domingo, 19 de julho de 2015

MARIA PROFETISA



Por Peter Bindon, FRC*


Alguns dos atuais comentadores dos textos alquímicos antigos dividem as obras existentes em dois grupos. De um lado os livros escritos pelos alquimistas simbolistas, filósofos da natureza, interessados e motivados pelas maravilhas do Universo. Por outro estariam os trabalhos daqueles a que jocosamente denominam de “sopradores” e que buscavam transformar os metais vis em ouro. Este último grupo somente se interessava pela obtenção de uma riqueza material, enquanto que os primeiros desejavam adquirir a compreensão de seu lugar dentro da criação. Isto também ocorre nos nossos dias. Há quem busque compreender a complexidade da vida no mundo material enquanto continuam progredindo em sua evolução espiritual e mística; seu primeiro objetivo é dispor das coisas em quantidade justa e suficiente e sentir-se satisfeitos com o que são. Outros só valorizam a prosperidade e a satisfação em termos de riquezas materiais.

Posto que existem numerosos grupos entre os dois extremos, esta classificação apresenta as mesmas carências que caracterizavam os alquimistas dos tempos antigos. É demasiado simplista dividir todas as possibilidades da condição humana unicamente em duas categorias, assim como é quase impossível classificar de maneira adequada todos os comentários acerca das práticas alquímicas aparecidas ao longo da história. Será esta a razão por que é tão difícil compreender o significado dos escritos alquímicos, mesmo sabendo que estão na origem do que chamamos atualmente de química, ciência importante e muito precisa? A resposta se encontra na complexidade do tema. Para cada elemento descrito em uma mandala alquímica ou mencionado em uma fórmula, encontramos numerosos sinônimos visuais. Elaborar uma lista poderia simplificar a tarefa, mas em seguida descobrimos que cada símbolo tem muitos significados. O problema reside então em conceder a cada um seu sentido apropriado. Quem conhece as obras de Carl Gustav Jung e de Joseph Campbell sabe que é sempre difícil classificar as diferentes maneiras de interpretar os símbolos. Afortunadamente, no passado cada alquimista utilizava em geral somente uma ou duas combinações de símbolos e de significado, o que simplifica relativamente nossa tarefa de classificá-los e de esclarecer seu significado. Não obstante, os diagramas alquímicos podem ser interpretados de diferentes maneiras. O símbolo que vamos examinar será desde uma perspectiva Rosacruz.

Maria Profetisa, conhecida também como irmã de Moisés e por outros nomes, é equiparada pelos Rosacruzes com a “Maria” da Tradição Gnóstica. Diz-se que é a autora de um tratado intitulado Practica Mariae Prophetessae in artem alchemicam, ainda que na realidade é mais provável que ele seja de origem árabe. A obra foi consultada por muitos alquimistas, entre os quais se encontrava Michael Maier, que a apresenta como título de página no frontispício de sua obra publicada em 1617, Symbol Aurae Mesae

Na ilustração, Maria mostra uma planta cujas sementes caíram sobre o cume da Montanha Cósmica. Os esforços requeridos para a ascensão da montanha serviram possivelmente de inspiração aos antigos para compará-los com o forno em que está concentrada a energia necessária para levar ao êxito o processo da transformação alquímica. Apontam que o pico da montanha é o lugar da Pedra Filosofal. A vida, surgida das sementes, faz com que brotem cinco flores sobre a montanha Cósmica, sendo estas cinco flores símbolo do renascimento da vida segundo cada estação.

Examinaremos a flor adiante, quando veremos o significado deste símbolo. No momento, vamos considerar a razão do número de flores ser cinco. Cinco é o número da humanidade, simbolizando esta figura uma atividade de renovação recomendada pelo autor. Por que é o cinco o número da humanidade? Para compreender, convém relembrar um dos esquemas mais importantes de Leonardo da Vinci que representa um homem inscrito em um círculo no qual toca em cinco pontos com a cabeça, as mãos e os pés. Da mesma maneira os cinco sentidos, os cinco dedos das mãos e dos pés, põem em evidência esta atribuição simbólica do número cinco. A rosa de cinco pétalas no centro da cruz de quatro braços simbolizava para os hermetistas a quintessência, algo que é superior aos quatro elementos primordiais representados pelos braços da cruz. Por outro lado, e ainda que esta interpretação não seja necessariamente a dos alquimistas, para certos filósofos místicos o número cinco teria um sentido sinistro, inclusive demoníaco. Este conceito provém de uma explicação cabalística onde se relaciona ao cinco com os cinco dias de vazio que necessitavam os antigos egípcios para sincronizar seu calendário de 360 dias ao ano solar que está mais próximo dos 365 dias.

Segundo a interpretação rosacruz da gravura que estamos analisando, as duas urnas simbolizam respectivamente o ar e a terra, dois elementos primordiais de onde todas as coisas extraem sua existência. Os dois elementos se mesclam e se unem conforme ilustrado pelo princípio que diz que “tudo o que está em cima é como o que está em baixo”, proferindo Maria um dos princípios alquímicos que concernem à unidade e à dualidade: “o Um se converte em Dois, o Dois se converte em Três, e do Três provém o Um que é o quarto”. Este axioma, que reformula a Criação bíblica utilizando os temos mágico-religiosos da alquimia, pode ser interpretado de muitas maneiras. Esta interpretação significa que o leitor deverá observar que nos sistemas rosacruzes que explicam o simbolismo dos números, os pares são considerados femininos e aos ímpares masculinos. Além disso, a linguagem alquímica dos arcanos apresenta outro nível de sentido que é o que vamos aprofundar agora.

Maria Profetisa se refere à combinação dos dois aspectos de uma substância única e especial. Ela disse: “Toma a goma de Espanha, a goma branca e a goma rubra e junta as duas em um verdadeiro matrimônio, a goma com a goma”. Qual é o sentido destas palavras? Obtemos uma indicação pela cor das substâncias que menciona, pois se trata da “rainha branca” e do “rei rubro” alquímicos. Por outro lado, o símbolo alquímico da goma é de uma estranha combinação das pequenas letras que se assemelham ao “g” do nosso alfabeto moderno, escritas uma ao lado da outra e religadas por uma pequena cruz da qual fica suspenso um pequeno triângulo. Este símbolo põe em evidência o processo alquímico com o qual deveremos nos familiarizar se queremos decodificar a ilustração.

O sentido alegórico escondido no desenho é reforçado pela forma dada à nuvens de vapor que escapam de ambos os vasos. Pode ser vista a união dos dois triângulos equiláteros, um apontado para o céu e o outro apontando para a terra. O triângulo superior representa o fogo, elemento masculino, enquanto o triângulo inferior nos encaminha à água, ao feminino e aos aspectos nutritivos. Quando o alquimista é capaz de obter o casamento correto destes dois elementos primordiais, estes dão nascimento à cor rubra, simbolizada pela rosa alquímica, o que nos é revelado pelas duas correntes de vapor branco sob a forma de dois triângulos.

Em algumas gravuras que ilustram este processo, a rosa resultante apresenta uma fila de pétalas exteriores vermelhas e outro plano interior de pétalas brancas. No caso que nos ocupa, a cor branca está representada pelos vapores que se desprendem de cada um dos lados do cadinho em direção ao seu oposto. A rosa vermelha era o símbolo alquímico da realização com êxito da “Grande Obra” que produzia, no final, a Pedra Filosofal. E é em parte a causa desta união que a rosa que adorna a Cruz Rosacruz é vermelha e não de outra cor alegórica.

Que conclusões úteis podemos extrair deste conjunto de símbolos em nossos estudos rosacruzes? Toda a parte direita da ilustração é relativa a representações ligadas ao homem vestido de vermelho e à mulher coberta de branco. Simbolicamente, não pode ser alcançada a rosa vermelha da realização até que não seja levantado o véu branco. Os dois vãos ou cadinhos, que representam os vasos de Hermes e cumprem o objetivo de receptáculos dos elementos necessários para a criação. Eles simbolizam a natureza dual que está presente em cada um de nós. Uma vez separados, revelam a penúltima etapa do processo de transformação. Maria, que personifica a sabedoria dos tempos passados, mostra o que agora é evidente, saber que em todo ser humano coexiste um aspecto dos dois opostos. Devemos conseguir que estes aspectos formem um equilíbrio em que se completem e forme um conjunto harmonioso. Uma vez conseguido este estado, todo indivíduo pode alcançar o que quiser. Efetivamente, alcançar este estado de beatitude é ter conseguido a maestria sobre a Pedra Filosofal. Este era o objetivo dos alquimistas simbólicos do passado e a finalidade dos rosacruzes de nossos dias.

* Peter Bindon é Grande Mestre da Jurisdição de Língua Inglesa para Australásia e Oceania.



FONTE: BINDON, Peter. Maria profetisa. In O Rosacruz. n. 265. 3. Trimestre 2008. Curitiba: AMORC, 2008. p. 19-21.

