sexta-feira, 30 de dezembro de 2022

EXCERTOS DE “A IMAGINAÇÃO ATIVA DE C. G. JUNG: PERSONALIDADES ALTERNADAS E ESTADOS ALTERADOS DE CONSCIÊNCIA”

 

 

Autora: Punita Miranda RMA

 

O cultivo de estados mentais anormais nos quais é possível acessar um conhecimento espiritual é uma prática antiga. ‘Explorações psíquicas’ como os estados xamânicos de transe, as práticas de feiticeiras e videntes que traziam visões do passado e insights sobre o futuro, as danças ritmadas e os rituais extáticos, as profecias e a mediunidade desempenharam papel importante tanto em sociedades ‘primitivas’ quanto nas ‘civilizadas’.

Todos esses praticantes afirmavam haver alcançado conhecimento superior e pessoal, ou ‘gnose’, em um estado que diziam ser ‘diferente’ da consciência desperta comum. Embora hoje se use a expressão ‘estados alterados de consciência’ (EAC) para designar um amplo campo de manifestações e experiências psíquicas profundas, a ausência de uma terminologia adequada ainda é um dos principais obstáculos encontrados por estudiosos no campo do esoterismo ocidental; o outro é a dificuldade de classificar a grande variedade de fenômenos que não podem ser diretamente observados. No entanto, uma vez superada esta barreira mental, um horizonte mais amplo aguarda o pesquisador, que disporá de recursos úteis para a compreensão das dimensões ‘alteradas’ ou, em muitos casos, ‘extáticas’ dos relatos clássicos e modernos.3

A ampla variedade de métodos utilizados na pesquisa sobre estados alterados de consciência abrange desde a meditação tradicional, estados espontâneos de transe e visões em sonhos até o uso de plantas psicoativas e substâncias químicas. Existe, em geral, um processo de indução a partir do qual a pessoa começa a transição, partindo do estado desperto cognitivo normal até chegar ao estado alterado. As mudanças resultantes podem ser imensas e variadas. Aquilo que se experiencia é basicamente subjetivo, e não existe nenhum estado de consciência universal ou uniforme que possa ser tomado como linha de base.4 À luz de tal complexidade, não é minha intenção discutir aqui as condições necessárias para a ocorrência dos estados alterados de consciência e as inúmeras variedades dos mesmos; em vez disso, irei me restringir à investigação das técnicas de imaginação ativa descobertas pelo psiquiatra suíço Carl Gustav Jung (1875-1961) e exploradas extensamente em seu O Livro Vermelho (2013). Dado que Jung estava interessado em tantas tradições esotéricas encontradas, em diferentes formas, em todas as épocas e culturas, é apenas natural tomá-lo como um influente representante da busca pela gnose no século XX.

  

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AS 4 ETAPAS DA IMAGINAÇÃO ATIVA

 

A técnica de Jung para induzir fantasias espontâneas pode ser desenvolvida com a prática; é um treino que consiste em exercícios sistemáticos destinados a produzir um vazio na consciência.70

Essa técnica pode ser dividida em quatro etapas simples:

 

1.       É preciso livrar-se do fluxo constante de pensamento do ego e tentar eliminar o julgamento crítico.71

 

2.       Deve-se permitir que a imagem mental aflore do inconsciente para o campo de percepção interior, e ela deve ser acolhida como se fosse objetivamente real. Não se deve acelerar o processo e nem se concentrar excessivamente nele. Esta fase é como sonhar de olhos abertos.

 

3.       Então, o praticante deve dar uma forma à imagem mental percebida internamente, registrando-a por escrito. Pessoas do tipo áudio-verbal ‘ouvem’ palavras internas, mas a imagem também pode ser expressa por meio de pintura, escultura, pode ser escrita como música ou dança, dependendo da propensão do indivíduo. Deve-se ter em mente que o excesso de forma mata o conteúdo. As imagens poderão se transformar, se desenvolver, mas não se deve deixar que se alterem como um caleidoscópio. Barbara Hannah detalha essa explicação: ‘Se a primeira imagem é um pássaro, por exemplo, e se for deixada por conta própria, num relâmpago ela se transformará em um leão, num navio no mar ou numa cena de batalha. A técnica consiste em manter a atenção sobre a primeira imagem e não deixar fugir o pássaro até que ele explique por que apareceu para nós, que mensagem traz do inconsciente ou o que quer saber de nós.’72 Marie-Louise Franz observa que o diálogo sempre contém um elemento de surpresa, e a pessoa pode sentir ‘o quão estranhamente vivo é o parceiro de conversa’.73

 

4.       Após a formulação criativa e a compreensão do significado e do valor vem a questão-chave de o que fazer com o material produzido. O próximo passo deve ser um confronto moral com o material que se produziu, e é importante estar ciente de que, com o uso de drogas, esta fase do processo estará ausente, uma vez que o ego não tem como assumir a responsabilidade requerida.

