terça-feira, 14 de junho de 2022

DOS FENÔMENOS RELIGIOSOS EM DURKHEIM E EM WEBER

 


Por João Florindo Batista Segundo

 

O presente trabalho é uma resenha, a apresentar a visão que os pesquisadores Émile Durkheim e Max Weber tinham do fenômeno religioso. Para tanto, foram empregadas as obras As formas elementares da vida religiosa: o sistema totêmico na Austrália (Introdução e capítulo 1), de Durkheim e A ética protestante e o “espírito” do capitalismo (capítulo 2, O “espírito” do capitalismo), de Weber.

De início, frisemos que a Sociologia da Religião é capital às Ciências das Religiões na busca da compreensão de instituições tradicionais e de movimentos religiosos. Neste sentido, é importante relembrar a distinção básica das divisões sociais para estes autores clássicos da sociologia: enquanto Émile Durkheim compreende a sociedade como um todo organizado com base em suas funções, Weber a entendeu como um todo complexo de várias ações sociais diferentes. Deste modo, enquanto o primeiro advogava pelo funcionalismo (método que visa entender as funções de cada indivíduo na sociedade a fim de compreendê-la como um todo), o segundo tinha por parâmetro os tipos ideais (buscava estabelecer um parâmetro para saber como as ações dos indivíduos se ordenam).

Em Durkheim, todas as religiões são verdadeiras, uma vez que são reais; ou seja, são fenômenos reais criados pelo homem e que exercem influência na vida social, sendo esta a base do caráter sagrado das várias representações sobre o mundo e sobre as crenças, representações investidas de um caráter sagrado. Logo, as sociedades não se formam apenas em torno de questões de ordem material/econômica, mas também em torno de ideias e modelos morais. Tomada como fato social, a religião possui grande força de coesão social e é um sistema gerador de símbolos que organiza a sociedade. 

E ao tempo em que a coletividade cria a religião, pertinente assegurar que a religião recrie a coletividade, por permitir a renovação na fé nos ideais compartilhados em cada grupo social, em determinada época. É do fato da religião ser não apenas um fenômeno ligado a uma teologia específica, mas um vínculo que garante a existência social, que emerge os momentos de efervescência criadora, baseado em novas ideias, que promovem transformações sociais.

Assim, em Durkheim a religião possui sempre a relevância de oferecer sentido e contribuir para a formação do espírito humano, por lhe atender desejos e necessidades, pelo que não é uma mera ilusão, vez que explica o que há de regular e constante na sociedade.

A religião é formada por um sistema de mitos, dogmas, ritos, cerimônias, no qual as crenças religiosas são ideias sagradas e os ritos são práticas sagradas, onde o sagrado é aquilo pertencente ao domínio do extraordinário, ainda que em Durkheim o elemento sobrenatural não seja uma característica central para o entendimento do fenômenos religioso.

Centrado na questão moral, Durkheim caracteriza o fenômeno religioso em duas categorias fundamentais:  as crenças (estados de opinião) e os ritos (modos de ação determinados), de modo que todas as coisas existentes encontram-se em dois gêneros opostos, a saber, o profano e o sagrado, em constante distinção e competição, que termina por originar a vivência religiosa.

Já Weber, no capítulo 2 d’A Ética protestante... não analisa diretamente o fenômeno religioso, mas, sim, a evolução do capitalismo. Todavia, sua busca por uma definição do que seria o “espírito” do capitalismo perpassa, inevitavelmente, a influência do fenômeno religioso na sociedade, in casu, no que toca às relações mercantis. Mas não por isso o fenômeno religioso perde destaque na teoria weberiana; pelo contrário, entende ele que a religião fomentou o processo de racionalização da sociedade ocidental, em especial após o surgimento do protestantismo.

Já de início, ele deixa claro que o capitalismo existiu na China, na Índia, na Babilônia, na Antiguidade europeia e no Medievo, mas não com o mesmo ethos então verificado entre os americanos e a Europa ocidental.