A GUERRA SANTA: MOBILIZAÇÃO COLETIVA EM DETRIMENTO DA VIDA DA ALMA HUMANA



Por Didier Lafargue

  
O homem sempre foi tentado pelo demônio da guerra santa. Sejam elas religiosas ou não, as ideias que as sustêm sempre exprimem uma renúncia à sua liberdade pessoal.

A essa expressão “guerra santa”, não se pode senão ficar chocado inicial-mente pela antinomia aparente existente entre os dois termos, na medida em que pode parecer inconcebível que uma guerra possa ser santa. Que caiba ao homem a necessidade de às vezes fazer a guerra para se defender, não há dúvidas. Deificar a guerra, contudo, e colocá-la num pedestal afirmando fazê-lo em nome de um princípio sagrado, é legitimá-la de maneira excessiva, tornando difícil sua limitação. Todavia, em sua fraqueza, o homem cedeu a essa tentação, independentemente da natureza de suas ideias.


Guerra Santa e Religião

A existência da guerra santa parece naturalmente ligada ao fenômeno religioso. Ela é favorecida por uma crença do tipo monoteísta. O culto do Deus único, o princípio superior que ele representa e a ideia de absoluto que ele sustenta tornam possível a expansão de todas as energias a fim de que triunfe a causa em questão. Sobretudo a liberdade que ela traz ao homem, revelando-se a ele, no caso do Antigo Testamento e se encarnando no caso do NovoTestamento, dá à criatura o livre-arbítrio que lhe permite escolher tanto bem quanto mal todos os seus atos.

De início, ignora-se que é uma inferioridade psicológica que motiva esse élan. As guerras santas nascem geralmente de situações onde reina certa apatia moral, que exige compensação pela afirmação de uma vontade coletiva sob o império de uma aura divina. Foi esse o caso na península arábica povoada por tribos divididas umas contra as outras, objeto de desdém por parte das civilizações circunvizinhas. Um profeta de nome Maomé tentou unificá-las em nome do todo-poderoso Alá e impulsioná-las à conquista do mundo. Essa jihad suscita naturalmente, por reação, a existência de uma outra guerra santa a que chamamos “cruzada”. O nascimento desta nos deixa perplexos: como uma religião de caridade e de amor pode gerar um tal desejo de violência? As condições particulares que viram sua emergência no mundo ocidental permitem responder a essa questão. O medo do Islã, por muito tempo contido, havia provocado uma reação geral. As mazelas do tempo, a penúria, as epidemias e as inundações precisavam ser esquecidas, então, em uma violenta onda de expansão.

Contudo, trabalhando para o triunfo da Cruz, o cruzado apenas obedecia a um princípio deixado no exterior de si próprio, segregando-o do mundo sensível. “Eu via Santo Agostinho transmitindo aos Anglo-Saxões, da ponta das lanças romanas, o credo cristão e Carlos Magno impondo gloriosamente aos pagãos conversões tristemente célebres. Em seguida as hordas saqueadoras e mortíferas das armadas de cruzados e, dessa forma, como um golpe de misericórdia, a empáfia do romantismo tradicional das cruzadas me saltou aos olhos”1, afirmava o psicólogo Carl Gustav Jung. Entre essa luta comum empreendida em nome de um ideal religioso afirmado e uma autêntica vida espiritual do indivíduo em sua intimidade consigo, a relação permanece bastante frágil. Assim, vemos que Deus é uma realidade muito difícil de se perceber. Além disso, por muito tempo o homem hesitou em querer encontrá-Lo.

Aí nos é dada a oportunidade de nos interrogarmos sobre a fé, sobre o que ela representa realmente na compleição da personalidade humana e sobre toda a distância que a separa da noção de crença.

Se as crenças nos vêm do fundo da alma e se impõem à nossa consciência, a fé vai mais longe naquilo que se refere à nossa vontade e nos incita a fazer uma escolha. Ao homem ela fornece a força e a unidade que apenas o sentimento de Deus lhe permite obter. “A fé pode mover montanhas”, costuma-se dizer. É preciso ainda que ela caminhe lado a lado com toda a humildade desejável e com uma certa dose de autocrítica pessoal. Sem dúvida isso foi necessário a Abraão quando, deixando a Mesopotâmia, submetido à influência daquilo que para ele não eram senão falsos deuses, lançou-se impetuosamente a uma aventura aparentemente sem esperança, ao cabo da qual encontrou Deus e fundou o povo hebreu. Muito justamente a fé, quando corretamente assumida, dá uma força de alma que nos permite realizar as coisas mais grandiosas. Ela não deixa de ser uma faca de dois gumes, pois o homem pode usar tanto bem quanto mal a liberdade que lhe é própria. De fato, se dispuser de abnegação suficiente para canalizar essa energia para proveito maior de seus semelhantes, ele se torna uma admirável personalidade, como a manifestada por grandes santos como Francisco de Assis ou Vicente de Paulo. Porém, se não tiver nele a força moral necessária para assumir a liberdade de que foi investido, cria-se então nele uma depressão que exige absolutamente uma compensação. Esta se afirma com todos os excessos possíveis, nos quais caíram seres como Savonarole ou Torquemada. “O fanatismo é o irmão sempre presente da dúvida”2, dizia Jung.

Com efeito, revelando-se à sua criatura, o Todo-Poderoso a munia com uma terrível responsabilidade da qual, todavia, nem sempre se mostrou digna. Por isso o homem, durante milênios, preferiu dirigir sua adoração para uma pluralidade de deuses com todo seu cortejo de ritos, os quais ofereciam menos liberdade mas também mais segurança.


Laicização da Guerra Santa

Os princípios religiosos não são os únicos motores capazes de mobilizar as multidões. Longe disso. Valores ditos “sagrados”, sem nenhuma relação com as religiões constituídas, podem produzir o mesmo efeito. Foi assim que os filósofos do Iluminismo, opondo-se aos princípios defendidos pela Igreja, criaram novos dogmas e inúmeras palavras de ordem às quais aderiram as paixões. Em nome da Razão, da Felicidade, da Liberdade e da Tolerância, a Revolução Francesa se materializou em guerra santa e soube se mostrar implacável em sua luta contra "a intolerância e o fanatismo". Jamais o poder das palavras foi tão forte e a maiúscula a elas associada apenas traduzia o caráter frio e abstrato das ideias veiculadas – as que se impunham a uma sociedade reprimida em suas ambições e mantida numa situação subalterna em nome do respeito aos privilégios. Valores laicos substituíam os valores religiosos e sempre em nome deles foi empreendida a guerra santa!

Os regimes totalitários do século XX não ficaram devendo à expressão desta ideia. Como desejavam se assegurar da fidelidade das almas do interior do país, seus governantes se dedicaram a monopolizar as energias contra um inimigo exterior, no mais das vezes imaginário. Assim fez a Alemanha nazista engajada em sua cruzada contra o Judaísmo e o comunismo; o bloco comunista em sua luta contra o mundo capitalista. Todos os excessos eram então permitidos em nome de um ideal assim afirmado. Ainda em nossos dias a religião justifica a violência, a do Islã legitimando os atos terroristas, a do governo americano promovendo a guerra contra o Iraque em conformidade com a “vontade do Todo Poderoso”. Aí se evidencia o papel mantido pela ideologia no cimento das sociedades e a relação existente entre ela e a livre expressão da personalidade.

É conhecido o sentido revestido por esse termo depois que foi formado o grupo de ideólogos, no final do século XVIII, sob a égide de Destutt de Tracy. Contudo, desde sempre todas as comunidades humanas foram guiadas por princípios reconhecidos por todos, dando a seus membros os meios de definir suas ações. Por muito tempo esse papel foi cumprido pela religião, seja ela expressa sob a forma de ritos ou de dogmas. A ideologia que animava a sociedade então era fonte de vida na medida em que assegurava a coesão social e cada um podia dela extrair seus próprios valores.

O perigo começa quando, a pretexto do bem público, ela exige de todos uma adesão sem falhas, subordinando toda moral à execução de seus objetivos. A Igreja conheceu um tempo assim, os excessos da Inquisição testemunham isso. Se há muito tempo ela renunciou a tais pretensões é o Estado que, atualmente, faz o cidadão correr esse risco.