Jung explica que:

 

A mudança de atitude é provocada com a integração à consciência dos conteúdos anteriormente inconscientes. Essa integração traz, inevitavelmente, uma mudança muito perceptível. A mudança nunca é neutra. Trata-se, essencialmente, de um alargamento da consciência, de um desafio e um risco para a totalidade da personalidade - o risco inerente ao desenvolvimento da consciência humana.74

 

Assim, o ponto de partida depende do inconsciente: um estado de espírito, um pensamento obsessivo, uma imagem de um sonho ou uma imagem que ganha vida por si só. Não existem requisitos preliminares para a imaginação ativa, ela não requer controle da respiração, relaxamento, visualizações ou uma postura específica do corpo, e a experiência normalmente dura entre dez e quinze minutos.75 Por mais simples que pareça, no entanto, esse processo tem suas dificuldades iniciais: a crítica interna, dúvidas sobre se é meramente uma invenção, e a impaciência com a cooperação do inconsciente. Mas é o ego que assume a liderança, concentrando-se na imagem mental e dando-lhe forma. O simples fato de se permanecer na fronteira permite que as portas entre consciente e inconsciente se ampliem, e pode-se perceber a existência de uma gama de experiências abaixo do limiar da consciência. Nesta fase, há uma duplicação da consciência: o ego ainda está presente, desperto, mas também a imagem mental que surgiu do inconsciente. Normalmente, a imagem mudará, pois ‘o simples fato de contemplá-la a animará’.76 Então, tudo deve ser registrado por escrito para refletir o que está acontecendo no segundo plano. É fundamental que se trate o imaginário como sendo tão real quanto a realidade externa, ‘exatamente como se um diálogo estivesse ocorrendo entre dois seres humanos com direitos iguais’.77

O vai e vem desse diálogo permite que a imagem mental ou o personagem torne-se um mediador entre aquilo que é desconhecido e o que é manifesto. Se esse processo é levado a sério – não literalmente –, o resultado final é a colaboração entre o mundo interior de imagens e o mundo externo.78 Os benefícios imediatos são uma aceleração no processo de amadurecimento, o desenvolvimento da personalidade e um alargamento da consciência, dado que os conteúdos inconscientes tendem a complementar ou corrigir atitudes unilaterais.

No entanto, como Jung deixou claro, esse método não é totalmente isento de perigos, e nem todos os indivíduos são adequados para isso. Deve-se ter cuidado no caso de indivíduos fragmentados, pois conteúdos subliminares ativados podem dominar a mente consciente, levando a um intervalo psicótico.79 Tampouco deve a imaginação ativa ser praticada como um meio de influenciar outras pessoas, mas apenas para se chegar à verdade sobre si mesmo.80 Finalmente, é sempre um desafio assimilar um conteúdo inconsciente, considerando-se que uma expansão da consciência torna o ego responsável pelo que era anteriormente inconsciente, e o indivíduo se depara com a tarefa de fazer um esforço consciente para viver de acordo com o que foi descoberto.

 

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No contexto dos estados alterados de consciência, isso é uma inovação: como tem sido demonstrado, há uma diferença significativa entre a imaginação ativa e as imagens no sonho, onde a consciência é reduzida pelo sono profundo, e também entre ela e os estados alterados de consciência psicodelicamente induzidos, nos quais a faculdade analítica é prejudicada ou comprometida. O tipo de integração facilitada pela imaginação ativa só é possível em um estado de vigília, ou seja, em um estado consciente da mente; talvez a noção de ‘estado alterado de percepção consciente’ (awareness) proposta por Erika Fromm fosse uma melhor designação para a imaginação ativa.82

 

NOTAS

3 Para exemplos de relatos clássicos e modernos, ver: ‘The Blessings of Madness’, em: Dodds, The Greeks and the Irrational, pp. 64-101. ‘Religio Mentis’, em: Fowden, The Egyptian Hermes, pp. 95-115. Benz, ‘Swedenborg’s Visions’, em: Idem, Emanuel Swedenborg, pp. 275-326; Harner, ‘The Role of Hallucinogenic Plants in European Witchcraft’.

4 Para informação adicional sobre a noção de linha de base, ver I. Barušs, Alterations of Consciousness, p.9.

70 Ibid, p. 78, § 155; Shamdasani, ‘Introdução’, em: Jung, O Livro Vermelho, p. 48.

71 Para mais detalhes, ver Hannah, Encounters with the Soul, pp. 16-21; Shamdasani, ‘Introdução’, em: Jung, O Livro Vermelho, pp. 48-9; Jung, Mysterium Coniunctionis, p. 495-6, § 706; Idem, The Structure and Dynamics of the Psyche, pp. 67-91, §131-140; Von Franz, Psychotherapy, pp. 163-168; Hull, ‘Bibliographical Notes on Active Imagination’, pp. 115-120.

72 Hannah, Encounters with the Soul, p. 21.

73 Von Franz, Psychotherapy, p.149.

74 Jung, The Symbolic Life, p. 613, § 1402.

75 Humbert, ‘Active Imagination’, pp. 103, 109-111.

76 Jung, Mysterium Coniunctionis, p. 495, § 706.

77 Idem, The Structure and Dynamics of the Psyche, p. 89, § 186. Ver também Vannoy Adams, ‘The Archetypal School’, p. 111.

