Por Serge-Henri Lago, FRC
A questão de se saber o que fazemos
nesse plano é sem dúvida uma das mais antigas que o homem formula desde que
tenta compreender suas relações com o universo e com seu Criador. Os debates em
torno deste assunto frequentemente entreabriram pistas de investigação
inesperadas. Por essa razão, esse artigo convida mais à reflexão e à meditação
sobre uma abordagem esquemática porém essencial do caminho do homem sobre a
Terra.
Ocupar-nos-emos para tanto sobre a
mensagem que nos enviam desde a noite dos tempos os quatro princípios que são a
terra, o ar, a água e o fogo. Esses princípios encontram correspondência tanto
na estrutura do ser humano quanto nos diversos aspectos da vida humana e da
natureza. Para compreender isso, basta citar, à guisa de exemplo, os principais
sistemas do corpo humano, ou seja, o sistema digestor, que corresponde ao
princípio terra, o sistema respiratório, associado ao ar, o sistema
circulatório, ligado à água e o sistema nervoso, correspondente ao fogo. O
presente artigo se limitará, contudo, a examinar esses princípios apenas em sua
dimensão iniciática.
O atributo que mais distingue o homem
dos outros animais é a consciência de si. O homem tem consciência de seu corpo,
de seus pensamentos, de suas emoções, de seus sentimentos e de suas ações tanto
quanto de seus efeitos nele mesmo e ao redor de si. E enquanto ser social, seu
confronto com o outro é inevitável: o “outro” sendo um ser humano, um elemento
da natureza ou uma situação. De suas relações com o outro derivam um sentimento
de bem-estar ou de alegria, mas também de insatisfação. Com o tempo e com a
repetição das insatisfações, começam a incompreensão, os conflitos externos e
internos e, por fim, o sofrimento.
Em seu estudo do sofrimento e de suas
causas, a tradição budista enuncia aquilo a que ela chama de “as quatro nobres
verdades”, as quais resumimos da seguinte forma:
• A verdade do sofrimento, sendo que toda
vida implica no sofrimento e na insatisfação;
• A verdade da origem do sofrimento, que
repousa no desejo e no apego;
• A verdade do cessar do sofrimento, pois
o fim do sofrimento é possível;
• A verdade do caminho que leva ao fim do
sofrimento, que é o caminho do meio seguindo a nobre senda óctupla.
Assim, graças à consciência de si, o
homem descobre suas próprias tensões internas e sua ignorância, tendo por
corolários a frustração e o sofrimento. Ele começa então a se questionar sobre
o sentido de sua existência.
Dentre as diversas pistas de reflexão
que se oferecem ao buscador, a abordagem proposta pela ciência alquímica lança
uma luz das mais pertinentes. Essa abordagem consiste numa técnica de
progressão rumo à Luz divina, a qual se parece muito com aquilo a que
poderíamos chamar de protótipo, para não dizermos arquétipo, do percurso
iniciático. Essa vereda conduz o ser humano a escalar a pirâmide de sua
evolução sublimando progressivamente os quatro princípios de sua própria
natureza, quais sejam, a terra, o ar, a água e o fogo.
De fato, se o homem de nossos dias não
se interessa mais do que raramente pala transmutação do chumbo e de outros
metais em ouro, não é menos verdade que ele também é bem pouco preocupado com
sua evolução interior. Dentre esses numerosos buscadores, o estudante de
misticismo se distingue pela maneira pela qual concebe o ponto de partida de
seu percurso. Ele cedo toma consciência de suas falhas e de sua ignorância e
percebe que seu próprio ser é a matéria da Grande Obra. Assim, o objetivo de
sua busca é trabalhar no aperfeiçoamento de sua personalidade a fim de
participar, na plenitude de todas as suas capacidades, da evolução de seu
próximo e da humanidade. Citamos aqui o alquimista Grillot de Givry que, em
suas Meditações sobre a Grande Obra, dirigia-se assim ao discípulo
na via do Absoluto:
Já disse o bastante
para que tu saibas que deves doravante formar em ti um corpo místico que
ocupará o lugar de teu corpo físico em todos os teus atos para empregar
utilmente tuas forças imateriais.
O simbolismo da Cruz e da Rosa vem
constantemente relembrar isso ao estudante rosacruz. A Cruz representa o corpo
físico do ser humano e não deixa de também evocar os quatro princípios: terra,
ar, água e fogo. A rosa representa a alma em via de evolução espiritual.
