Os
textos que seguem são de autoria exclusiva do gnóstico português Fernando
Pessoa
Chama-se iniciação ao
entendimento profundo dos símbolos, sendo considerados símbolos, e não lições
directas ou factos históricos, os rituais e (...) de todas as religiões. Assim um
cabalista não interpreta os “seis dias” da criação do mundo como sendo “dias”
no sentido directo; atribui-lhe outro sentido, que não importa qual seja. Assim
um cabalista cristão não toma literalmente a narrativa dos Evangelhos; o
nascimento de Jesus, e a sua morte, por exemplo, são por ele considerados como
exposições simbólicas. Para um cabalista cristão a Segunda Pessoa da Trindade
não pôde nascer em Nazaré (Belém).
Os
Três Caminhos para Iniciação
São três os caminhos da
iniciação; servir-nos-emos, para os designar, das palavras de Saint-Martin:
Liberdade, Igualdade, Fraternidade. A iniciação fraternitária consiste na
entrada do candidato para qualquer Ordem com fins directamente iniciáticos,
seja a Maçonaria seja qualquer Ordem superior a ela que não exija a
qualificação maçónica. Este tipo de iniciação é o que convém aos espíritos por
natureza pouco desenvolvidos, a quem a “cadeia de união”’, a participação com
outros do mesmo simbolismo, é indispensável para abrirem caminho - se de todo
lhes não for vedado abri-lo - através dos graus íntimos, em que a iniciação
consiste.
O caminho da igualdade
consiste na entrada do candidato para qualquer religião (...).
Há homens que só podem ser
indivíduos em sociedade, isto é, cuja vida é essencialmente subordinada, para
seu desenvolvimento, ao contacto com a vida alheia. Há outros homens que
precisam, como aqueles, da vida alheia para se completarem em si mesmos, porém
não precisam da subordinação, senão da simples coexistência. Há ainda outros,
mas são raros, para quem a vida alheia é inútil, quando não daninha; que passam
no mundo solitários por natureza, e são indivíduos em si mesmos.
A nenhum homem, se nele houver
a disposição e o destino, a iniciação é vedada. A cada um dos três tipos de
homens convém, contudo, um dos três tipos de iniciação. Os três tipos de
iniciação são a iniciação pela Fraternidade, a iniciação pela Igualdade e a iniciação
pela Liberdade. Sirvo-me da expressão trinitária de Saint-Martin, mas deve
compreender-se que ela nada tem que ver com os falsos usos que mais tarde se
fizeram dela, quer tomando-a como lema ou moto de algumas das Maçonarias (com a
notável excepção da inglesa, cujo lema é “temer a Deus e honrar o Rei”), quer
tomando-a como lema ou moto de coisas puramente profanas, como a Revolução
Francesa, os princípios democráticos, ou o que mais seja.
A iniciação por Fraternidade
convém aos indivíduos espiritualmente pouco desenvolvidos, e em quem o estímulo
das faculdades intuitivas não pôde ser dado senão por meios materiais e
grosseiros, como, por sua natureza, são os rituais, a cadeia de união, o
contacto com outros em templos telhados.
Os
Três tipos de iniciação
Há três tipos distintos de
iniciação-simbólica ou exterior, intelectual (exterior à interior) e vital
(interior). Nas iniciações simbólicas, que reforçam a vontade e que, portanto,
conduzem à Magia como realização, o candidato não passa por graus de
entendimento, mas por graus de intuição, por assim dizer; ele está
continuamente à superfície e na aparência das coisas, e, embora ele atinja o
grau mais elevado, qualquer que seja a ordem ou ordens por que prossiga, esse
grau mais elevado não precisa de corresponder (geralmente não corresponde) a
qualquer coisa como um grau paralelo em qualquer das iniciações interiores. Nas
iniciações intelectuais, que reforçam o intelecto e que, portanto, conduzem ao
Misticismo como realização, o candidato passa por estádios de entendimento, mas
não por estádios de vida; ele pode saber muito, mas não precisa de viver aquilo
que conhece no mesmo plano em que o conhece. Nas iniciações vitais, que
reforçam a emoção e, portanto, conduzem à Alquimia como realização, o candidato
vive aquilo que sente e sabe.