78 Jung, MDR, p. 220. Shamdasani, ‘Introdução’, em: Jung, O Livro Vermelho, p. 218.

79 Idem, ‘Prefatory Note’, ‘The Transcendent Function’, em: The Structure and Dynamics of the Psyche, p. 68.

80 Von Franz, Psychotherapy, p. 175.

82 Fromm, ‘Altered States of Consciousness and Ego Psychology’, p. 563.

 

REFERÊNCIA:
MIRANDA, Punita. A Imaginação Ativa de C. G. Jung: Personalidades Alternadas e Estados Alterados de Consciência. Actas/Anais I Congresso Lusófono sobre Esoterismo Ocidental. v. II. Estudos Junguianos: O Homem Moderno em Busca da Alma. Lisboa, 2016. ISBN: 978-989-757-048-3.

 

quarta-feira, 28 de dezembro de 2022

QUIETUDE E CONTEMPLAÇÃO

 


Por Henry David Thoreau

  

Não li livros no primeiro verão; carpi feijão. Não, muitas vezes fiz coisa melhor do que isso. Havia momentos em que eu não podia sacrificar o florescer daquele presente a qualquer trabalho, fosse da cabeça ou das mãos. Gosto de uma ampla margem para minha vida. Às vezes, numa manhã de verão, depois de tomar meu banho costumeiro, eu ficava sentado à minha porta ensolarada desde o nascer do sol até o meio-dia, enlevado num devaneio, entre os pinheiros, as nogueiras e os sumagres, em serena solidão e quietude, enquanto as aves cantavam ao redor ou cruzavam a casa num voo silencioso, até que, com o sol batendo em minha janela ocidental ou o ruído da carroça de algum viajante na estrada à distância, eu era lembrado do passar do tempo. Eu crescia naquelas sazões como o milho à noite, e eram muito melhores do que teria sido qualquer trabalho com as mãos. Não era um tempo subtraído à minha vida, e sim um tempo muito acima e além de meu quinhão normal. Entendi o que os orientais querem dizem com contemplação e renúncia à atividade. De modo geral, eu não me importava como transcorriam as horas. O dia avançava como que para iluminar algum trabalho meu; era de manhã, e eis que de repente era o entardecer, e eu não tinha feito nada de memorável. Em vez de cantar como os pássaros, eu sorria silenciosamente à minha sorte incessante. Como o pardal que gorjeava pousado na nogueira diante de minha porta, eu também tinha meu chilreio ou abafado cacarejo, que ele podia ouvir vindo de meu ninho. Meus dias não eram dias da semana, trazendo o sinete de alguma divindade pagã, e tampouco eram picotados em horas e esfolados pelo tiquetaque de um relógio; pois eu vivia como os índios puris, que, segundo dizem, “têm uma palavra só para ontem, hoje e amanhã, e expressam a variação de sentido apontando atrás para ontem, apontando em frente para amanhã e ao alto para o dia em curso”. Sem dúvida, para meus concidadãos isso era pura ociosidade; mas, se as aves e as flores tivessem me testado pelo critério delas, eu nada ficaria a dever. Um homem deve encontrar as ocasiões próprias em si mesmo, certamente. O dia natural é muito calmo, e dificilmente lhe reprovará a indolência. 

  
REFERÊNCIA:
THOREAU, Henry David. Walden. Tradução de Denise Bottmann. Porto Alegre: L&PM Pocket, 2010. E-book.

“GÊNERO É PEDOFILIA, ZOOFILIA E NECROFILIA”

 

 

“Gênero é pedofilia, zoofilia e necrofilia”: A destruição da família e as ideologias de gênero e gênesis nos discursos de Magno Malta

 

Por Eduardo Meinberg de Albuquerque Maranhão Filho

 

Resumo

 

A partir de discursos do político evangélico Magno Malta e de notícias veiculadas na mídia sobre o mesmo, apresento neste texto alguns dos modos como uma certa “ideologia de gênesis” tem se consolidado na contemporaneidade recente como perpetradora de um dispositivo da cis-heteronorma, da sofismática “ideologia de gênero”, da bélica resistência aos estudos que objetivam a justiça e igualdade de gênero e da sinalização de possível rompimento da laicidade do Estado.

  

Palavras-chave

Ideologia de gênero; gênero e religião; dispositivo da sexualidade.

 

Link para o texto completo:
https://www.metodista.br/revistas/revistas-ims/index.php/ER/article/view/9540

terça-feira, 20 de dezembro de 2022

ENLEVO NO RECESSO

 



Por Emil Cioran

7 de abril de 1963

 

Pela primeira vez depois de seis meses, deixei Paris para ir ao campo. Sensação de sair da prisão. Deslumbramento. Fiz vinte quilômetros a pé ao longo do Ourcq, ao lado de La Ferté-Milon. Que eu seja um citadino é a maior ironia do meu destino.

No meio de um bosque, fechar os olhos e escutar os pássaros: impossível pensar que seu canto seja tagarelice, e que eles não sejam conscientes de sua felicidade.