Além disso, o estudante rosacruz tem
consciência da imensa responsabilidade do homem que, enquanto ponto e junção
entre o espiritual e o material, tem por dever velar pela natureza e favorecer
sua progressão rumo à Unidade. Em consequência disso, ele se harmoniza com o
Divino a fim de cooperar com a lei de evolução que consiste em fazer aumenta a
luz divina que há nele próprio e em iluminar toda a Criação. O coroamento dessa
evolução permite que a Rosa atinja seu estado de desenvolvimento máximo no
centro da Cruz e que brilhe em todo o seu esplendor. Por outro ponto de vista,
poderíamos dizer que a Rosa floresce no cimo da Pirâmide, na Luz divina. Essa
última alusão permite lembrar que a Rosa vermelha designa o último estado da
obra no processo alquímico, a ascensão da consciência do estudante à dimensão
macrocósmica, a dimensão unificadora de todas as demais dimensões, o lugar onde
o passado, o presente e o futuro são um, o lugar onde se encontram ao mesmo
tempo o próximo e o longínquo e o lugar da fusão natural e evidente do
microcosmo com o macrocosmo.
A via interior que conduz à Rosa
poderia ser esquematizada como um processo tetrafásico:
A fase 1 – a terra: marca a tomada de consciência das condições de existência passadas e atuais. O homem desce ao mais profundo de si mesmo para avaliar sua existência fazendo para tanto uso de toda a objetividade de que é capaz. Ele toma consciência de suas lacunas, da fugacidade dos interesses atribuídos a certas atividades ou ocupações e também de sua própria fragilidade. Ele então pensa exaustivamente no tipo de vida que levou até então e renega tudo aquilo que negativamente o condicionou e o guiou. Além disso, ele se dá conta de que cada um de seus pensamentos, cada uma de suas palavras e cada uma de suas ações é uma semente lançada sobre a terra fértil do carma. Ocorre-lhe então o desejo de apagar seus atos negativos, seus efeitos e sobretudo suas causas. É chegado então o tempo dos remorsos e do arrependimento, de onde a prudência que ele demonstra em seus julgamentos e em suas ações a fim de não incorrer nos mesmos erros.
A fase 2 – o ar: esta fase simbolizar a aspiração à elevação. Trata-se efetivamente menos de se elevar do que operar um retorno em si próprio, pois é sua própria montanha interior que o postulante deve escalar. Após haver clareado seu horizonte desviando seu olhar de suas escuridões pretéritas, ele percebe a Luz da Joia e sente-se pronto a se sujeitar a todos os sacrifícios para obtê-la. Seu ser abre asas então para alçar a consciência progressivamente mais alto. Ele necessariamente se desvencilha de algumas preocupações que se tornaram insípidas, importunas e não essenciais a fim de se consagrar com fervor à elevação de sua personalidade.
A fase 3 – a água: é o agente da purificação. O
buscador deve nesse momento declinar de suas vestes artificiais para mergulhar
humildemente nas águas purificadoras. Ele sobretudo não quer mais perder de
vista a Joia que acaba de divisar ao longe, mas que na verdade estava escondida
no fundo dele mesmo e que ele não havia reconhecido – ou talvez jamais
percebido. Ele a havia coberto com imundícies de suas experiências
inconsequentes. É chegado o momento da grande limpeza. Ele trata de corrigir
seus erros e de sobretudo exprimir suas qualidades opostas. Em outras palavras,
ele alivia sua terra removendo as ervas daninhas e a purifica e vivifica pela
água.
A fase 4 – o fogo: o fogo evoca a Iluminação, a
senda de evolução para sua luz interior e a Luz do Deus de seu coração. O
aspirante logo toma consciência da grandeza de sua própria luz e, na mesma
oportunidade, da imensidade de sua responsabilidade. Ele tem então a
possibilidade de participar em plena consciência do brilho da Luz Maior. Seu
ser integral é a verdadeira Pedra Filosofal. Ele olha a sociedade com mais
acuidade e compreende melhor que qualquer outro a necessidade de ajudar seu
próximo a escalar a montanha. Seu papel na organização da sociedade e na
instauração da paz sobre a Terra, enfim, lhe é revelado em toda a sua
evidência.
Ela constitui o desenlace das fases
precedentes e, enquanto símbolo da Pedra Filosofal, ela é considerada por
alguns alquimistas como o quinto princípio. Ela é progressivamente percebida
pelo estudante que cada vez mais se beneficia de sua irradiação, na medida em
que sublima os quatro princípios – em outras palavras, à medida que extrai
desses princípios as qualidades necessárias para iluminar as sombras de sua
personalidade. Os quatro princípios estando dispostos em cruz, podemos dizer
que o candidato à Iniciação faz muitas vezes a volta da Cruz aproximando-se
cada vez mais da intersecção, ou seja, na direção da Rosa. Eis a razão pela
qual a Rosa representa o homem realizado – o adepto –, aquele que atingiu
a Rosa graças à Cruz: “Ad Rosam per Crucem”.