(Isto está certo?). Não será
antes que estas iniciações diferem numa outra medida, enquanto a diferença
entre Magia, Misticismo e Alquimia (então e a Gnosis?) se encontra noutro plano
de interpretação? Estas iniciações não são antes físicas, etéreas e astrais?
(ou, talvez, etéreas, astrais e espirituais, ou astrais, mentais e
espirituais?).
— Possivelmente há três modos
pelos quais as iniciações podem ser interpretadas: (I) os três caminhos de
realização, mágico, místico e gnóstico, (2) os três estádios de realização,
Neófito, Adepto e Mestre, (3) os três graus de realização, astral, mental e
espiritual.
Há, primeiro, e no nível
ínfimo, a iniciação exotérica, análoga à iniciação maçónica, e de que esta é o
tipo mais baixo: é a iniciação dada a quem propriamente se não encaminhou para
ela, nem para ela se preparou (porque sugestão de outrem, o impulso externo, e
a simples curiosidade não são preparações), e que serve para pôr o indivíduo em
condições de poder dar se o caminho esotérico, de poder buscar, pelo contacto,
embora esotérico, com símbolos e emblemas, o verdadeiro caminho. O mais
exterior e nulo dos sistemas iniciáticos — como o é hoje a maçonaria — serve
este fim, logo que tenha conservado os símbolos pelos quais em nós se infiltra
o primeiro conhecimento do oculto. O único fim com que os Rosa-Cruz instituíram
a maçonaria exotérica é o de pôr muita gente em contacto com, por assim dizer,
o aspecto externo da verdade oculta, podendo assim aqueles, que se sintam aptos,
ascender a ela lentamente.
Há, depois, a iniciação
esotérica. Difere da primeira em que tem que ser buscada pelo discípulo, e por
ele desejada e preparada em si mesmo. “Quando o discípulo está pronto”, diz o
velho lema dos ocultistas, “o mestre está pronto também”.
Há, por fim, a iniciação
divina. Esta, não a dão nem exotéricos ou esotéricos menores, como a exotérica,
nem até Mestres ou Esotéricos Maiores, como a esotérica; vem directamente, e
por cima destes todos, das mesmas mãos, do que chamamos Deus. O tipo supremo
desta iniciação é o de Jesus, a quem Deus, de nascença, converteu em sua mesma
Essência, tornando-o Cristo.
Iniciado exotérico é, por
exemplo, qualquer mação, ou qualquer discípulo menor de uma sociedade teosófica
ou antroposófica. Iniciado esotérico é, por exemplo, um Rosa-Cruz, um Francis
Bacon, seja. Iniciado Divino é, por exemplo, um Shakespeare. A este tipo de
iniciação vulgarmente se chama génio.
Quando Shakespeare disse, “uns
nascem grandes, outros chegam à grandeza, a outros é a grandeza imposta” deu,
talvez sem querer e julgando ser simplesmente irónico, a chave das três
iniciações, na ordem descendente. Outro sentido não tem a mesma frase do Cristo
que diz o mesmo pela «a uns fazem eunucos desde o ventre materno”, em que, por
uma expressão simbólica que a intuição facilmente compreende, se exprime pelo
eunuquismo o afastamento dos outros que caracteriza a iniciação.
A busca
pela Iniciação
Como, então, deve um homem que
busque a iniciação treinar-se para ela? Como, por outras palavras, deverá ele
tomar dentro de si os Graus de Neófito da Ordem Interior? Ele deve começar por
familiarizar-se com sistemas filosóficos e com a filosofia que emerge, mal ou
bem, das aquisições mais recentes da ciência. Com este suporte, ele deve reflectir
e comparar, confrontando sistema com sistema, teoria com teoria e parte de cada
sistema comas outras partes. Desenvolverá assim a sua inteligência abstracta
sem a qual a intuição que ele busca desenvolver mais não será do que emoção.