  

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7 avril 1963

 

Pour la première fois depuis six mois j'ai quitté Paris pour aller à la campagne. Sensation de sortir de prison. Émerveillement. J'ai fait vingt kilomètres à pied le long de l’Ourcq, du côté de La Ferté-Milon. Que je sois un citadin, c’est là l’ironie majeure de mon sort.

Au milieu d’un bois, fermer les yeux, et entendre les oiseaux: impossible de penser que leur chant soit du bavardage, et qu’ils ne soient pas conscients de leur bonheur.

  

REFERÊNCIA:
CIORAN, Emil. Cahiers, 1957-1972. Paris: Gallimard, 1987. Fragmento 1261, p. 156.

segunda-feira, 12 de dezembro de 2022

GENEROSIDADE

 

Por Ramon Bolivar Cavalcanti Germano

 

Sabemos que uma árvore frutífera como a figueira dá muitos frutos. Mas o que é um fruto? Não basta definir "fruto" como faz o botânico, pois nem todo fruto é a maturação dos ovários das flores. Dizemos que o nosso trabalho rendeu frutos, falamos em frutos do espírito e do fruto do ventre materno. Então, o que é um fruto? É algo que se recebe e se dá de graça! Se contemplarmos os frutos da figueira, veremos como eles crescem graciosamente e como são oferecidos gratuitamente a todos os seres vivos. Ora, assim como nenhuma árvore exerce o poder sobre os seus próprios frutos; assim como nenhuma figueira tem os seus frutos como propriedade sua, igualmente todo e qualquer fruto é a expressão exuberante da gratuidade e da generosidade da vida. Aquilo que não se recebe nem se doa de graça, não é fruto, é posse. Porque ao exercer posse sobre algo, pressupomos que não o recebemos de graça e, por isso mesmo, não o doamos de graça.

Não é assim com o fruto! Para que algo seja um fruto, precisamos ofertá-lo de graça, de modo que a nossa atitude desprendida demonstre vivamente que o temos recebido também de graça! Se retivermos aquilo que nos foi dado e nos apegarmos à coisa de tal maneira que nos tornemos incapazes de abrir a mão e ofertá-la – então não se trata mais de um fruto, mas de uma mera posse ou em muitos casos, de um roubo!

De modo que não produzir frutos equivale a não doar de graça aquilo que de graça recebemos.

 

REFERÊNCIA:

GERMANO, Ramon Bolivar Cavalcanti. O Riacho e outras meditações filosóficas. São Paulo: Editora Liber Ars, 2020. p. 22-23.

quinta-feira, 8 de dezembro de 2022

CONTEMPLAÇÃO VERSUS HIPERATIVIDADE

 

Por Byung-Chul Han
 

O excesso de positividade se manifesta também como excesso de estímulos, informações e impulsos. Modifica radicalmente a estrutura e economia da atenção. Com isso se fragmenta e destrói a atenção. Também a crescente sobrecarga de trabalho torna necessária uma técnica específica relacionada ao tempo e à atenção, que tem efeitos novamente na estrutura da atenção. A técnica temporal e de atenção multitasking (multitarefa) não representa nenhum progresso civilizatório. A multitarefa não é uma capacidade para a qual só seria capaz o homem na sociedade trabalhista e de informação pós-moderna. Trata-se antes de um retrocesso. A multitarefa está amplamente disseminada entre os animais em estado selvagem. Trata-se de uma técnica de atenção, indispensável para sobreviver na vida selvagem.

[...] Na vida selvagem, o animal está obrigado a dividir sua atenção em diversas atividades. Por isso, não é capaz de aprofundamento contemplativo – nem no comer nem no copular. [...] As mais recentes evoluções sociais e a mudança de estrutura da atenção aproximam cada vez mais a sociedade humana da vida selvagem. Entrementes, o assédio moral, por exemplo, alcança uma desproporção pandêmica. A preocupação pelo bem viver, à qual faz parte também uma convivência bem-sucedida, cede lugar cada vez mais à preocupação por sobreviver.

Os desempenhos culturais da humanidade, dos quais faz parte também a filosofia, devem-se a uma atenção profunda, contemplativa. A cultura pressupõe um ambiente onde seja possível uma atenção profunda. Essa atenção profunda é cada vez mais deslocada por uma forma de atenção bem distinta, a hiperatenção (hyperattention). Essa atenção dispersa se caracteriza por uma rápida mudança de foco entre diversas atividades, fontes informativas e processos. E visto que ele tem uma tolerância bem pequena para o tédio, também não admite aquele tédio profundo que não deixa de ser importante para um processo criativo. Walter Benjamin chama a esse tédio profundo de um “pássaro onírico, que choca o ovo da experiência” [14]. Se o sono perfaz o ponto alto do descanso físico, o tédio profundo constitui o ponto alto do descanso espiritual. Pura inquietação não gera nada de novo. Reproduz e acelera o já existente. Benjamin lamenta que esse ninho de descanso e de repouso do pássaro onírico está desaparecendo cada vez mais na modernidade. Não se “tece mais e não se fia”. [...] Com o desaparecimento do descanso, teriam se perdido os “dons do escutar espreitando” e desapareceria a “comunidade dos espreitadores”. Nossa comunidade ativa é diametralmente oposta àquela. O “dom de escutar espreitando” radica-se precisamente na capacidade para a atenção profunda, contemplativa, à qual o ego hiperativo não tem acesso.