Nos primórdios da cristandade, era a Igreja que reivindicava o poder total, tanto temporal quanto espiritual! A Igreja não tem mais, em nossos dias, essa pretensão, que foi assimilada pelos Estados totalitários que reclamam o poder não apenas temporal, mas também espiritual.3

E Jung acrescenta que em épocas diferentes e em outros contextos, os homens eram animados pela mesma psicologia:

“O absolutismo da ‘civitas Dei’, da cidade de Deus, personificado pelos homens, se assemelha excessivamente à "divinização" exaltada pelos partidários do Estado, e as consequências morais que um Ignácio de Loyola extrai da autoridade da Igreja – qual seja, os objetivos santificam os meios – antecipam perigosamente o uso da mentira como instrumento de alta política. De um lado como de outro uma submissão total à Fé é exigida. A pessoa se encontra assim amputada de sua liberdade, de sua liberdade perante Deus para uns, de sua liberdade perante o Estado para outros, o que tanto num caso como no outro, é cavar sua tumba .4


Guerra Santa e Poder

Assim observamos que, além da vontade de lutar em nome de Deus ou no de Allah, a vontade de fazer triunfar a Razão, a nova ordem do Grande Reich ou o princípio de uma sociedade sem classes e sem Estado, é sempre o demônio do poder que possui e domina o homem. Quando uma comunidade escolhe deter-minado caminho, é a sua própria identidade que ela manifesta e que quer impor à força. É esta a relação que faz da guerra santa a expressão do nacionalismo. O nacionalismo expressa sempre tudo o que caracteriza uma determinada comunidade humana, sua posição geográfica, sua história, suas tradições culturais, traços que fazem sua originalidade e sua diferença em relação aos outros povos. Combatendo por esses valores, ela tenta se impor ao resto do mundo, ou mesmo afirmar seu desejo de dominação de outras sociedades humanas.

Agindo dessa forma, o homem trai seu orgulho. Não realmente consciente, irresponsável, ele se deixa guiar por uma força poderosa saída de seu inconsciente coletivo que, ao invés de ser canalizada, atrofia sua liberdade. Consagrado ao ilimitado e a um idealismo insensato, frutos de sua “semelhança com Deus”, tenta criar o paraíso na Terra. Para além dos princípios motores suscitanto a adesão das multidões, apenas um deus se impõe em definitivo ao indivíduo, Moloch, o deus devorador dos humanos. Outrora, os homens sacrificavam seus filhos ao antigo deus de Canaan. Hoje em dia Moloch desapareceu. Tirano interior, ele renasce sob a forma de ideias abstratas sem raízes verdadeiras, às quais os homens se sacrificam, sacrificando também sua alma, sem nenhum discernimento.


Interiorização da Guerra Santa

Colocada no pináculo, a guerra santa exalta as mais baixas pulsões humanas. Se os homens tivessem maior lucidez, encarariam a guerra pelo que ela realmente é, ou seja, o maior dos flagelos humanos. A paz e o progresso geral da humanidade não poderão nunca ser obtidos por meio de ordem coletiva, ardores guerreiros dos quais só podem resultar miséria e devastação, mas sim por meio de uma honesta reflexão do indivíduo sobre si mesmo. Cultura, filosofia, educação lhe darão os valores apropriados que lhe permitirão o bom uso de sua liberdade e recusar doutrinamentos artificiais.

Portanto, compreende-se que a única guerra santa que pode ser aceita é a guerra que se trava consigo mesmo. Para isso, o Antigo Testamento oferece imagens que podem ajudar nossa busca pessoal. Na verdade podemos ver nas vitórias e nas derrotas impostas pelo Senhor ao povo hebreu uma correspondência com os dilaceramentos vividos pela alma humana. Num plano unicamente metafórico, as guerras empreendidas por Israel representam no interior do indivíduo o confronto entre o bem e o mal e as únicas armas das quais pode dispor, são apenas de ordem espiritual.


Notas:
1 JUNG, C. G., Ma vie [Minha vida], Paris, Gallimard, 1973, p.286.

2 JUNG, C. G., Eâme et la vie [A alma e a vida], p.254.

3 JUNG, C.G., C.G.Jung parte, p.103

4 JUNG, C.G., Présent et avenir, p.65


FONTE: LAFARGUE, Didier. La guerre sainte, mobilisation collective au détriment de la vie de l’âime humaine. Pentacle. n. 20. Janier 2012. Le Tremblay: OMT, 2012. p. 2-11.

sexta-feira, 17 de julho de 2015

ORFEU - 4




ANTIGA SABEDORIA ERGUE-SE DAS CINZAS


Por Steven Armstrong, FRC Bibliotecário de Pesquisa, Parque Rosacruz

No campo da filosofia grega e da religião grega, uma das mais importantes descobertas dos tempos modernos foi o achado do Papiro Derveni em 1962. A história do uso de notáveis tecnologias modernas para decifrar o manuscrito não só é fascinante em si mesmo. E como também revela os meios pelos quais os mundos moderno e antigo estão se aproximando um do outro em muitos aspectos.

Em algum momento durante a segunda metade do século quinto a.C., um filósofo e teólogo grego desconhecido,possivelmente da escola do mestre de Sócrates, Anaxágoras, escreveu um substancial comentário sobre urna das Teogonias Órficas. Uma Teogonia descreve em termos mitológicos a evolução do cosmo de uma unidade original para a grande multiplicidade que vivenciamos, e o comentário se estendeu muito em discutir interpretações do texto, Isto foi em si mesmo surpreendente para estudiosos modernos aprenderem, urna vez Que este tipo de comentário interpretativo erudito era tido como tendo se originado mais tarde, nas academias de Atenas e Alexandria, quando o neoplatonismo surgiu no século III d.C.

O trabalho desse thelogos órfico deve ter sido popular, pois uma cópia encontrou seu caminho para a biblioteca de um nobre macedônio durante o reinado de Filipe II, Rei da Macedônia (pai de Alexandre, o Grande). Quando esse nobre desconhecido faleceu, mais ou menos em 340 a.C., seus ritos fúnebres foram celebrados numa necrópole grega do norte, próxima ao atual Derveni. Os ritos incluíam a tradicional pira e, entre os itens caros ao nobre que foram queimados com ele, havia um rolo de papiro contendo o comentário teológico órfico.


Orfismo ligado à vida imortal

Não era incomum o material órfico estar ligado a tumbas e sepultamentos. Começando na década de 1830, trinta e nove folhas ou placas de ouro foram encontradas em terrenos de sepultamento na Itália e em Creta, com inscrições órficas nelas contidas1. As datas dos artefatos se estendem de fins do século V a.C. até o século II d.C. Eles contêm aforismos, instruções para o falecido e dizeres místicos como “Mediante ser um mortal você se tornou um Deus. Como um filhote de carneiro, você caiu em leite. Salve! Salve!”2

Mais recentemente, na década de 1970, fragmentos de ossos, com inscrições órficas do século V a.C., foram descobertos em Olbia (Ucrânia), no Mar Negro, com invocações como “Vida morte vida verdade Oráculo Dionisíaco”3. É claro que o orfismo havia mais cedo se tornado associado à morte que transcendia o temporal. Como o sacerdote e estudioso dominicano Marie-Joseph Lagrange, fundador da Escola Prática de Estudos Bíblicos de Jerusalém, observou: “Podemos resumir o que temos a dizer sobre este assunto: o centro do orfismo pode ser encontrado nas placas de ouro encontradas nas tumbas”4.


O papiro subsiste mediante a pira

Comumente, o clima da Grécia não é favorável à preservação de papiros. Contudo, neste caso, as chamas carbonizaram e preservaram o delicado papiro. Não se sabe de nenhum outro papiro grego desse período ou anterior que tenha subsistido. Por mais de 2.300 anos o papiro chamuscado ficou enterrado no alto da tumba do nobre corno parte dos restos da pira.

Um dia, em 1962, operários estavam trabalhando numa construção para a Estrada Nacional de Thessaloniki para Kavala quando desenterraram a antiga necrópole onde estava o nobre macedônio. Arqueólogos foram chamados e o papiro foi retirado de sua antiquíssima pira. Até hoje é o mais velho papiro encontrado na Europa5, induzindo jornalistas a se referirem a ele como “o mais velho livro da Europa”6. A importância desta descoberta dificilmente poderia ser superestimada:

“Ao dizer que o papiro Derveni é o mais importante texto do século quinto que apareceu desde a Renascença, não estou sendo hiperbólico, mas perfeitamente sério. Ele é mais significativo do que as Bacchylides, as novas Simonides, dramas perdidos, ou o Empédocles de Estrasburgo, uma vez que já tínhamos quantidades de coral lírico, elegia, drama e Empédocles. Uma peça de um autor pré-socrático desconhecido, que usa alegoria e etimologia para explicar rituais e um texto órfico de uma data muito anterior à época em que estudiosos pensavam que existissem textos órficos, é um achado realmente extraordinário, mesmo que fosse demonstrado que não proviesse dos acervos de Anaxágoras e Sócrates”7.


Recuperando o texto chamuscado mediante moderna tecnologia

De início, o papiro foi meticulosamente desenrolado. A dificuldade para manusear esses antigos e delicados manuscritos incomodou pesquisadores em projetos como The Gospel of Judas8 e a Villa dos Papiri em Herculaneum9. Estudos preliminares e traduções foram publicados em 1997 e 200410. Depois, em 2005, Apostolos L. Pierris, do Patras Institute for Philosophical Studies e Dirk Obbink, diretor do projeto papiro Oxyrhynchus na Universidade de Oxford, organizaram uma equipe para estudar o Papiro Dervini com o auxílio de modernas técnicas multi-espectrais de visualização. Eles chamaram Roger Macfarlane (Clássicos) e Gene Ware (Ciências de Engenharia e Computação e o Papyrological Imaging Lab) da Universidade Brigham Young, para se juntarem a eles nesse ultramoderno sistema a fim de verem o que antes não podia ser visto. Em maio de 2006, a equipe começou a fazer suas varreduras.