Morto na Cruz, o iniciado renasce
adepto na Rosa. É o nascimento numa nova dimensão. O ser que chega a esse nível
de consciência sabe que essa realização é nem um fim em si e nem o objetivo de
sua vida. Ele regressa então ao seio da humanidade – lá onde cada um de seus
congêneres ainda carrega sua cruz – para difundir o perfume e a luz de sua
Rosa. Ele encoraja e apoia os esforços empreendidos por outros buscadores. De
seu plano de consciência, ele insufla uma nova dinâmica a todos os progressos
necessários ao homem e à sociedade. No serviço, ele faz com que a sociedade e a
própria natureza usufruam da Pedra Filosofal que seu ser plenamente se tornou:
“Ad Crucem per Rosam”.
Aquele que dessa forma percorreu o
caminho operou a união do pai e da mãe – o pai simbolizado pela cabeça e mãe
simbolizada pelo coração; ou ainda a união do Rei e da Rainha. O advento da
Rosa confere a esse percurso uma dimensão que poderíamos comparar à da
encarnação do Verbo. A Rosa simboliza a energia divina no homem e o reflexo de
Deus em seu coração. A tradição cristã evocaria também a ressurreição do Cristo
no coração do cristão. O que seria da Cruz sem a Rosa? O que seria da tradição
cristã sem a ressurreição do Cristo? A Rosa no coração do homem é o espelho no
qual Deus se revela. E podemos afirmar, seguindo Hermes Trimegisto: “Aquilo
que está em cima é como o que está em baixo e aquilo que está em baixo é como o
que está em cima, para operar os milagres da coisa única”.
O caminho no cotidiano
A análise desse percurso faz emergir
duas ideias principais que podem ser sintetizadas da seguinte maneira:
• A primeira ideia vai do mais denso ao
menos denso. O buscador deve se desembaraçar progressivamente dos hábitos que o
estorvam a fim de elevar mais facilmente sua consciência para os planos
espirituais. Assim como a energia divina no momento da Criação procedeu por
meio da densificação progressiva – inicialmente pelo fogo, depois pela água, em
seguida pelo ar e finalmente pela terra –, assim também o homem, por seu
retorno à Unidade, caminha no sentido inverso, indo na direção da menor
densidade, ou seja, da terra para o ar e em seguida para a água e finalmente
para o fogo.
• A segunda ideia vai do exterior para o
interior. A busca do estudante de misticismo deve conduzi-lo progressivamente a
compreender que aquilo que está em cima é como o que está em baixo e que, na
realidade, não existe nem alto nem baixo. Ele sabe além disso que há mais a ser
combatido na esfera da sublimação de suas próprias falhas do que contra
inimigos exteriores. Este é o sentido das provações às quais são submetidos
todos os candidatos à Iniciação no antigo Egito, pois o maior inimigo do homem
é a parte mais sóbria de sua própria personalidade.
Se conviermos que o desenlace do
caminho para o ser interior requer muitas encarnações, podemos, todavia,
observar, no decurso de uma vida, ciclos de evolução inferiores que sintetizam
por vezes o caminho inteiro. Na escala de uma vida, pode-se definir assim a
vereda do estudante de misticismo:
• A terra oferece uma tomada de consciência da
ignorância e de suas consequências. As insatisfações das respostas apresentadas
às questões essenciais levam-no a bater às portas de uma escola de Mistérios.
• Pelo ar se manifesta o compromisso de elevar sua
consciência a fim de ser um discípulo digno de receber a Luz de seus Ancestrais
e dos Mestres.
• A água permite a aceitação com humildade do
autoquestionamento e o despir-se de conhecimentos obsoletos em favor de um
ensinamento impregnado pela Iniciação.
• O fogo inclina ao serviço. Este serviço é a
disposição de difundir a Luz recebida do Divino e dos Mestres para o bem da
humanidade.
Sabemos da importância que o antigo
Egito atribuía à Iniciação e de quais meios o país de Thot Hermes se serviu
para dar um testemunho duradouro dos tesouros que a própria natureza lhes havia
concedido. Não ignoramos tampouco que o Egito fundou os princípios da Iniciação
sobre o arquétipo que acabamos de examinar, a saber, a progressão simbólica do
iniciado nas energias dos quatro princípios. Hermes Trimegisto, em sua Tábua de
Esmeralda, descreve de modo simples e sem ambiguidade aquilo que ele considera
como o agente na base de toda a Criação: “O Sol é seu pai, a Lua é sua mãe, o
vento a levou para seu ventre e a terra é sua nutriz”. Eis outra maneira de
revelar a fundação quaternária e oculta da Criação: o “Sol” pelo fogo, a “Lua”
pela água, o “vento” pelo ar e, evidentemente, a “terra nutriz” pelo princípio
terra.
Além disso, as muitas mensagens que a
Esfinge da planície de Gizé dispõe para a meditação da humanidade há alguns
milênios constituem um excelente testemunho da magia desses princípios – a mais
alta das magias – que não é outra senão a da transmutação de nossa própria
personalidade.
REFERÊNCIA:
LAGO, Serge-Henri. O caminho da rosa. In: O Rosacruz.
n. 287. verão 2014. Curitiba: AMORC-GLP, 2014. p. 40-45.
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