[...]

A capacidade contemplativa não está necessariamente ligada ao ser imperecível. Justamente o oscilante, o inaparente ou o fugidio só se abrem a uma atenção profunda, contemplativa [16]. Só o demorar-se contemplativo tem acesso também ao longo fôlego, ao lento. Formas ou estados de duração escapam à hiperatividade. Paul Cézanne, esse mestre da atenção profunda, contemplativa, observou certa vez que podia ver inclusive o perfume das coisas. Essa visualização do perfume exige uma atenção profunda. No estado contemplativo, de certo modo, saímos de nós mesmos, mergulhando nas coisas. Merleau-Ponty descreve a consideração contemplativa da paisagem como uma alienação ou desinteriorização: “De princípio ele tentou ganhar claridade sobre as camadas geológicas. Depois não se moveu mais do lugar e apenas olhava, até que, como dizia Madame Cézanne, os olhos lhe saltassem da cabeça. [...] A paisagem, dizia ele, pensa-se em mim, eu sou sua consciência” [17]. É só a atenção profunda que interliga a “instabilidade dos olhos” gerando o recolhimento, que está em condições de “delimitar as mãos errantes da natureza”. Sem esse recolhimento contemplativo, o olhar perambula inquieto de cá para lá e não traz nada a se manifestar. Mas a arte é uma “ação expressiva”. O próprio Nietzsche, que substituiu o ser pela vontade, sabe que a vida humana finda numa hiperatividade mortal se dela for expulso todo elemento contemplativo: “Por falta de repouso, nossa civilização caminha para uma nova barbárie. Em nenhuma outra época os ativos, isto é, os inquietos, valeram tanto. Assim, pertence às correções necessárias a serem tomadas quanto ao caráter da humanidade fortalecer em grande medida o elemento contemplativo” [18].

 

NOTAS DO AUTOR:

[14]. BENJAMIN, W. Gesammelte Schriften. Vol. II /2. Frankfurt a.M., 1977, p. 446.

[16]. Assim escreve Merleau-Ponty: “Nós esquecemos constantemente os fenômenos fluentes e multissignificativos e por entremeio destes nos entregamos imediatamente às coisas que são por estes apresentadas” (MERLEAU-PONTY, M. Das Auge und der Geist – Philosophische Essays.
Hamburgo, 1984, p. 16).

[17]. Ibid., p. 15.

[18]. NIETZSCHE, F. Menschliches, Allzumenschliches I – Kritische Gesamtausgabe, 4ª seção, vol. 2. Berlim, 1967, p. 236.

 

REFERÊNCIA:

HAN, Byung-Chul. Sociedade do cansaço. Tradução: Enio Paulo Giachini. 2. ed. ampliada. Petrópolis: Vozes, 2017. p. 31-37.

SÃO FRANCISCO

 

 

Por Hermann Hesse

  

Intimamente feliz com a liberdade conquistada, Francisco percorria os vales e as verdes colinas de sua terra, abençoado e bem- aventurado. A beleza desta Terra revelou-se ao seu amor pueril e afetuoso como um mundo renascido e transfigurado: as árvores em flor, a relva macia, as águas correntes e cintilantes, as nuvens que passavam pelo azul-celeste e o canto de alegria dos pássaros tornaram-se seus amigos fraternos. Pois de seus olhos e de seus ouvidos caíra um véu, e ele enxergava o mundo purificado e sagrado, transfigurado como nos primeiros dias do esplendor do Paraíso.

E não foi alucinação, embriaguez nem ilusão fugaz, pois, a partir daquele dia, mesmo em tempos amargos, difíceis e muito dolorosos, Francisco continuou sendo até o fim um bem-aventurado e eleito, que ouvia a voz de Deus em cada caule, em cada riacho, e sobre ele a dor e o pecado não tinham poder nenhum. Foi por isso que, ao longo dos séculos, incontáveis pessoas o amaram e o veneraram, sua imagem e a história de sua vida foram mil vezes representadas, contadas, cantadas e esculpidas por artistas, poetas e estudiosos, como nenhuma imagem ou nenhum feito de príncipes e poderosos, e seu nome e sua reputação chegaram aos nossos tempos como um cântico da vida e consolo divino, e o que ele disse e fez ressoa hoje com tanto vigor como em sua época, há setecentos anos. Houve outros santos, cuja alma não era menos pura e nobre, todavia nos lembramos menos deles; ele, porém, era uma criança e um poeta, mestre e professor do amor, amigo humilde e fraterno de todas as criaturas. E, se os homens se esquecessem dele, as pedras e as fontes, as flores e os pássaros dele falariam. Porque, como verdadeiro poeta, ele conseguia livrar todas essas coisas do encanto que o pecado e a insensatez sobre elas pousara, revelando-as em sua beleza pura e original diante de nossos olhos.