A visualização multi-espectral teve origem no mundo da ciência espacial, quando os astrônomos captam luz acima das frequências comuns que o olho humano pode ver. Essas frequências incluem o infravermelho, por exemplo. Assim fazendo, os pesquisadores podem recuperar muito mais informação do que é disponível na luz visível. Uma vez que o infravermelho inclui vibrações com um comprimento de 1.000 nm (nanômetros = um bilionésimo do metro), isto é particularmente útil para recuperar documentos queimados ou estragados de outro modo.

A olho nu, o texto do Papiro Derveni parece ser tinta preta em papel preto e é, em manchas, praticamente ilegível. Visto a 1.000 nm, há uma marcante diferença entre a reflexividade da tinta e do papel, o que torna o texto legível. Esta técnica foi recentemente usada em pelo menos três achados arqueológicos de alto perfil oriundos do mundo antigo: o Papiro Derveni11, The Gospel of Judas12, e a biblioteca da Villa dos Papiros em Herculaneum13. Paralelamente, outras tecnologias modernas, como o processamento digital de varredura ultravioleta, raios-x e luz visível, levaram à plena leitura de antigos documentos como várias obras perdidas de Arquimedes no “Archimedes Pallimpsest”, uma cópia es-crita do décimo século descoberta em 1906, que havia sido sobrescrita como um texto litúrgico no décimo segundo século14, e outros documentos.


A Villa dos Papiros divulga seus segredos

A biblioteca da Villa em Herculaneum pode enfim se demonstrar o mais excitante de todos os atuais projetos multi-espectrais de visualização. Entre 1750 e 1765, o arquiteto e engenheiro suíço Karl Weber escavou o subsolo em Herculaneum para descobrir a antiga biblioteca no prédio, com 1.785 rolos de papiro carbonizado hoje mantidos no Museu Arqueológico Nacional de Nápoles.

Os pergaminhos foram chamuscados quando o Vesúvio entrou em erupção em 79 d.C. Consta que o prédio pertencera ao sogro de Júlio Cesar, Lucius Calpurnius Piso15. Como ainda existem 30.000 pés quadrados da villa que ainda não foram escavados, muito provavelmente devem haver outros manuscritos, uma vez que as escavações começaram novamente no outono de 2007, depois que o governo italiano assegurou que o local estava adequadamente conservado16. Usando visualização multi-espectral, as obras já recuperadas são principalmente de Epicuro e Philodemus17.


Mistérios Órficos combinam Ciência e Misticismo

No trabalho que continua sendo feito no Papiro Derveni, está ficando claro que as linhas que o Ocidente moderno gosta de traçar entre ciência, filosofia e misticismo estão frequentemente ausentes nesse antigo texto18. Estudos mais recentes sobre filósofos como Empédocles – ligados aos pitagóricos que têm muito em comum com o orfismo – também confirmam esse antigo parecer manifesto na linhagem rosacruz:

“... está ficando mais claro, especialmente desde a descoberta dos fragmentos de Estrasburgo [Ed: das obras de Empédocles], que, contrariamente a muitas interpretações anteriores, Empédocles não fez uma distinção clara entre sua filosofia da natureza e os aspectos mais místicos, mais teológicos, da sua filosofia, e assim bem pode não ter vis-to grande diferença em espécie entre curar doentes mediante compreensão empírica da fisiognomonia humana e curar por meio de encantamentos sagrados e purificações ritualísticas. Seu público pode também não ter feito grande distinção entre medicina 'científica' e medicina sacra, como é sugerido no relato de Empédocles curando uma praga ao restaurar um suprimento de água fresca, depois do quê ele foi venerado como um deus”19.

A perspectiva de continuação do trabalho sobre o Papiro Derveni e da conseqüente expansão do nosso conhecimento sobre o orfismo, são boas. Polyxeni Veleni, diretor do Museu Arqueológico de Thessaloniki, está muito esperançoso. “Eu acredito que 10-20 por cento de novo texto serão acrescentados, mas que, no entanto serão de crucial importância. Isto vai preencher muitas lacunas, conseguiremos uma compreensão melhor da sequência e o texto existente se tornará mais completo”20.

Parece muito apropriado que nossa compreensão desses antigos mistérios esteja sendo gradativamente aumentada pelo uso da natureza vibratória da luz em visualização multi-espectral e técnicas associadas. Podemos visualizar nossos antigos antecessores em misticismo - e não menos os praticantes do orfismo – sentindo-se muito felizes em ver a ciência e a espiritualidade mais uma vez em harmonia, para o crescimento de conhecimento e serviço.

Nota do editor: Os Mistérios Órficos - Para que possamos entender melhor a importância e a influência de Orfeu na história esotérica e no pensamento grego, no contexto das artes e da literatura, nossa revista O Rosacruz oferece aos rosacruzes uma série de artigos sobre o assunto. Os textos são interessantes por si mesmos, mas, o buscador atento perceberá sua ligação com a história e o pensamento rosacruz, cujas origens vêm de eras imemoriais. Certamente será uma leitura esclarecedora.

Notas: 1. Para um estudo em larga escala sobre os Tabletes de Ouro e materiais associados a eles, com uma excelente discussão de pareceres modernos sobre o orfismo, ver Ritual Texts for the Afterlife. Orpheus and the Bacchic Gold Tablets, de Fritz Graf e Sarah Iles Johnston (Londres: Routledge, 2007); 2. Vera texto grego de Tablete 3, de Thurii, em Graf e Johnston, 8; 3. Ritual Texts, de Graf e Jonhston, 185; 4. Les Mystères: Orphisme Introduction à l'étude du Nouveau Testament, de Marie-Joseph Lagrange, 4:1 (Paris. Lecoffre, 1937)136 ; citado em Graf e Johnston, 61 e 194, n. 39; 5. Há um pergaminho encontrado numa tumba em Atenas que data do quinto século, porém, até bole ele não pôde ser lido. Ver The Derveni Papyrus. Cosmology, Theology and Interpretation, de Gábor Betegh (Cambridge, UK: Cambridge University Press, 2004), n. 10, citado em “Review of Gábor Betegh, The Derveni Papyru”, Notre Dame Philosophical Reviews, de Patricia Curd, Setembro 16, 2006, http.findpr.nd.edu/review.cfm?id=7703#_ednl; 6. “Europe’s Didest ‘Book’, de Brian Handwerk, lido com visualização de alta tecnologia”. National Geographic News, Junho 6, 2006, http://news.nationalgeographic.com/news/pf/18239914.html; 7. “Janko on l(ouremenos, Parássoglou, and Tsantsanogiou on Janko on Kouremenos, Parássogiou, and Tsantsanoglou, The Derveni Poluis”, Bryn Mawr Classical Review, de Richard Janko, Novembro 20, 2006, em http://ccat.sas.upennt.edu/bmcr/2006/2006-11-20.html; 8. “The Gospel Saved”, The Lost Gospel of Judas (Washington, DG National Geographic Society website, 2006), http://www.nationalgeoghraphic.com/lostgospel/conservation_saved.htm; 9. O processo às vezes horripilante de lidar com esses tipos de manuscritos é detalhado em The Library of the Villa dei Papiri at Herculaneum, de David Sider (Los Angeles, CA: The J Paul Getty Museum, 2015, citado em Curd, n 2; 10. Studies on the Derveni Papyrus, de André Laks e Glenn W Most, editores, (Oxford University Press, 1997); The Derveni Papyrus Cosmology, Theology and Interpretation, de Gábor Betegh (Cambridge, UK. Cambridge University Press, 2004); além disto, uma edição posterior foi publicada antes que fossem completados todos os resultados da análise multi-espectral: The Derveni Papyrus (Florença: Leu S. Olschki Editore, 2006) Vol 13 da Série Studi e testi per il Carpas dei papiri filofici greci e latini, de K. Tsantsanoglou, G.M. Parássoglou, T. Kouremenos (editores); 11. Ver “Derveni Papyrus”, http://en.wikipedia.org/wiki/Derveni_Papyrus, para uma introdução geral e referências web; 12. Ver “The Gospel of Judas” http://en.wikipedia.org/wiki/Gospel_of_judas; The Lost Gospel of Judas (Washington, OC: website da National Geographic Society, 2006), http://nationalgeographic.com/lostgospel/; e “Review of The Gospel of Judas” Rose-Croix Journal3 (2006), 157-163, de Steven Armstrong, http://www.rosecroixjournal.org/issues/2006/boolcseviews/vol3_157_163review_armstrong.pdf; 13. See “Villa of the Papyri”, http://en.wikipedia. org/wiki/Villa_of_the_Papyri para uma visão gerai do projeto; 14. “Archimedes Pallimpsest”, http://en.wikipedia.org/wiki/Archimedes_ Pallimpsest; 15. “Millionaire to Fund Dig for Lost Roman Library”, de Nick Fielding, Times Online (London: The Sunday Times website, February 13, 2005), http://timesonline.co.uk/article/0,2087-1482342,00.html; 16. “Diggers Begin Herculaneum Task of Finding Masterpieces Lost to Volcano”, de Richard Owen, Times Online (London. The Times website, October 24, 2007), http://enternainment.timesonline.coukitoVarts_and_entertainment/books/article2726757.ece; 17. David Sider forneceu uma excelente visão geral do progresso do projeto em Library of the Villa dei Papyri at Herculaneum, 2005. Ver a revisão de Jan P. Stronk em Bryn Mawr Classical Review, janeiro 14, 2006, em http://ccat sas.upenn.edu/bmcr/2006/2006-01-41.html; 18. Dirk Obbink, Ph.D., da Birgham Voung University, citado em Handwerk, 2; 19. “Empedocles”, de Gordon Campbeti, Internet Encyclopedia of Philosophy, 2006, http://www.iep.utm.edu/e/empedocl.htm. Esta harmonia de ciência e espiritualidade entre os filósofos pré-socráticos é confirmada nas obras de Peter Kingsley, Ancient Philosophy, Mystery, and Magic: Empedocles and Pythagorean Tradition (Oxford, UK. Ciarendon Press of Oxford University Press, 1995); In the Dark Places of Wisdom (Inverness, CA: Golden Sufi Center, 1999); Reality (Inverness, CA: Golden Sufi Center, 2003); 20. “Ancient Scroll May Vield Retigious Secrets”, Associated Press, June 1, 2006, disponível em http://www.msnbc.msn.com/id/13081639/.