Ele deve começar por se despir
de todos os preconceitos dogmáticos, de todas as coisas que foram introduzidas
no seu espírito pela educação e pelo hábito. O caminho da iniciação não pode
ser alcançado através dos portais de qualquer das igrejas, mas antes através
dos portais de todas ao mesmo tempo ou de nenhuma. Seguidamente, ele deve
familiarizar-se com sistemas religiosos de todas as espécies, com sistemas
filosóficos.... (ut supra).
Deve depois elaborar, o melhor
que puder, um sistema próprio seu, construído lentamente, com aquilo que ele
aprendeu, sem necessariamente o escrever, um sistema, tão coerente quanto ele
puder fazê-lo, de interpretação do universo nas triplas linhas de verdade,
beleza e conduta.
Depois procederá ao abandono
do sistema que formar. Terá chegado a amá-lo, mas cabe-lhe agora reconhecer que
ele não vale mais do que os outros sistemas filosóficos que ele comparou entre
si e, uma vez que estabeleceu o seu próprio sistema, rejeitou.
Assim, ele terá atravessado os
quatro estádios da tentação do Mundo — o Dogma, a Inteligência Concreta ou
Ciência, a Inteligência Abstracta ou Filosofia e a Inteligência Crítica.
O Dogma pelo qual ele está
preso aos outros; a Ciência pela qual ele está preso à Natureza; a Filosofia
pela qual ele está preso aos espíritos de outros; a sua própria filosofia pela
qual ele está preso a si próprio, porque o Mundo é tudo isto. Uma vez que
passou estes quatro estádios do grau de Neófito, está pronto para a iniciação.
Dele depende agora escolher por que caminho a fará—se pelo caminho místico, se
pelo caminho mágico ou pelo gnóstico. É mais justo dizer o caminho por onde ele
começará a fazê-la, porque a iniciação plena no grau de Adepto inclui os três.
No primeiro Grau de Adepto ele tomará a via que escolheu e completará o seu
caminho nela; no segundo Grau de Adepto ele tomará uma das outras duas vias; no
terceiro Grau de Adepto ele tomará a via que resta.
Ele tem de vencer as três
tentações que estão subjacentes à Carne — os desejos que são vencidos pelo
Misticismo; as indecisões que são vencidas pela Magia; os enganos que são
vencidos pela Gnose. Tem de vencer (…)
Dir-se-á que isto torna a
iniciação uma tarefa muito difícil. Torna-a, porque assim é. Por que é que a
iniciação havia de ser fácil? Dir-se-á que só um homem de especial inteligência
pode tomar os graus de neófito, uma vez que é necessário ter capacidade de
reflexão abstracta para se ser apto em filosofia, e nem toda a gente a possui.
Mas por que é que toda a gente havia de estar em condições de ser iniciado? Se
se disser que isto é injusto, podemos replicar assim: Porque é que o universo
havia de ser justo? — o que é talvez uma resposta errada, mas certamente
suficiente, — ou que a questão se baseia no pressuposto de que não há
desenvolvimento no mundo; ou, por outras palavras, que o homem termina num
curto lapso de vida terrena e que é possível que a reencarnação seja verdadeira
quando não há injustiça, mas apenas graus, porque na própria vida exterior há
graus de força, beleza, inteligência e outras coisas idênticas.
Um homem pode, pelo menos,
aspirar à iniciação e, se a inteligência abstracta é o primeiro grau no caminho
e ele não tem inteligência abstracta, pode pelo menos aspirar a ela; custa-lhe
tanto ou tão pouco aspirar à inteligência como à iniciação, e realmente ele
aspira à mesma coisa na ordem própria quando aspira à inteligência.
(O místico sem inteligência
não atingiu o primeiro Grau de Adepto: ele não fez mais do que atingir o grau
intermédio entre os Graus de Neófito e de Adepto, o purgatório vazio da
ascensão errada).