 

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Quando chegaram perto de Assis, escolheram uma cabana vaga chamada Rivo Torto para ser sua morada. Ali, na encosta da montanha, havia uma região solitária e selvagem onde Francisco muitas vezes costumava passar vários dias seguidos a rezar e meditar, pois, mesmo detestando profundamente o ócio e dedicando todas as suas forças a servir o próximo, seu ânimo sensível e delicado sofria muito todos os dias ao ver a miséria humana. Desse modo, costumava retirar-se na solidão para permitir que seu coração cansado descansasse e rejuvenescesse nas fontes da vida.

Rejuvenescer diariamente na vida da natureza e haurir energias da terra é uma arte magnífica e maravilhosa que se encontra apenas em poetas e verdadeiros santos, e ele sempre a praticou com incomparável maestria. Como uma criança e como um sábio, ele falava com as flores, a relva, as águas e inúmeros animais, entoava cânticos em louvor a eles, amava-os e consolava-os, alegrava-se com eles e participava de sua vida inocente. Apenas aos diletos de Deus é concedido que a mente e o coração não envelheçam e se mantenham a vida inteira com o frescor e a gratidão de crianças. A bondade verdadeira e pura do coração é como um segredo mágico de Salomão, que revela aos homens a linguagem dos animais e a essência íntima de plantas, árvores, pedras e montanhas, de tal forma que a múltipla criação se abre diante de seus olhos como uma unidade completa, sem abismos e reinos de sombra ocultos e hostis. Sendo um eleito de Deus, Francisco compreendia a beleza da Terra como raras vezes outro poeta a compreendera, amava cada criatura, pequena ou grande, e elas o amavam e lhe davam respostas. Quando se cansava de falar com pessoas, ia aos campos, às matas e aos vales e ouvia nas fontes, nos ventos e no canto dos pássaros a poderosa e doce linguagem do Paraíso. Sabia muito bem que não havia nada sobre a Terra que não tivesse alma, e ia ao encontro de cada alma, mesmo a da relva e das pedras, com fraternal respeito e amor.

 

REFERÊNCIA:

 

HESSE, Hermann. Francisco de Assis. Tradução: Kristina Michaelles. 4. ed. Rio de Janeiro: Record, 2022. p. 28-29, 37-38.

sábado, 3 de dezembro de 2022

A COPA E A RELIGIÃO

 

 

Por Carlos André Cavalcanti

 

Abro espaço nesta coluna para debater a presença da religião aliás, da intolerância religiosa na Copa do Mundo de Futebol no Qatar. Tricolor coral, gosto muito de futebol, mas é preciso perceber fatores negativos que podem estar no entorno do mais belo esporte do mundo. O texto é de Edebrande Cavalieri, da Arquidiocese (católica romana) de Vitória, Espírito Santo.

 

BOLA FORA

 

“As imagens do Catar que estão chegando em nossas casas nos mostram um país com prédios fantásticos e supermodernos, estádios de futebol com arquitetura sofisticada e até com ar refrigerado; de fato, essas imagens não mentem. Estamos diante de um país que é uma potência financeira, capaz de comprar cotas de ações dos maiores clubes europeus”. “(...) “Em termos religiosos, estamos diante de um país com quase 70% de sua população pertencente ao Islamismo, a maioria sunitas. Os cristãos chegam a 13,8% e os budistas com a mesma percentagem.”

 

IMPEDIMENTO

 

O regime catari é uma monarquia semi-absolutista com ares de liberdade que o regime procura apresentar. “Há um rigor no controle do modo de vestir tanto dos homens como das mulheres. Estas devem cobrir a cabeça e o corpo com roupas. Dizem que há liberdade religiosa, contudo sob o controle do Estado que define até onde é permitida a construção de templos religiosos. Qualquer grupo religioso deve fazer um registro nos órgãos do governo.”

 

GOL CONTRA

 

“Há um aumento da violência religiosa contra cristãos, caracterizando um clima hostil e de intolerância. É proibido fazer proselitismo; portanto, o trabalho missionário de convencimento a mudar de religião é considerado motivo suficiente para perseguição. As pessoas muçulmanas que se convertem para o cristianismo ou budismo passam a ser discriminadas e mal vistas em todos os espaços. Estamos diante de um país onde a intolerância religiosa é grande, especialmente contra os não muçulmanos.”

 

FIFA S/A

 

Com todas estas informações e muito mais que não cabe neste pequeno texto, fica muito contraditória a posição da FIFA neste evento. Os episódios de intolerância que estão ocorrendo durante o evento, contra os quais se expressou bem a seleção alemã, por exemplo, são motivo mais que suficiente para questionar a propalada neutralidade do futebol internacional.  O comando do futebol parece ter lado e este lado parece ser o dinheiro. Até quando o futebol, em sua principal instituição internacional, vai usar dois pesos e duas medidas quando o assunto é Direitos Humanos e Diversidade Religiosa?