Sob a égide da Igreja Católica, estabeleceu-se o dogma Deo Placere vix potest (“Ele mal pode agradar a Deus”), logo incorporado ao direito canônico, imputando ao comerciante a pecha de dificilmente agradar a Deus e de que a usura (cobrança de juros sobre um empréstimo improdutivo) deveria ser evitado. Ainda que a riqueza produzisse conforto material, aqueles que a detinham eram ensinados que esta era um entrave à verdadeira vida cristã, de modo que muitos deles faziam vultosas doações à Igreja, como forma de reconciliarem-se com Deus, ou ainda, por vezes, toda a fortuna de um rico finado era transmitida às instituições de caridade da Igreja, na tentativa de se obter o perdão por sua usura em vida. Em suma, o capitalismo era tolerado pela religião católica, mas representava um grande perigo para a salvação das almas, sendo o ascetismo louvado como o mais perfeito modo de vida.

A esse “tradicionalismo” se oporá a evolução do racionalismo, se concretizando sobretudo após a Reforma Protestante. Daí em diante, vicejou a ideia de que não bastava ao homem apenas trabalhar para a satisfação imediata de suas necessidades básicas, mas que sua missão era adquirir mais e mais dinheiro, de maneira que o acúmulo de capital é o caminho para a realização pessoal e a felicidade.

Se no passado um homem era útil à sociedade por sua dedicação à espiritualidade e resistência às vicissitudes da vida, agora o ganho constante e cada vez maior de dinheiro é expressão de virtude e de uma vocação. O lucro torna-se um propósito de vida e a influência de um homem bem sucedido na sociedade se mede pelo “progresso” material que ele proporciona à sua cidade, inclusive pelos postos de trabalho que seus empreendimentos disponibiliza.

Weber também demonstra que as contingências originadas por esse novo modo das relações mercantis força a empresa “tradicional” a se adequar ao “espírito” capitalista, ou desaparecer nas brumas da pobreza, numa descrição que nos recorda a teoria da seleção natural das espécies, trazida a lume por Darwin e cerne de debate bem atual à época em que A ética protestante... foi escrito.

O texto também demonstra como foi entre os protestantes (em especial os calvinistas) que esse “espírito” começou a moldar as sociedades, inclusive, com resistências iniciais daqueles acostumados com o modo de produção “tradicional”, o que permite entrever que mesmo na transição para uma sociedade voltada para o consumo e na qual religiosidade/espiritualidade ficam em segundo plano, buscou-se (em verdade, criou-se) na religião justificativas para um novo modo de vida. Ou seja, apesar do processo de racionalização ocorrido no ocidente haver resultado na perda pela religião de seu caráter preponderante em relação às outras esferas de valores sociais, ainda assim ela continuou com uma relativa capacidade de influenciá-las.

O surgimento da ética religiosa protestante, tese fundamental de Weber, seria essencial para a afirmação do capitalismo enquanto sistema econômico e de valores, promovendo assim uma nova maneira de estar no mundo e de vivenciar a religião, na qual a ética profissional preconiza o labor e o progresso como sinal de ser “escolhido por Deus”, situação em franca correspondência com o princípio de acumulação capitalista. Com tal viés, este espectro da religião cristã constituiu-se em uma ação racional para a consecução da crença religiosa, relegando seu valor meramente contemplativo de outrora.

Nos capítulos iniciais de As formas elementares da vida religiosa, dada sua ênfase sobre a origem das “religiões primitivas” encontram-se os fundamentos sobre os quais pode o cientista das religiões trabalhar o advento da ética religiosa protestante, que é o cerne da discussão ao longo de A ética protestante e o “espírito” do capitalismo. Enquanto Durkheim vai às raízes do fenômeno religioso em geral, Weber discorre brilhantemente sobre um fenômeno religioso em particular, sendo ambas as visões úteis à compreensão da potência que a religião exerce sobre as sociedades ao longo da história e da influência que detém ainda hoje, apesar da laicidade (e em alguns casos, do laicismo).

 

REFERÊNCIAS:

 

DURKHEIM, Émile. As formas elementares da vida religiosa: o sistema totêmico na Austrália. Paulo Neves (trad.). São Paulo: Martins Fontes, 2000. p. I-XXVII; 5-32.

 

WEBER, Max. A ética protestante e o “espírito” do capitalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. p. 41-69.

  

Disciplina: Pesquisa Etnográfica e Ciências das Religiões


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