Para as Estrelas a partir dos Hinos Órficos

Os escritos que chegaram a nós como os Hinos órficos são uma coletânea de oitenta e sete poemas temáticos escritos em hexâmetros, dirigidos a Deuses, Deusas e forças cósmicas. A inscrição indica que certos incensos podem ter sido usados para acompanhar a declamação de cada peça, relativamente a cada poder em particular.  A tradução aqui é do eminente neoplatonista do século dezoito, Thomas Taylor, adaptada para leitores modernos.

PARA AS ESTRELAS

A defumação por odoríferos
Com voz sagrada no alto as estrelas chamo,
Puras luzes sacras e gênios do céu.
Estrelas celestes, a prole da Noite,
Em círculos a rodopiarem, longe a tua luz irradiando,
Refulgentes raios pelo céu tu lanças,
Fogos eternos, a fonte de tudo em baixo.
Com chamas que significam Destino tu brilhas,
E de pronto um divino caminho fazes para nós.
Em sete zonas brilhantes com errantes chamas corres,
E o céu e a terra teus radiosos sistemas compõem:
Com incansável trajetória, ígneo e puro fulgor
Para sempre através do véu da Noite luzindo.
Com força tremulando, jubilosos, sempre acesos fogos!
Propícios a todos os meus justos desejos brilham;
Estes sagrados ritos com raios conscientes contemplam,
E nossas obras ao teu louvor dedicadas se concluem.*

*De The Orphic Hymns. Traduzido por Thomas Taylor (Londres: impresso para o autor, 1792). Disponível em: http://www.sacred-texts com/cla/hoo/index.htm
  

FONTE: ARMSTRONG, Steven. Antiga Sabedoria ergue-se das cinzas. In O Rosacruz. n. 277. Inverno 2011. Curitiba: AMORC, 2011. P. 30-35.

Fragmentos do Papiro Derveni.


Tablete de ouro órfico encontrado perto de Petelia, Itália. Do século III ou II a.C. Atualmente no Museu Britânico, em Londres.

ORFEU - 3





A REDESCOBERTA DE ORFEU DURANTE A RENASCENÇA

Por Alexander J. Broquet, FRC

“O poeta genuíno é sempre um sacerdote”

Novalis



Durante o período da história ocidental conhecida como Renascença, filósofos, poetas, músicos e intelectuais revigoraram as tradições da Grécia Antiga. Esse período de renascimento intelectual e artístico foi enriquecido pela profusão de textos antigos que vieram a tona apos o colapso de Constantinopla em 1453. Textos gregos que estavam perdidos ou incompletos foram redescobertos e traduzidos, tornando-se disponíveis na Europa pela primeira vez em quase mil anos.  O impacto desses textos no Ocidente repercute profundamente ate hoje.

A redescoberta da figura mítica de Orfeu durante a Renascença é um claro exemplo de como a arqueologia intelectual e artística da época deu origem a novas formas de expressão nas artes, a novas percepções dos ensinamentos de antigos filósofos e a novas maneiras de integrar a sabedoria antiga com as religiões da época.

Orfeu nascido: Grécia Antiga

As fontes gregas antigas do mito focalizam--se em Orfeu como um cantor místico e teólogo que falou das origens do universo e dos deuses através de hinos e de música. Juntamente com Homero, Hesíodo e Pindar, ele foi venerado como o maior poeta grego. Como teólogo, dizia-se que ele havia sido iniciado as escolas de mistério do Egito Antigo e levara estas sagradas tradições para a Grécia. As descobertas pitagóricas do caráter sagrado do número, a base da escala musical e de praticas como o vegetarianismo, teriam sido levadas por Orfeu para a Grécia, onde foram adotadas e enriquecidas por Pitágoras e seus seguidores.

Segundo o neoplatônico Proclo, Orfeu forneceu a fonte de toda a religião grega – “a teologia de ‘Todos os Gregos’ é o fruto da doutrina mística órfica”. Na religião e na filosofia da Grécia, a música estava intima-mente associada a criação do cosmo, bem como a essência da alma. Isto é mais bem ilustrado no diálogo de Platão Timaeus, que pode ter tido origens pitagórica e órfica. No Timaeus, diz Platão: “... todo som musical audível nos e dado para fins de harmonia, que tem movimentos similares as orbitas na nossa alma e que, como sabe todo mundo que faz use inteligente das artes, não deve ser usado... para dar prazer irracional e sim como um aliado enviado do céu para trans-formar em ordem e harmonia toda desarmonia nas mudanças no nosso interior”.

A música tem o poder de harmonizar a alma individual com a alma do mundo assim como o microcosmo humano contem os mesmos elementos do macrocosmo do mundo. O tocar certos tipos de música podia levar à harmonização com o ser divino. Outros tipos de música podiam suscitar violência, angústia ou letargia. A música exercia controle sobre os elementos, os seres humanos e os animais. Por estas razões Platão instava um grande cuidado no uso de música, e recomendações especificas eram feitas quanto a quais tipos de música empregar para obter o maior bem. Histórias semelhantes são ditas sobre como Pitágoras curava pessoas e criava harmonia social através da música.

Como o maior músico e cantor do mundo antigo, Orfeu comandava incríveis poderes sobre a natureza e a alma. Ele era famoso por encantar animais selvagens, civilizar pessoas bárbaras e ate deslocar arvores e pedras pelo poder da música. Sua lira lhe foi dada por Apolo, o deus da música e da harmonia e, portanto, tinha poderes especiais. Como um instrumento de harmonia, com sete cordas harmônicas, a lira representa também a harmonia do cosmo. A ressonância simpática criada tangendo-se as cordas da lira proporcionava aos gregos antigos uma poderosa metáfora para conciliar espírito cósmico com alma humana. Este conceito seria muito expandido por filósofos da Renascença posterior, como Marsilio Ficino, que tocava uma lira órfica exatamente para este fim.


Orfeu está vivo: primeiros mitos

Uma primeira narrativa do mito de Orfeu vem de Argonautica, um poema do século quatro d.C. que relata as aventuras de Jasão e dos argonautas em sua busca do Velocino de Ouro. Orfeu, o cantor, protege os argonautas do perigo de ouvirem o canto da sereia, tocando sua lira e cantando. Ela também contem hinos cosmogônicos e menciona as viagens dele para o Egito.

O mito de Orfeu com que estamos mais familiarizados foi contado pelos poetas romanos Ovidio, Virgílio e Horicio. Tanto em Metamorfoses (8 d.C.) de Ovídio como em Georgics (23 a.C.) de VirgÍlio, Orfeu, o maior tocador de lira, desceu ao submundo para recuperar seu amor, Eurídice, do reino de Hades, depois que ele a perdeu por falecimento devido a uma picada de cobra no dia do casamento deles. Ele teve de cruzar o portal do Hades, passar pela fera de três cabeças, Cérbero, e cruzar o rio Styx, guardado pelo barqueiro Charon. Ele foi guiado pela esperança e seu canto e sua execução de música fizeram os guardas do submundo dormir de modo que ele pudesse entrar onde nenhum ser humano era permitido. Orfeu apelou para Pluto e Perséfone, os regentes do submundo, para que eles lhe permitissem levar Eurídice de volta a terra dos vivos. Seu canto mavioso os persuadiu a atenderem ao seu pedido, mas havia um empecilho: ele não deveria olhar para trás, para ela, enquanto estivesse subindo do submundo. Orfeu concordou e guiou Eurídice para fora do submundo. Num instante de dúvida ele ouviu um ruído e se voltou para ela, causando trágica perda dela pela segunda vez.