 

Publicado originalmente em www.jornalopoder.com.br


segunda-feira, 28 de novembro de 2022

HERMANN HESSE, SOBRE A FLORESTA TROPICAL

 

 

Por Hermann Hesse
 
[das recordações de sua viagem ao Sudeste Asiático, em 1911]

 

Não conheço as modernas teorias acerca do mais remoto habitat dos seres humanos; para mim, a floresta tropical continua sendo, pelo menos do ponto de vista simbólico, a origem da vida, o elementar e primitivo cadinho onde são fabricadas, com sol e terra úmida, todas as formas vivas. No meio da floresta, nós, que vivemos em países cujos recursos naturais já foram totalmente explorados ou pelo menos descobertos e mensurados, com nosso raciocínio condicionado a cifras e medidas, nos sentimos no berço da vida; lá, percebemos que a Terra não é uma estrela resfriada, em seus últimos estertores, mas uma antiga massa que ainda procria. Para pessoas habituadas a campos rigorosamente delimitados, bosques cuidadosamente plantados e reservas de caça regulamentadas, um passeio fluvial no meio de crocodilos, garças, águias e grandes felinos e um amanhecer na selva, quando nos galhos ensolarados da pujante vegetação grandes bandos de macacos saúdam aos gritos o raiar de um novo dia, são experiências fantásticas e impressionantes. Além disso, quem penetra na mata úmida e abafada em busca de pássaros ou borboletas percebe, também, o cheiro do perigo, a sensação da inutilidade do indivíduo, os segredos, as possíveis ameaças e, a cada metro quadrado, a exuberância da vegetação e a opulência da vida animal. Tudo isso, é claro, sob o antigo e na Europa mil vezes esquecido domínio do sol! O simples anoitecer, que tudo transforma, o calor do súbito amanhecer, que traz a vida de volta, as violentas chuvas e as trovoadas que vêm e vão com incrível rapidez e o odor da terra fértil molhada, cálido e levemente animalesco, são para nós um misterioso e instrutivo retorno às origens da vida.
 
REFERÊNCIA:
 
HESSE, Hermann. A unidade por trás das contradições: religiões e mitos. Tradução: Roberto Rodrigues. 1. ed. Rio de Janeiro: Record, 2022. E-book.

segunda-feira, 31 de outubro de 2022

A METAFÍSICA DA MORTE NA FILOSOFIA DE ARTHUR SCHOPENHAUER

 

 

Por Luédlley Raynner, Jheovanne Gamaliel e João Segundo
  

RESUMO
 
A filosofia de Arthur Schopenhauer (1788-1860) ficou bastante marcada pelo seu pessimismo metafísico, em que o mundo fenomênico não é autônomo em relação à Vontade, gerando um crivo das representações com o sofrimento. O objetivo deste trabalho é o de compreender a morte no pensamento de Schopenhauer e desenvolver sua evidente relação com a metafísica da Vontade. Para tal a metodologia é a de revisão bibliográfica utilizando-se de sua obra magna, O mundo como Vontade e como representação. Para Schopenhauer, o enigma que permeia o antes do nascimento é o mesmo que será depois da morte, isto é, o nada. Desta feita, a morte destrói o indivíduo, mas não a espécie que contínua viva, seguindo a continuidade irracional da Vontade no mundo das representações.

  

LIRA, Luédlley Raynner de Souza; ABREU, Jheovanne Gamaliel Silva de; SEGUNDO, João Florindo Batista. AMETAFÍSICA DA MORTE NA FILOSOFIA DE ARTHUR SCHOPENHAUER. In: III Colóquio Internacional Estética e Existência,2018, João Pessoa. III Colóquio Internacional Estética e Existência. João Pessoa, 2018. v. 1. p. 1-1. Disponível em: https://doity.com.br/anais/esteticaeexistencia/trabalho/75882.

 

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quinta-feira, 27 de outubro de 2022

UMA ANÁLISE DA LINGUAGEM ALEGÓRICA DAS EMOÇÕES

 



UMA ANÁLISE DA LINGUAGEM ALEGÓRICA DAS EMOÇÕES NA OBRA UM COPO DE CÓLERA ATRAVÉS DA FILOSOFIA DA LINGUAGEM DO SEGUNDO WITTGENSTEIN

 
 

Por Eugênia Ribeiro Teles

 

 

Na sua obra Um copo de cólera, Raduan Nassar narra uma história repleta de fortes emoções expressas pelos personagens. Ao longo da narrativa, verifica-se o papel fundamental que tais emoções desempenham na forma que os personagens percebem e interagem com a realidade. Mas, ao mesmo tempo, o ofício de descrevê-los requer uma linguagem que extrapola o sentido usual dos termos, fazendo-se uso de metáforas e analogias. Essa peculiaridade, a presença desses episódios emocionais no texto, requer um aparato interpretativo capaz de adentrar na linguagem própria das emoções. A partir disso, pretende-se fazer uma análise da linguagem utilizada para descrever as emoções, utilizando a filosofia da linguagem do segundo Wittgenstein como ferramenta interpretativa, a qual é baseada na noção de “significado enquanto uso” e da “teoria dos jogos de linguagem”. Com essa análise, objetiva-se investigar a possibilidade de que as emoções possuem uma linguagem própria e que para compreender seus significados é preciso que o(a) escritor(a), o texto e o(a) leitor(a) façam parte do mesmo jogo linguístico.

