsto o lançamento de uma edição completa de sua correspondência que deverá abranger um total de dez volumes.

Apenas “ler” Hesse não é suficiente. Para entendê-lo é necessário “encontrá-lo” e a melhor maneira de encontrá-lo é aprofundar-se em sua biografia. Em Calw, sua cidade natal, o município criou o Museu Hesse, no qual encontra-se grande parte de seu acervo. Sua casa em Gaienhofen, que hoje está como ele a deixara, também foi transformada em museu, e em Montagnola, nas montanhas do Lago Lugano, encontra-se a terceira parte de seu acervo.


A única arma que Hesse usou foi a caneta

É oportuno mencionar um detalhe pouco conhecido da vida de Hermann Hesse: o autor foi grande admirador e profundo conhecedor dos contistas da Renascença Italiana. Em 1920 Hesse selecionou e publicou uma coletânea de 16 contos de autores italianos sob o título “Novellino”, na qual encontram-se cinco títulos de Franco Sacchetti, quatro de Giovanni Fiorentino, dois de Masuccio Salernitano, um de Nicolau Maquiavel, e quatro de autores anônimos. O título de Nicolau Maquiavel é “Belfagor” e foi Hesse que, pela primeira vez, publicou-o em língua alemã. O “Novellino” de Hesse foi republicado na Alemanha numa versão atualizada em 2012.

Otto Maria Carpeaux, ao caracterizar Hesse, escreveu: “A vida de Hesse foi um caminho de sucessivas autolibertações, através de revoltas do individualista contra a escola, contra a família, contra o cristianismo, contra o estilo burguês de vida, contra a guerra, contra a Europa e contra todos os tabus que o lar, a sociedade, a religião e o Estado querem impor”. A caracterização de Carpeaux é correta. Falta apenas um detalhe: a única arma que Hesse usou foi a caneta.

Quem caminha pelas ruas de Calw encontra Hesse como eu o encontrei. Lá está ele, no meio da ponte sobre o Nagold, seu lugar preferido quando menino, em estátua de bronze em tamanho natural, com o seu inseparável chapéu à mão. O escultor deu-lhe um rosto tranquilo, talvez até feliz, e quando nos acercamos temos a impressão que Hesse fala conosco: “Desci por estes barrancos do rio quando menino junto com outros de minha idade. Subíamos na balsa e os balseiros levavam-nos alguns quilômetros rio abaixo onde, numa curva, deixavam-nos saltar à margem donde regressávamos a pé”. A expressão de felicidade estampada em seu rosto parece dizer: “Hoje sei muito bem que nada na vida repugna tanto ao homem do que seguir pelo caminho que o conduz a si mesmo”.

Hermann Hesse morreu em 9 de agosto de 1962, em Montagnola, aos 75 anos. Transcorridos 50 anos, a data foi devidamente lembrada em 9 de agosto de 2012 com cerimônias, festejos, palestras e conferências realizadas durante todo o último trimestre do cinquentenário de seu falecimento ao redor do mundo. Suas obras continuam vivas e hoje, mais do que no passado, o número de leitores e admiradores de Hermann Hesse aumenta em todos os quadrantes. Especialmente na Europa, Estados Unidos, Japão, China, Índia e Coreia do Sul. Hesse continua sendo um autor de interesse universal. Talvez seja esta a verdadeira razão pela qual Hermann Hesse nos cumprimenta com um sorriso feliz lá do alto da ponte de sua cidade natal.


WELZEL, Edgar. Hermann Hesse: o guru dos hippies. Disponível em: <http://www.revistabula.com/4688-hermann-hesse-o-guru-dos-hippies/> . Acesso em: 18 abr. 2016.