Ao retornar, Orfeu caiu em grande desespero. Encontrou alivio na música e no canto para os homens selvagens da Trácia, originários do cosmo e dos deuses. Orfeu foi brutalmente dilacerado e desmembrado pelas bacantes – as selvagens e furiosas adoradoras de Dionísio. Consta em alguns relatos que isto aconteceu porque ele não lhes permitiu serem iniciadas aos mistérios órficos; outros relatos afirmam que isso foi uma reação ao fato de ele ter persuadido seus homens a irem embora. Sua cabeça arrancada e sua lira flutuaram rio abaixo para a terra na ilha de Lesbos, onde a cabeça continuou a cantar e fazer oráculos. Tão grande era o seu poder que ate Apolo ficou enciumado. Sua lira, uma fonte de grande poder mágico, foi suspensa no templo de Apolo.

Em Ars Poetica, de Horácio, Orfeu é também retratado como o civilizador de seres humanos. Ele foi o primeiro poeta a “abrandar o coração das ‘pessoas cruéis e bestiais’ e colocá-las no caminho para a civilização”. Como John Warden indica, o efeito da canção de Orfeu é de guiar os seres humanos para o amor. Como declarado no Hino Órfico a Vênus, “O amor é muito antigo, prefeito em si mesmo e muito sábio”.


Orfeu perdido: a Idade Média

Os mitos romanos de Ovídio e Virgílio são poderosos e permanecem conosco ate hoje. Mas, antes das novas versões do mito de Orfeu, havia uma sagrada tradição com profundas raízes na religião grega. O mito de Orfeu foi absorvido na emergente tradição cristã, como se vê na arte funerária romana e nas comparações teológicas de Orfeu com Davi e Moisés. Na antiga tradição cristã, Orfeu foi visualizado como um profeta pagão que pressagiou a vinda do Cristo.

Como Agostinho mais tarde escreveu, dizia-se que Orfeu “tinha predito ou falado a verdade sobre o Filho de Deus ou o Pai”. O que Orfeu começou, o Cristo completou. Mais tarde, na Idade Média, o mito de Orfeu seria contado novamente em forma de alegorias morais. Durante este período, o conhecimento escrito do sagrado, do místico e dos ensinamentos teológicos da tradição órfica, foi perdido.
Durante o período do terceiro ao sexto séculos, motivos órficos foram misturados com representações do Cristo na arte funerária, como se vê nas catacumbas romanas. Artistas funerários, procurando estabelecer modelos adequados para a necessidade da nova fé cristã de imagens do Cristo como um líder de almas através do submundo, puderam usar a figura de Orfeu. Nesses antigos afrescos das primeiras catacumbas cristãs, Orfeu, o pacifico domador de animais selvagens, e representado como um símbolo do Cristo. Com o passar do tempo, a imagem de Orfeu, o domador de animais, e a do Cristo, o Bom Pastor, acabariam se fundindo.

John Block Friedman observa semelhanças entre representações do Cristo e de Orfeu na antiga arte funerária cristã: “... Orfeu, devido a sua natureza pacífica, ao seu poder de acalmar discórdia através da música e da eloquência, e a sua trágica morte nas mãos dos seus seguidores, foi talvez a mais apropriada e certamente a mais duradoura das figuras pagas para o Cristo a serem usadas na arte funerária”. Nessas imagens de tumbas, o Cristo é representado com uma lira e uma touca frigia, cercado de animais – nestes casos, a variedade dos animais e tipicamente simplificada para mostrar carneiros ou outros animais icásticos como pombas e águias.

Escritores cristãos que comparam explicitamente Cristo e Orfeu incluem Clemente de Alexandria e Eusébio. Clemente compara o poder do novo canto do Cristo que amansa os mais ferozes animais – humanos – com o uso por Orfeu de música para encantar animais e mover carvalhos. “Escritores compararam as ações de Orfeu e do Cristo no submundo, mostrando que aquilo que Orfeu iniciara o Cristo terminara, cumprindo profecias inerentes ao mito pagão”. Esta interpretação persiste hoje em dia, como explica Umberto Utro, chefe do Departamento de Antiga Arte Cristã do Museu do Vaticano: “Muitos sarcófagos cristãos contem elementos pagãos e referências a deuses e deusas gregos e romanos... Na Bíblia, Jesus diz ‘Eu sou o Bom Pastor que vai sacrificar sua vida pelo rebanho’. Os primeiros cristãos reconheceram facilmente o Cristo em imagem (o rebanho pagão) e o investiram num novo significado. Artistas também viram o Cristo em Orfeu, o filho do deus da música, Apolo. Uma vez que Orfeu amansava animais ferozes com sua música, sua imagem se tornou a imagem do Cristo que, com suas palavras, transformava a vida de pecadores”.

Um fascinante exemplo da fusão de Orfeu e do Cristo e representado num amuleto que apresenta o Cristo crucificado embaixo de uma lua e sete estrelas, com o texto “Orfeu Baco” [Ed: Ver "Uma Era Órfica”,...]. Amuletos como esse foram produzidos em Alexandria, onde judeus, cristãos e religiosos gregos coexistiam e se misturavam, e podem ilustrar o apelo de um crente por proteção de múltiplas divindades. Todas as três figuras – Orfeu, Baco/ Dionísio e Cristo – guiavam a alma pelo submundo e podiam ser apeladas para proteção e orientação da alma em sua jornada após a morte física.

Orfeu foi também comparado a figuras das Escrituras Hebraicas, como Davi e Moises. Orfeu e Davi, ambos curavam mediante música e eram conhecidos como cantores de hinos sagrados e artistas de instrumentos de corda. Davi curou a loucura do Rei Saul mediante suas execuções de música e seus cantos. Antigos líderes gregos da Igreja, como Clemente de Alexandria, Eusébio e Proclo, referem-se a Orfeu para ilustrarem que a tradição religiosa grega foi emprestada de Moisés no Egito, mostrando que sua fonte de divina inspiração era a mesma da tradição judaico-cristã. Para esses escritores, os ensinamentos de Orfeu representam uma forma primitiva de monoteísmo emprestada de fontes judaicas. Após o século V, explicitas ligações de Cristo e Orfeu começaram a desaparecer. No começo da Idade Media, o mito de Orfeu era contado como uma alegoria e o próprio Orfeu era visto numa luz negativa em que seu paganismo, sua habilidade musical e seu empenho moral estavam ligados. Em obras como Ovídio Moralizado, mitos clássicos são reformados como alegorias morais para reconciliá-los com a doutrina cristã.

Mais para o fim da Idade Media, Orfeu foi transformado num bonito cavaleiro ou príncipe que cantava canções de amor romântico, que ressuscitou Eurídice e sempre conseguia um final feliz. No século XI, Orfeu foi apresentado como um amante romântico em três diferentes poemas. O século XIV produziu dois longos poemas em inglês com Orfeu como um herói principesco: Orfeu e Eurídice, de Henryson, e o anônimo Sir Orfeo. Orfeu e apresentado como o mais leal dos amantes, um menestrel, e como dotado dos poderes mágicos e astrológicos de um feiticeiro. Esses escritores românticos medievais falam de Orfeu trazendo Eurídice de volta a vida através de feitiços ou pelo poder do amor.
Por exemplo, o poema romântico, Sir Orfeo, inclui elementos de mitologia céltica sobrenatural, fadas e ricos castelos. Ele tem uma ligeira semelhança com o Orfeu de Ovídio e Virgílio e concorda bastante com o gênero romântico medieval da época. Contem uma mistura de mitologia e romance secular clássicos, moral cristã e lendas de fadas célticas. Uma tradução moderna de Sir Orfeo foi completada por J.R.R. Tolkien e publicada como obra póstuma no livro Sir Gawain and the Green Knight, Pearl, and Sir Orfeo.


Orfeu recuperado: a Renascença

Muitas das originais tradições espirituais gregas associadas a Orfeu foram perdidas durante a Idade Media, assim como tradições religiosas pagas foram suprimidas e eliminadas pela Igreja Cristã. A Renascença trouxe uma redescoberta dos mitos clássicos originais e de fontes anteriores, levando a uma profunda apreciação de Orfeu tal como ele aparecia antes de se fundir com a tradição cristã. A redescoberta de fontes clássicas foi liderada por Cosimo de Médici, um governante florentino do século quinze que patrocinou a tradução de um grande número de obras clássicas da antiguidade do grego para o latim, assim tornando muitas fontes originais disponíveis para o Ocidente pela primeira vez em mais de mil anos.

Através de Cosimo de Medici, a Academia Platônica foi novamente fundada em Florença. Ele apontou Marsilio Ficino como seu líder. Ficino traduziu todas as obras conhecidas de Platão, o Corpus Hermeticum, e as obras de filósofos neoplatônicos como Porfírio, Plotino e Jâmblico. A meta de Ficino era reconciliar o platonismo com o Cristianismo através de suas traduções, seus comentários e escritos como Platonica Theologia de immortalitate animorum (Teologia Platônica sobre a Imortalidade das Almas) e De vita libri tres (Três Livros da Vida). Através do seu revivescimento do pensamento platonico, Ficino se tornou um dos principais fundadores do renascimento espiritual e cultural da Renascença.