 

Palavras-chave
Linguagem das emoções, Jogos de linguagem, Raduan Nassar.
 

Texto completo no link abaixo:

https://www.editoracientifica.com.br/articles/code/220709521


segunda-feira, 17 de outubro de 2022

EDUCAR – PELO DIA DO PROFESSOR 2022

 



“[...] aprendei de mim, que sou manso e de coração; e encontrareis descanso para as vossas almas.”

 

Jesus Cristo

 
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“Desejamos que todos os seres humanos, juntos ou individualmente, velhos ou jovens, ricos ou pobres, nobres ou plebeus, homens ou mulheres, tenham uma educação completa e se tornem seres realizados. Desejamos que sejam plenamente educados e instruídos, não somente neste ou naquele ponto, mas em tudo que possa permitir que realizem integralmente sua essência, que aprendam a conhecer a verdade e não serem iludidos pela aparência, a amar o bem e não serem seduzidos pelo mal, a fazer o que deve ser feito e se afastar do que deve ser evitado, a falar sabiamente de tudo e com todos: enfim, a sempre tratar as coisas, os homens e Deus com ponderação e não levianamente e a nunca se desviar de sua meta: a felicidade”

 

João Amós Comenius

 
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“Ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para a sua própria produção ou a sua construção.”

 

Paulo Freire


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“Na verdade, não existe educação se não há conhecimento espiritual. Podemos aprender a como ganhar o pão, como comer, dormir, fazer sexo, sem necessidade de uma educação formal. Os animais não estudam, não são técnicos e não têm grau universitário, mas também estão comendo, dormindo, satisfazendo-se e relacionando-se sexualmente. Se o sistema educacional só ensina como melhorar esses processos, não merece ser chamado de sistema educacional. A verdadeira educação nos capacita a entender o que somos.”

 

Swami Prabhupāda

 
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“Ir à escola significa abrir a mente e o coração à realidade, na riqueza dos seus aspectos, das suas dimensões. E nós não temos direito a recear da realidade! [...] Desejo a todos um lindo caminho escolar, que faça crescer as três línguas que uma pessoa madura deve saber falar: a língua da mente, a língua do coração, a língua das mãos.”

 

Papa Francisco

 
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“Quando educamos nossas crianças para adquirirem conhecimentos sem compaixão, é muito provável que sua atitude para com os outros venha a ser uma combinação de inveja daqueles que ocupam posições superiores às suas, competitividade agressiva para com seus pares e desdém pelos menos afortunados, o que leva a uma propensão para a ganância, para a presunção, para os excessos e, muito rapidamente, para a perda da felicidade. Conhecimento é importante. Muito mais, porém, é o uso que lhe damos. Isso depende da mente e do coração de quem usa.”

 

14º Dalai Lama


quinta-feira, 6 de outubro de 2022

TOLKIEN, SOBRE ÁRVORES


 

 

Por J. R. R. Tolkien
  

Há certas coisas e temas, é claro, que me comovem especialmente. As inter-relações entre o “nobre” e o “simples” (ou comum, vulgar), por exemplo. O enobrecimento do ignóbil considero especialmente comovente. Sou (obviamente) muito apaixonado pelas plantas e, acima de tudo, pelas árvores, e sempre fui; e considero os maus-tratos humanos para com elas tão difíceis de se tolerar quanto alguns consideram o maltrato de animais.

                                                                                                           Carta 165.

 

Em todas as minhas obras, tomo o lado das árvores contra todos seus inimigos. Lothlórien é bela porque lá as árvores eram amadas; nos outros lugares as florestas são representadas como que despertando para a consciência delas mesmas. A Floresta Velha era hostil a criaturas de duas pernas por causa de sua lembrança de muitos ferimentos. A Floresta de Fangorn era antiga e bela mas, na época da história, tensa de hostilidade porque estava ameaçada por um inimigo amante das máquinas. A Floresta das Trevas tinha caído no domínio de um Poder que odiava todos os seres vivos, mas foi restaurada à beleza e tornou-se a Grande Floresta Verde antes do final da história.

                                                                                                           Carta 339.

 

Sou de fato um Hobbit (em tudo, exceto no tamanho). Gosto de jardins, de árvores e de terras aráveis não-mecanizadas; fumo um cachimbo e gosto de uma boa comida simples (não-refrigerada), mas detesto a culinária francesa; gosto de, e ainda ouso vestir nestes dias sem brilho, coletes ornamentais.

                                                                                                           Carta 213.

 

Cada árvore possui seu inimigo, poucas possuem um defensor. (Com muita freqüência o ódio é irracional, um medo de qualquer coisa grande e viva e não facilmente domada ou destruída, embora esse ódio possa revestir-se de termos pseudo-racionais.)

                                                                                                           Carta 241.

 
 
REFERÊNCIA
CARPENTER, Humphrey. As Cartas de J. R. R. Tolkien. Gabriel Oliva Brum (trad.). Curitiba: Arte e Letra, 2006.