domingo, 29 de janeiro de 2017

FALTA LIBERDADE RELIGIOSA EM PORTUGAL




FALTA LIBERDADE RELIGIOSA, INDICA INQUÉRITO ACADÉMICO FEITO A PROTESTANTES E EVANGÉLICOS

A maioria dos inquiridos considera que a entrada de refugiados vai fazer com que a liberdade religiosa seja menor.

Em Portugal há um défice de liberdade religiosa e os imigrantes vão agravar a situação, conclui um inquérito a lideranças protestantes e evangélicas, que concordam com o diálogo inter-religioso mas não o praticam. São conclusões da primeira fase de um inquérito às lideranças religiosas sobre percepção de liberdade religiosa, que será divulgado na quarta-feira, na apresentação pública do Instituto de Cristianismo Contemporâneo, da Universidade Lusófona, em Lisboa.

As lideranças protestantes e evangélicas "na teoria aceitam o diálogo entre religiões mas na prática não se dão muito ao diálogo, falta-lhes iniciativa", disse à Agência Lusa o coordenador do Instituto, José Brissos-Lino. Segundo os resultados do inquérito quase metade das lideranças protestantes e evangélicas questionadas diz que as comunidades religiosas não fomentam o diálogo entre as religiões, e mais de metade (52%) admite que nunca organizou uma actividade com outras religiões, ainda que 70% diga que é a favor do diálogo inter-religioso.

Questionadas sobre se o actual fluxo de refugiados vai ter implicações na liberdade religiosa, 61% das lideranças disse que sim, e 70% considerou que a liberdade religiosa vai diminuir na Europa. Já sobre se a sociedade portuguesa acolherá bem o aumento de população islâmica a maior parte diz que não sabe, 30,6% diz que não e 27,8% que sim.

Embora um pouco mais de metade dos inquiridos pense que a sociedade portuguesa é religiosamente tolerante, 69,4% disse que já teve na sua comunidade algum problema de liberdade religiosa, 77,8% defendeu que o Estado não tem desempenhado bem a função de promover a liberdade religiosa, e 64% que a lei não garante uma efectiva liberdade religiosa. Mais de metade das lideranças inquiridas considera como "muitíssimo grande" o peso da Igreja Católica na sociedade portuguesa.

"As minorias religiosas normalmente são prejudicadas quando há uma mais representativa", salientou José Brissos-Lino, acrescentando que a liberdade religiosa é condicionada pela concordata (acordo entre Santa Sé e Estado) e dando um exemplo: quando se faz uma nova urbanização se há um equipamento religioso é sempre católico, as minorias "têm de alugar lojas". De acordo com o responsável "é mais fácil para judeus ou muçulmanos não serem discriminados, porque são religiões estabelecidas, do que outros ramos do cristianismo", ainda que na verdade "as comunidades evangélicas têm um peso maior do que muçulmanos ou judeus".

Além do estudo, a sessão de apresentação do Instituto de Cristianismo Contemporâneo servirá para falar de um ciclo de conferências sobre desafios ao cristianismo, das jornadas de "cristianismo contemporâneo", do congresso lusófono ou do congresso internacional sobre Lutero, em Novembro deste ano (na passagem dos 500 anos sobre a reforma religiosa).

Segundo Brissos-Lino está a ser feito outro inquérito sobre a percepção do cristianismo junto de jovens universitários de Portugal, África do Sul, Brasil e Estados Unidos, e em fase de conclusão outro sobre a percepção do islão entre jovens universitários portugueses. "O objectivo é ligar o meio religioso à academia", disse o professor, lembrando que as primeiras universidades do mundo começaram com estudos teológicos, que hoje estão praticamente banidos.



FONTE: LUSA. Falta liberdade religiosa, indica inquérito académico feito a protestantes e evangélicos. 17 jan. 2017. Disponível em: <https://www.publico.pt/2017/01/17/sociedade/noticia/falta-liberdade-religiosa-indica-inquerito-academico-feito-a-protestantes-e-evangelicos-1758694>. Acesso em: 29 jan. 2017.

sábado, 28 de janeiro de 2017

SILÊNCIO DOS CÚMPLICES





O Holocausto, uma memória do guetto de Varsóvia, ou o crime que nos devia ajudar a ser Humanos

Por Paulo Mendes Pinto*

Se há dia comemorativo ou de memória que é imagem do que de pior podemos fazer, esse dia é o «Dia Internacional da Lembrança do Holocausto» (dia 27 de janeiro, pela resolução 60/7, de 1 de dezembro de 2005, da Assembleia Geral das Nações Unidas).

Hoje, num quadro em os Direitos Humanos em tantos aspectos e geografias parecem perder importância, torna-se imperioso olhar para estas más memórias, dando-lhes um sentido didático, procurando fazer com que o olhar para esses momentos de terror sejam, ao menos, instrumento possível para o presente.

De facto, nada melhor que olhar para o Holocausto, a Shoa, e ver como somos bons a matar, como somos eficazes na carnificina, como somos capazes das maiores crueldades em nome de ideias e de modelos. Como somos, enfim, iguais a nós mesmos, em quase nada diferentes dos nossos antepassados que fizeram esses gestos hediondos a que chamamos Holocausto.