Sabemos que Ficino tinha uma profunda afinidade com Orfeu e compartilhava com ele muitos dos seus atributos: ele cantava os hinos órficos, tocava a lira órfica com uma imagem de Orfeu pintada nela, era do ponto de vista de eloquência comparado a Orfeu por aqueles que o conheciam e praticava o que agora chamaríamos de musicoterapia como um método de cura psicológica e de integração espiritual. O biógrafo de Ficino, Corsi, disse: “Ele publicou os hinos de Orfeu e os cantou à lira na maneira antiga com incrível beleza, corno diz o povo”. Johannes Pannonius disse: “Você trouxe novamente à luz o antigo som da lira, o estilo de cantar e as canções órficas que haviam sido antes entregues ao esquecimento”.


Marsilio Ficino: Orfeu de volta

Lorenzo de Medici, em seu poema Altercazione, disse de Ficino: “Eu pensei que Orfeu voltara ao mundo”. Um outro escritor disse dele: “Ele abranda os carvalhos improdutivos com sua lira e acalma ainda mais o coração de animais ferozes”. O estudioso florentino Angelo Poliziano compara as consecuções de Ficino com a recuperação de Eurídice do submundo por Orfeu: “Sua lira... muito mais bem sucedida do que a lira do Orfeu Trácio, trouxe de volta do submundo aquela que é, se não me engano, a verdadeira Eurídice, isto é, a sabedoria platônica com seu vasto discernimento”.

Fontes que inspiraram Ficino incluem Platão, Hermes Trismegisto e Neoplatônicos como Proclo e Plótino, bem corno o antigo sincretista Gemistus Pletho. Como Proclo, Ficino cantou e estudou entusiasticamente os hinos órficos. Também praticou o vegetarianismo, que era urna das práticas espirituais essenciais das escolas de mistério órficas e pitagóricas. Gemistus Pletho forneceu a inspiração que iria ajudar a fundar a Academia Platônica e pode também ter tido um papel significativo em inspirar Ficino no uso de hinos. Pletho e Proclo promoveram ambos a concepção de uma tradição filosófica perene anterior a Platão, que inclui Orfeu, Pitágoras e os oráculos caldeus. Filósofos da Renascença desenvolveram esta noção, inclusive teólogos divinamente inspirados como Abraão, Zoroastro, Hermes, Moisés, Orfeu, Pitágoras e Platão, como membros da prisci theologi, antigos sábios que precederam a chegada do Cristo Orfeu é tipicamente a mais antiga fonte grega nesta linhagem.

Sua visita ao Egito proporcionou uma fonte comum para Pitágoras, Platão e outros. O monoteísmo e a trindade eram duas verdades religiosas mencionadas como tendo sido fundadas na prisci theologi, e por Orfeu em particular. Proclo e Plotino forneceram a Ficino uma base para interpretação dos deuses da mitologia grega como princípios metafísicos que ajudariam Ficino a desenvolver suas ideias sobre magia natural e ligar as aparentemente inconciliáveis tradições pagã e cristã. Orfeu, com suas associações com as religiões grega, egípcia e possivelmente hebraica, oferece um símbolo singularmente poderoso da tradição sagrada universal que atrairia fortemente estudiosos da Renascença e filósofos empenhados em reconciliar as tradições paga e cristã.

A primeira obra que Ficino escolheu para traduzir foi os Hinos de Orfeu. Os Hinos Órficos são tidos como tendo sido compostos por autores neoplatônicos no segundo ou no terceiro século d.C., e podem estar baseados em fontes mais antigas. São hinos divinos para os deuses gregos como Apoio, Vênus, Hermes e também as Musas, as Parcas e as Fúrias. Eles contêm instruções para oferenda de incenso, juntamente com epítetos cantando louvor aos deuses ou às deusas invocados. Ficino via os deuses e as deusas dos hinos como metafísicos, naturais e princípios arquetípicos que continham a divindade do Deus único e advertia contra se considerar pensar neles de maneira idólatra.

Embora traduzidas em 1462, essas obras não foram disponibilizadas senão muito mais tarde, talvez devido à preocupação de que elas fossem interpretadas como muito abertamente pagãs. D.P. Walker levantou a hipótese de que o mais antigo manuscrito dos Hinos Órficos da era da Renascença tenha sido trazido de Constantinopla por Giovanni Aurispa em 1424.

Ficino dá muita importância a esses hinos, incluindo seu revivescimento nas grandes consecuções do século quinze, com Florence dizendo: “Esta era, como uma era áurea, trouxe de volta à luz as disciplinas liberais que haviam sido praticamente extintas: gramática, poesia, oratória, pintura, escultura, arquitetura, música e o antigo cantar de canções à lira órfica”.

Ficino recomendava cantar os hinos como um método de alinhamento da alma humana com a alma cósmica, assim trazendo boa saúde e alívio de melancolia e de outras aflições do espírito. “Nosso spiritus está em conformidade com os raios do spiritus celestial, que tudo penetra secreta ou obviamente. Ele mostra uma afinidade muito maior se fazemos uso de canção e luz e do perfume apropriado à divindade como os hinos que Orfeu dedicava às deidades cósmicas... A música nos foi dada por Deus para dominar o corpo e prestar louvor [a Deus].

“Eu sei que Davi e Pitágoras ensinavam isto acima de tudo o mais e acredito que eles o puseram em prática”. Numa outra carta ele explica: “faço isto também para banir as aflições da alma e do corpo e para elevar a mente às mais altas considerações e a Deus tanto quanto eu possa”. Embora não tenhamos nenhum registro da sua música, sabemos que suas apresentações eram impressionantes e profundamente inspiradoras.

No relato de um testemunho direto de urna apresentação de Ficino, disse um bispo: “... então seus olhos se iluminaram e ele se ergueu e descobriu urna música que nunca aprendera mecanicamente”.

Ficino via música, medicina e teologia como intimamente ligadas e dignas de estudo e prática. Numa de suas cartas ele disse: “Você pergunta, Canigiani, por que eu combino tão frequentemente o estudo de medicina com o de música... Orfeu, no seu livro de hinos, afirma que Apoio, por seus raios vitais, concede saúde e vida a todos e afasta a doença. Além disso, pelas cordas sonoras, isto é, por suas vibrações e seu poder, ele regula tudo: pela corda mais grave, o inverno; pela corda mais alta, o verão; e pela corda média ele traz a primavera e o outono. Assim, uma vez que o patrono da música e o descobridor da medicina são um e o mesmo deus, não é de surpreender que ambas as artes sejam com frequência praticadas pelo mesmo homem. Ademais, a alma e o corpo estão em harmonia um com o outro numa proporção natural, assim como as partes da alma e as partes do corpo”.

Ficino dá uma outra explicação do poder da música para criar harmonia no corpo, trabalhando com a imaginação e a emoção do artista e citando exemplos similares de Pitágoras, Empédocles, Platão, Aristóteles, Orfeu e Amphion: “Platão e Aristóteles ensinaram, como frequentemente verificamos por nossa própria experiência, que música séria mantém e restaura essa harmonia nas partes da alma, ao passo que a medicina restaura a harmonia das partes do corpo... E Pitágoras, Empédocles e o médico Asclepíades provaram isto na prática. Nem isto é de espantai; pois som e canção provêm de consideração na mente, do impulso de fantasia e do desejo do coração e, ao afetar o ar e lhe dar medida, eles fazem vibrar o espírito aéreo do ouvinte, que é o elo entre o corpo e a alma. Assim o som e a canção facilmente despertam fantasia, afetam o coração e atingem os mais internos recessos da mente... Isto foi de fato mostrado pelos milagres de Pitágoras e Empédocles, que podiam dominar luxúria, raiva ou loucura mediante música séria. E mais ainda, usando diferentes modos, eles costumavam estimular mentes preguiçosas. E existem as histórias de Orfeu, Arion e Amphion”.

Música e som estão relacionados com a alma pela natureza do ar e da vibração. Isto é remontado por Orfeu às fontes originais no Egito: “O corpo é de fato curado pelos remédios da medicina; mas o espírito, que é o etéreo vapor do nosso sangue e o elo entre corpo e alma, é temperado e nutrido por fragrâncias, por sons e pelo canto. Finalmente, corno a alma é divina, é purificada pelos divinos mistérios da teologia. Na natureza, ocorre a união de alma, corpo e espírito. Para os sacerdotes egípcios, medicina, música e os mistérios eram uma e a mesma coisa. Oxalá possamos dominar essa arte natural e egípcia tão tenaz e sinceramente quanto nos apliquemos a ela!”

Sabemos que Ficino se viu tornado de melancolia, que ele atribuía à influência de Saturno no seu horóscopo astrológico. Tocar a lira e os hinos órficos eram atos usados corno método de alinhar seu espírito com específicos princípios metafísicos celestiais e divinos, que podiam ser usados para restaurar o equilíbrio físico, psicológico e espiritual.

