quinta-feira, 9 de junho de 2022

A RELIGIÃO COMO OBJETO: DA HISTÓRIA ECLESIÁSTICA À HISTÓRIA DAS RELIGIÕES

 


Por João Florindo Batista Segundo

 

O segundo capítulo do livro “História & Religião”, do historiador Sérgio da Mata, denomina-se “A religião como objeto: da história eclesiástica à história das religiões” e é o mais extenso da obra. Neste, numa perspectiva cronológica, o autor trata dos desenvolvimentos da religião como objeto de trabalho do historiador. Segue pela Idade Média, desde Eusébio de Cesaréia (260-340) e sua História eclesiástica até Gregório de Tours (538-594) e Isidoro de Sevilha (560-636), demonstrando o esvaziamento do estudo do fenômeno religioso em favor de obras de caráter confessional cristão: sob os auspícios da Igreja, a história e a história da salvação estão sobrepostas.

A partir do século XV, o movimento humanista – ao redescobrir a tradição clássica em oposição à fuga do mundo pregada pelo cristianismo – veio de encontro às pretensões providencialistas da história eclesiástica, porém as guerras religiosas da época teriam obstaculizado o desenvolvimento desta nova visão da história, de modo que a pesquisa ficou submetida aos interesses das respectivas reformas, protestante e católica.

Já no século XVII, a filologia se sobreleva nos estudos humanistas, de matemática e da natureza. Tanto entre os católicos quanto entre os protestantes ocorrem tentativas de uma história crítica da religião, numa tênue fronteira com a crítica filológica e sempre sob o pesado silêncio compulsório de ambas as confissões toda vez que os projetos transcendiam os dogmas da fé. Os destaques do período foram Gottfried Leibniz (1646-1716) e Jean Mabillon (1632-1707; com sua Acta sanctorum – vida dos santos), os quais defendiam que o método crítico na historiografia viria beneficiar o cristianismo, ao passo que também acreditavam ser apenas aparente a contradição entre a fé e a razão. Observe-se ainda que tentou controlar o imaginário, ao expropriar os que não eram porta-vozes legítimos da Igreja Católica.

Para da Mata, o século XVIII se caracterizou pela reflexão histórica no seio da Igreja Católica, ao passo que no âmbito acadêmico da Alemanha avança o estudo crítico da história das religiões, na medida em que a história eclesiástica e a história universal (“profana”) se separam, graças a Johann Lorenz Mosheim (1693-1755). Para ele, a história da Igreja é que deveria explorar a vida da comunidade eclesial. Outro destaque foi Gottfried Arnold (1666-1714), com sua História Imparcial da Igreja e das Heresias, o qual defendia a tese da decadência eclesial remontando à época dos apóstolos. Também despontaram Wilhelm Dilthey (1833-1911), Burckhardt, Johann Gottfried von Herder (1744-1803) e Ranke, os quais foram pastores e/ou estudantes de teologia.

Segundo o autor, é com o advento da historicização e do pluralismo moderno que nas décadas finais do século XIX nasce a história das religiões. Por esta época, dava-se o confronto entre o materialismo, o ateísmo e o cientificismo versus o obscurantismo da Igreja Católica e o conservadorismo das igrejas protestantes, ao passo que crescia a liberdade religiosa nas sociedades europeias. Adolf Von Harnack (1851-1930) apresenta a sua autonomia dos fenômenos religiosos, enquanto Max Muller (1823-1900) estabelece a distinção entre história eclesiástica e história das religiões, com o método comparativo sendo empregado para garantir o caráter científico desta última, devidamente articulada ao enfoque histórico. Muller se destacou por sua monumental obra “Sacred books of the East” (51 volumes) e por alegar que a história das religiões se antecipa à historiografia acadêmica e às ciências sociais.

A primeira cátedra surgiu na Holanda, em 1876; na França, dá-se seu estabelecimento em 1880. Influenciaram o estabelecimento das ciências das religiões:

a) a incorporação à universidade alemã da pesquisa teológica, a exemplo do método histórico-teológico de David Friedrich Strauss (1808-1874) – com A vida de Jesus –, que influenciaria as pesquisas dos historiadores Jacob Christoph Burckhardt (1818-1897) e Leopold von Ranke (1795-1886); e

b) a separação em definitivo entre história e teologia. Para Petrus Tiele (1830-1902), a ciência da religião é ciência da realidade.

No que tange à historiografia contemporânea, da Mata destaca a pesquisa de Émile Durkheim (1858-1917), por permitir a abertura para pesquisas sobre a dimensão da religião na sociedade e também sobre magia, sacrifício, dádiva, totemismo, etc.

Também é citada a sociologia religiosa de Max Weber (1864-1920), a qual definiu a diferença entre religião e sociedade: para ele, a religião tanto pode condicionar o indivíduo a ajustamentos de interesse às leis da sociedade quanto pode levar a comportamentos que modifiquem tais leis.

Da Mata, ainda que de maneira sucinta, avalia também o impacto da sociologia religiosa nas historiografias francesa e alemã e a coincidência deste fenômeno com a crise do historicismo na academia. Demonstra ainda que entre 1910 e 1930, a história das religiões teve forte impulso por conta da escola sociológica francesa (sob influência de Durkheim) e do debate das obras filosóficas de Edmund Husserl (1859-1938) e Dilthey. Também são destacados Mircea Eliade (1907-1986) e Georges Dúmezil (1898-1986), por suas experiências de promoção da articulação entre as perspectivas comparativa e histórica.

Para o autor, o praticante da ciência da religião não pode ter intenção apologética em seu estudo, além disso, diante do por ele apresentado, pode-se ainda construir a seguinte síntese do estado atual do estudo da história da das religiões:

1 – o fenômeno religioso passa a ser contemplado em todas as suas formas, inclusive não institucional;

2 – analisa-se o fenômeno religioso sem pretensão de centralidade do cristianismo; e

3 – os pressupostos teológicos tornaram-se estranhos à história das religiões.

 

REFERÊNCIA:

MATA, Sérgio da. História & Religião. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2010.


Disciplina: História das religiões.

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