quarta-feira, 10 de junho de 2015

DEPUS, CHEIO DE SOMBRA E DE CANSAÇO





Por Fernando Pessoa

Omnia fui, nihil expedit.
Severus

Depus, cheio de sombra e de cansaço,
As armas da magia entre onde estão
Os livros sacros com quem tive o laço
Que dá à alma a Força e a Visão.
Ai, não pude depor meu coração!

Quantos, com longo estudo e fiel vontade,
Tentam pisar as sendas do Poder,
Sem que sintam uma única verdade,
Sem que invocado espírito apareça,
Sem que o dominem, se é aparecido,
Sem que sintam, como eu, sobre a cabeça,
A coroa dos magos – ah, mas essa,
Se é de glória no nítido esplendor,
É de espinhos no íntimo sentido.

Quão alto fui para o que todos são!
Quão baixo para quanto quis em mim!
Vi e toquei o que a outros é visão
Em sombras ou desejos, vaga e escura,
Na confusão da confusão sem fim.
Sou hoje minha própria sepultura.
Tenho deserto e alheio o coração.

Por mais alto que o Mago suba e atinja
O comércio com os Anjos, que há no Além,
E da cor lívida do Além se tinja,
Que mais que os outros, que aqui dormem, tem?
Se a ilusão, os símbolos e a sombra
São o que tudo rege, regerão
O mesmo além que o nosso esforço empana
Com que de ilusão asi se ensombra.
Se tudo que nos fala nos engana,
Por que é que os Anjos não enganarão?

Vi Anjos, toquei Anjos, mas não sei Se Anjos existem
Tal me achei ao fim
Desse caminho de que regressei
E vi que nunca sairei de mim.

Vã ciência!, inda que aqui, no rito certo,
Os Anjos certos viessem à chamada,
Servos da invocação que os trouxe perto,
Mestres do templo que lhes foi a estrada.
Arte vã, porque tudo, inda que obtido,
Deixas as névoas que somos tais quais são,
Sem mais que uma presença sem sentido,
Passando, como um cheiro, ou um ruído,
Nas câmaras rituais de ilusão.

Anos e anos de confusa ciência,
Lida e relida até me ser meu ser,
Me ergueram a submersa consciência
À superfície clara do querer.
Tracei os signos certos, invoquei.
Obedeceram Anjos ao que eu quis.
Nada sou, nada fiz e nada sei.
Quantos se orgulhariam do que eu fiz!

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Quem me diz que não há um Senhor do mundo,
Um S'pírito que me ilude? Quem me diz
Que, quanto mais o incógnito aprofundo,
Mais de ilusão e de erro não me inundo?
Sei que, quanto maior, mais infeliz.

Não há fe, nem ciência, nem certeza
No que sou eu pra mim. Vermes me minam
De outra, pior, mais negra natureza
Que os que ao Mestre destruem na atra vala.
Tudo me é escuro, inda que com destreza
Os caminhos da sombra me iluminam
As dez luzes divinas da Kabbalah.

Meus pés pisam a Câmara do Meio,
Minhas mãos tocam o que os Anjos são.
Já de onde estou branqueja o Limiar
Do íntimo Sacrário. Sinto o ar 
Do silêncio ulterior tocar meu seio,
E rasgam-se olhos no meu coração.

Mas o que é tudo isso, se isto não é nada?
Que sei eu disto, que bem pode ser
Aquela aérea, falsa e linda estrada
Que nos desertos se consegue ver?
Venci? Perdi-me? Não sei dizer.

Poder! Poder! Ah, sempre a maldição
Da substância do mundo! Quem me dera 
Que me nascera no ermo coração
Antes a ânsia de ser só mesquinho,
Antes um sono cheio de perdão,
E ser agora qual menino eu era,
Da verdade mais próximo vizinho.

Caminhei como os homens; sou como esse 
Que viajou países por achar,
E não achou mais neles do que houvesse
Na pátria onde se houve de apartar.
Tudo é aqui, mais mar ou  menos mar.

Ah, não é essa a Outra Coisa da alma,
Que ela do fundo incógnito que tem,
Anseia - a grande e verdadeira calma,


Sem querer nem poder, o Sumo Bem.

Com o escopro e o malhete do alcançar,
Quebrei a Pedra Cúbica do Altar
E a Pedra Cúbica se abriu em cruz.

Quebrara o Altar, então a mim quebrei,
Sobre o centro da Cruz me derramei.
Ali, sacrificado, ou sacrifício,
Exausto, nulo, senti meu enfim
Aquele coração que era fictício.
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Consegui. Paz profunda, meus Irmãos!

24-8-1933

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