Numa de suas cartas ao seu amigo Sebastiano Foresi, disse Ficino: “Eu me ergui e me apressei em pegar a lira. Comecei a cantar prolongadamente os hinos de Orfeu”. E “nós tocamos a lira justamente para evitar nos tornarmos relaxados... que a lira bem tenalr rada seja sempre nossa salvação quando nos apliquemos a ela corretamente”. Esta magia natural é usada para curar o corpo. Como Angela Voss afirma no seu artigo: “Marsilio Ficino, o Segundo Orfeu”: “Se uma pessoa tem olhos internos para percebê-las, as coisas naturais do mundo mutável percebidas pelos sentidos são sinais ou ‘divinas iscas’ que proporcionam um lembrete interminável de duradoura realidade. Neste sentido o próprio ato de viver pode ser visto como um rito mágico...”.

Em “Ajustando a Vida Pessoal ao Céu”, Ficino nos dá regras para compormos e improvisarmos música celestial. A música é atraída para baixo através das esferas celestiais mediante sete passos correspondentes aos planetas e associados a pedras, metais e elementos. Cada qual deve escolher tons que correspondam às esferas celestes que deseje emular. Eles devem então ser harmonizados e arranjados de um modo que reflita a harmonia das esferas. O praticante deve prestar atenção às energias a que são primariamente suscetíveis e empregar tons de corpos celestes que aumentem ou diminuam essas energias, dependendo do equilíbrio desejado.

Ficino desenvolveu também o conceito dos quatro furores, ou frenesis: poético, religioso, profético e amoroso. A música foi associada ao primeiro furor poético e inspirou harmonização da discórdia da alma causada por sua dolorosa encarnação no mundo material. Orfeu foi interpretado como um “instrutor poético divinamente inspirado, possuído pelo furor platônico que reformou e civilizou seus bárbaros contemporâneos”. Orfeu cumpriu um papel especial na filosofia de Ficino, ao ser inspirado por todos os quatro divinos frenesis. “Nos quatro frenesis” é o “poder do amor que Orfeu traz ao mundo”.

Em Orfeu, Ficino encontrou a personificação da sua missão filosófica – ele redescobriu o fundador dos mistérios que usavam música e hinos para mediar entre o céu e a terra, trazendo civilização, as artes, cultura, saúde, amor e paz para a humanidade “... você mesmo será maior do que o céu, tão logo se decida à tarefa. Pois esses corpos celestes não devem ser procurados por nós em algum lugar fora; pois o céu, em sua inteireza, está dentro de nós, em quem habita a luz da vida e a origem do céu”. Para Ficino, Orfeu é mais do que um mito. Ele é uma presença viva a ser revivida através de prática espiritual e canto.

Orfeu continua cantando

Depois de Ficino, Giovanni Pico della Mirandola também redescobriu o mágico e teúrgico uso dos Hinos Órficos, dizendo: “Nada é mais eficaz na magia natural do que os hinos de Orfeu, se a música correta, o intento da alma e outras circunstâncias conhecidas do sábio são aplicadas”. A teoria música-espírito de Ficino seria expandida e continuada por estudiosos do século dezesseis, como Robert Fludd (Inglaterra), Guillaume du Bartas (França), Robert Burton (Inglaterra) e Heinrich Cornellius Agrippa (Alemanha).

O redespertar do mito clássico de Orfeu por Ficino e outros estudiosos da Renascença inspirou artistas que usaram Orfeu como um modelo para novas formas de expressão artística em música, escultura e pintura. Em particular, vemos Orfeu presente no nascimento da ópera, que começou com uma imitação consciente da tragédia grega. Orfeu foi o mais popular tema entre as primeiras óperas. Angelo Poliziano, um poeta florentino, humanista e colaborador de Ficino, criou um primeiro precursor da ópera baseado no mito órfico, intitulado La Favola di Orfeo, em 1474. A própria lira órfica de Ficino foi usada durante uma das apresentações em Mântua pelo cantor Baccio Ugolino. Embora a música dessa obra tenha sido perdida para nós, sabemos que ela era baseada na recontagem do mito e que enfatiza Orfeu como o pastor bucólico apaixonado por Eurídice. A obra foi feita durante as festividades do Carnaval em Mântua e destinava-se a homenagear o Cardeal Francesco Gonzaga. Sabe-se que Leonardo da Vinci projetou o palco para essa obra e que existem desenhos dela nos seus cadernos.

A mais antiga ópera registrada é Orpheus and Euridice, composta por Jacopo Peri em 1600. Euridice de Peri foi primeiro apresentada para o casamento de Maria de Medici e Henrique IV (tido como Hermes) e é considerada a primeira ópera. Na versão de Peri, Euridice e Orfeu são reunidos após a jornada ao submundo. L’Orfeo, de Monteverdi, composta em 1607, é considerada a primeira ópera popular. Embora suas primeiras apresentações fossem reservadas para público pequeno, de elite, L’Orfeo logo foi apresentada fora de Mântua, tornando-se a primeira ópera a ser apresentada com sucesso em várias cidades. Trata-se de uma obra popular executada até hoje. Como professor, Ralph Abraham salienta: “Existem pelo menos vinte e seis óperas nos anos 1600 relativas a Orfeu e vinte e nove nos anos 1700, inclusive clássicos por Telemann, Gluck, Hándel e Haydn”.


Conclusão

O mito de Orfeu ressoa ao longo do tempo como um poderoso arquétipo porque ele mostra como a arte, a poesia e a música podem ser usadas para ligar múltiplos campos de existência: mundano e celestial, vivo e morto, consciente e inconsciente, caótico e harmonioso, masculino e feminino, e pessoal e cósmico. A ponte é criada por ressonâncias compartilhadas entre estes campos através do ar, da emoção e da imaginação. Graças ao trabalho dos filósofos, artistas, poetas e músicos da Renascença, essa ponte foi recuperada e preservada para futuras gerações redescobrirem por si mesmas.


Bibliografia: Abraham, Ralph H. “Orpheus Today”. Universidade da Califórnia, Santa Cruz. Rosicrucan Digest, Vol 86:1 (2008), 42-47. Glatz, Carol. “Silencioso corno uma tumba, nada mais: o Vaticano espera que multidões visitem o museu de sarcófagos”. Catholic News Service, Out. 3, 2005. Gouk, Penélope. “Music, Melancholy, and Medical Spirits in Early Modern Thought” em Music as Medicine: the History of Music Therapy since Antiquity”. Peregrine Horden, ed. Vermont: Ashgate, 1988. Newby, Elizabeth. A Portrait of the Artist: The Legends of Orpheus and Their Use in Medieval and Renaissance Aesthetics. Nova York: Garland Publishing, Inc. 1987. Sternfield, F.W. The Birth of Opera. Oxford: Oxford University Press, 1995. Taylor, Thomas, trad., The Mystical Hymns of Orpheus. http://www.sacred-texts.com/cla/hoo/index.htm. Tolkien, J.R.R., trad., Sir Gawain and the Green Knight, Pearl, Sir Orfeo. Nova York: Del Rey, 1979. Voss, Angela Marsilio Ficino. Berkeley: North Atlantic Books, 2006. Voss Angela. “Marsilio Ficino, o Segundo Orfeu” em Music as Medicine: the History of Music Therapy since Antiquity. Peregrine Horden, ed. Vermont: Ashgate, 1988. Walker, D P “Orpheus the Theologian and Renaissance Platonists’ Journal of the Warburg and Courtauld Institutes, Vol. 16, N. 1/2. (1953)100-120. Warden, John. “Orpheus and Ficino” em Orpheus: The Metamorphoses of a Myth. John Warden, ed. University of Toronto Press: Toronto, 1982.


FONTE: BROQUET, Alexander J. A redescoberta de Orfeu durante a Renascença. O Rosacruz. n. 280. outono 2012. Curitiba: AMORC, 2012. p. 16-26.



Orfeu com a lira e rodeado de animais. Museu de Arte Bizantina Cristã, Atenas.

Vaso órfico de alabastro (séculos II e III d. C.), simbolizando a serpente/ovo órfica no centro de tudo, emanando o cosmo e o renascimento para o estado prístino que o iniciado órfico poderia obter.

Durante os anos de formação do Cristianismo, o simbolismo órfico e mitraico era às vezes combinado com o cristão, como neste baixo-relevo com todos os três elementos: a touca frigia de Mitras, a lira de Orfeu e o bom pastor cristão.

Os cristãos não tinham dificuldade para representar Orfeu nos baixos-relevos neste Pyx (vaso contendo o pão consagrado da celebração eucarística), que lendariamente fora um presente do Papa Gregório, o Grande, à Columba em Bobbio, no quinto século.


Orfeu-Cristo das Catacumbas, Cemitério dos Dois Lauréis. Ele representa Orfeu com sua lira na pose imperial de Cristo, com almas cristãs como pombas, ca. século IV.