E o passado não está assim tão distante. É muito próximo e corre-nos nas veias como que querendo tomar conta do nosso corpo em qualquer momento, despoletado por um qualquer discurso xenófobo ou intolerante.

Há bem pouco tempo, o papa Francisco falava do “silêncio cúmplice” de todos nós que sabemos o que está a contecer, quer com as comunidades cristãs do Médio Oriente, quer mesmo com as comunidades islâmicas que nessa região sofrem de forma única às mãos dos criminosos do Daesh, quer, ainda, com o que deixamos acontecer nesta epopeia vergonhosa dos refugiados.

O que mais me aflige em todo este quadro, seja o actual, seja o do Holocausto Nazi, é esse dito “silêncio cúmplice”. Deixamos acontecer, não saindo do nosso lugar de conforto, negando a mais elementar fraternidade para com os da nossa espécie. Se há o “Silêncio dos Inocentes”, temos em nós o “Silêncio dos Cúmplices”.

Sem dúvida, o silêncio é a mais aviltante arma da apatia. Há uns anos, estive em Varsóvia. Gostei bastante. Foi uma viagem importante a vários níveis. Mas talvez um dos mais importantes tenha residido na construção da minha própria pessoa.

Numa tarde, previamente combinada, com a Presidente de uma fundação judaica, fui ao guetto da cidade. Sim, o guetto onde os nazis reuniam os judeus da região para os deportar para campos de concentração.

Nessa vasta zona da cidade, terão morrido milhares e milhares de pessoas. Os números, como diz Saramago, são das menos exactas coisas que há no mundo. Contudo, aqui os números perdem a noção dos zeros que lhes colocamos para dar escala. São muitos os zeros, e foram muitas as pessoas.

Fizemos o roteiro habitual. Fomos aos locais de memória. Aos monumentos, aos sítios que se encontram marcados na paisagem para que sempre se saiba o que ali aconteceu.

Mas foi nos espaços sem memória do guetto que me senti verdadeiramente mal. Numa rua qualquer, entre prédios sempre iguais, construídos algures entre os anos 50 e os 70, uma vala normalíssima mostrava que tinha lugar uma mudança de canos de água. Nada de anormal, se não fossem os tijolos que daquela vala se viam. Iguais aos das poucas construções que restam desses sangrentos anos 40, eles eram a memória esquecida do quotidiano de pessoas como nós que, apenas nisso, foram diferentes: foram tratadas de forma sub-humana e morreram como não desejamos ver morrer animal algum.

Nesse momento, deixei de ser turista. Passei a ser um sofredor num caminho inexplicável: que fazem moradias naquele longo cemitério? Sim, aquele que fora o guetto de Varsóvia é agora um bairro residencial construído nas décadas de domínio soviético.

A memória é, de longe, o mais estranho e bizarro instrumento de inteligência que temos. Tanto consegue os mais brilhantes gozos, como nos consegue os mais desculpabilizantes esquecimentos. Como é fácil regressar, século após século, a discursos de radicalização que parece nada terem bebido nos dramas e nas lágrimas já antes vertidas?

Como se vive numa dessas habitações? Que memórias, que fantasmas? Que dores ou que gozos?

Dei por mim a olhar para um idoso que saía de uma dessas portas comuns. Teria idade mais que suficiente para já ser vivo quando naquele mesmo espaço morreram milhares de pessoas. Como consegue ele deitar-se naquela grande vala comum?

Ou, melhor, como conseguimos nós deitar-nos nas valas comuns das nossa memórias e das apatias e dos silêncios que comodamente nos ajudam a nada ver e muito menos a reagir?

Escreveu primorosamente Sophia de Mello Breyner Andresen que “Vemos, ouvimos e lemos / Não podemos ignorar”... ignoramos, sim, a todo o momento. Aliás, como a História nos comprova abundantemente, para além de matar, ignorar é ainda o que fazemos melhor.


FONTE: PINTO, Paulo Mendes. SILÊNCIO DOS CÚMPLICES. 27 jan. 2017. Disponível em: <http://visao.sapo.pt/opiniao/bolsa-de-especialistas/2017-01-27-Silencio-dos-Cumplices>. Acesso em: 28 jan. 2017.


* Coordenador da área de Ciência das Religiões da Universidade Lusófona. Embaixador do Parlamento Mundial das Religiões e fundador da European Academy of Religions. É especializado em História das Religiões Antigas (mitologia e literaturas comparadas), mas dedica parte dos seus trabalhos a questões relacionadas com a relação entre o Estado e as religiões. Na área da Ciência das Religiões, é o responsável por diversos projectos de investigação, especialmente na relação entre as Religiões e a escola, assim como no desenvolvimento de uma cultura sobre as religiões como componente de cidadania. É ainda investigador da Cátedra de Estudos Sefarditas «Alberto Benveniste» da Universidade de Lisboa. É Membro do Conselho Consultivo da Associação de Professores de História. É director da Revista Lusófona de Ciência das Religiões. Recebeu a Medalha de Ouro de Mérito Académico da Universidade Lusófona em 2013.