O
Significado Real da Iniciação
Mas o significado real da
iniciação é que este mundo visível em que vivemos é um símbolo e uma sombra,
que esta vida que conhecemos através dos sentidos é uma morte e um sono, ou,
por outras palavras, que o que vemos é uma ilusão. A iniciação é o dissipar —
um dissipar gradual, parcial — dessa ilusão. A razão do seu segredo é que a
maior parte dos homens não está adaptada a compreendê-lo e, portanto,
compreendê-lo-á mal e confundi-lo-á, se for tornado público. A razão de ele ser
simbólico é que a iniciação não é um conhecimento, mas uma vida, e o homem
deve, portanto, descobrir por si o que mostram os símbolos, porque, assim,
viverá a vida deles, não se limitando a aprender as palavras em que são
mostrados.
Dizer que Cristo é um símbolo
do Sol é pôr o processo iniciatório ao invés. É o Sol que é o símbolo de
Cristo. Por outras palavras, Cristo é a realidade e o Sol a ilusão, Cristo é a
luz, e o Sol a sombra. (O Inefável é a luz; o GA, corpo; o mundo, sombra — a
sombra projectada pelo denso quando iluminado pelo subtil. A luz está na
circunferência e a sombra lançada para o centro. Isto tem alguma coisa a ver
com o pt. dentro do c.?) (Cf. a ideia cabalística do En Soph retirando-se para
dentro, manifestando-se dentro e não fora).
Iniciar um homem por um ritual
complicado e mais ou menos impressivo e depois confiar-lhe, sob promessas de
segredo e juras mais ou menos terríveis, que a Primavera vem depois do Inverno
— isto nunca podia ter sido o plano de qualquer corpo ou sistema iniciático.
Mas tê-lo-ia sido ensinar o contrário — que a Primavera, seguindo-se ao
Inverno, é um símbolo de coisas maiores, que o natural é uma figuração do
sobrenatural.
Isto, feito com mais ou menos
pormenor, em símbolo, depois em doutrina, depois em revelação, é a essência de
todas as verdadeiras iniciações, de Eleusis a Kilwinning.
Ordens de inic.: (I) através
de símbolos e (mais tarde) explicações em si próprias simbólicas—cf. Pike; (2)
através de doutrina simbólica, verdadeira ao seu nível, e explicações, já não
simbólicas; (3) através de comunicação directa, embora não necessariamente
falada ou expressa.
Não digo que estas coisas
representem uma verdade e não digo que o não façam. Digo que este é o
significado da iniciação, que é assim que a iniciação existe e que é para estes
fins que ela existe.
Iniciação
Não dormes sob os ciprestes,
Pois não há sono no mundo.
O corpo é a sombra das vestes
Que encobrem teu ser profundo.
Vem a noite, que é a morte,
E a sombra acabou sem ser.
Vais na noite só recorte,
Igual a ti sem querer.
Mas na Estalagem do Assombro
Tiran-te os Anjos a capa :
Segues sem capa no ombro,
Com o pouco que te tapa.
Então Arcanjos da Estrada
Despem-te e deixam-te nu.
Não tens vestes, não tens nada
:
Tens só teu corpo, que és tu.
Por fim, na funda caverna,
Os Deuses despem-te mais.
Teu corpo cessa, alma externa,
Mas vês que são teus iguais.
A sombra das tuas vestes
Ficou entre nós na Sorte.
Não 'stás morto, entre
ciprestes.
Neófito, não há morte.
REFERÊNCIAS:
LOPES, Teresa
Rita. Pessoa por Conhecer - Textos
para um Novo Mapa. Lisboa: Estampa, 1990.
PESSOA,
Fernando. À Procura da Verdade Oculta
- Textos filosóficos e esotéricos.. (Prefácio, organização e notas de António
Quadros.) 2. ed. Mem Martins: Publ. Europa-América, 1989.
PESSOA,
Fernando. Fernando Pessoa e a Filosofia
Hermética - Fragmentos do espólio. (Introdução e organização de Yvette K.
Centeno). Lisboa: Presença, 1985.
FONTE: Disponível
em: <http://gnosisportugal.blogspot.com.br/2012/11/a-iniciacao-segundo-fernando-pessoas.html>.
Acesso em: 13 jun. 2015.
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