terça-feira, 16 de junho de 2015

O CAMINHO DA ROSA




Por Serge-Henri Lago, FRC

 

A questão de se saber o que fazemos nesse plano é sem dúvida uma das mais antigas que o homem formula desde que tenta compreender suas relações com o universo e com seu Criador. Os debates em torno deste assunto frequentemente entreabriram pistas de investigação inesperadas. Por essa razão, esse artigo convida mais à reflexão e à meditação sobre uma abordagem esquemática porém essencial do caminho do homem sobre a Terra.

Ocupar-nos-emos para tanto sobre a mensagem que nos enviam desde a noite dos tempos os quatro princípios que são a terra, o ar, a água e o fogo. Esses princípios encontram correspondência tanto na estrutura do ser humano quanto nos diversos aspectos da vida humana e da natureza. Para compreender isso, basta citar, à guisa de exemplo, os principais sistemas do corpo humano, ou seja, o sistema digestor, que corresponde ao princípio terra, o sistema respiratório, associado ao ar, o sistema circulatório, ligado à água e o sistema nervoso, correspondente ao fogo. O presente artigo se limitará, contudo, a examinar esses princípios apenas em sua dimensão iniciática.


A tomada de consciência

 

O atributo que mais distingue o homem dos outros animais é a consciência de si. O homem tem consciência de seu corpo, de seus pensamentos, de suas emoções, de seus sentimentos e de suas ações tanto quanto de seus efeitos nele mesmo e ao redor de si. E enquanto ser social, seu confronto com o outro é inevitável: o “outro” sendo um ser humano, um elemento da natureza ou uma situação. De suas relações com o outro derivam um sentimento de bem-estar ou de alegria, mas também de insatisfação. Com o tempo e com a repetição das insatisfações, começam a incompreensão, os conflitos externos e internos e, por fim, o sofrimento.

Em seu estudo do sofrimento e de suas causas, a tradição budista enuncia aquilo a que ela chama de “as quatro nobres verdades”, as quais resumimos da seguinte forma:

A verdade do sofrimento, sendo que toda vida implica no sofrimento e na insatisfação;

A verdade da origem do sofrimento, que repousa no desejo e no apego;

A verdade do cessar do sofrimento, pois o fim do sofrimento é possível;

A verdade do caminho que leva ao fim do sofrimento, que é o caminho do meio seguindo a nobre senda óctupla.

Assim, graças à consciência de si, o homem descobre suas próprias tensões internas e sua ignorância, tendo por corolários a frustração e o sofrimento. Ele começa então a se questionar sobre o sentido de sua existência.

 
O compromisso
 

Dentre as diversas pistas de reflexão que se oferecem ao buscador, a abordagem proposta pela ciência alquímica lança uma luz das mais pertinentes. Essa abordagem consiste numa técnica de progressão rumo à Luz divina, a qual se parece muito com aquilo a que poderíamos chamar de protótipo, para não dizermos arquétipo, do percurso iniciático. Essa vereda conduz o ser humano a escalar a pirâmide de sua evolução sublimando progressivamente os quatro princípios de sua própria natureza, quais sejam, a terra, o ar, a água e o fogo.

De fato, se o homem de nossos dias não se interessa mais do que raramente pala transmutação do chumbo e de outros metais em ouro, não é menos verdade que ele também é bem pouco preocupado com sua evolução interior. Dentre esses numerosos buscadores, o estudante de misticismo se distingue pela maneira pela qual concebe o ponto de partida de seu percurso. Ele cedo toma consciência de suas falhas e de sua ignorância e percebe que seu próprio ser é a matéria da Grande Obra. Assim, o objetivo de sua busca é trabalhar no aperfeiçoamento de sua personalidade a fim de participar, na plenitude de todas as suas capacidades, da evolução de seu próximo e da humanidade. Citamos aqui o alquimista Grillot de Givry que, em suas Meditações sobre a Grande Obra, dirigia-se assim ao discípulo na via do Absoluto:

 

Já disse o bastante para que tu saibas que deves doravante formar em ti um corpo místico que ocupará o lugar de teu corpo físico em todos os teus atos para empregar utilmente tuas forças imateriais.

 

O simbolismo da Cruz e da Rosa vem constantemente relembrar isso ao estudante rosacruz. A Cruz representa o corpo físico do ser humano e não deixa de também evocar os quatro princípios: terra, ar, água e fogo. A rosa representa a alma em via de evolução espiritual.

Além disso, o estudante rosacruz tem consciência da imensa responsabilidade do homem que, enquanto ponto e junção entre o espiritual e o material, tem por dever velar pela natureza e favorecer sua progressão rumo à Unidade. Em consequência disso, ele se harmoniza com o Divino a fim de cooperar com a lei de evolução que consiste em fazer aumenta a luz divina que há nele próprio e em iluminar toda a Criação. O coroamento dessa evolução permite que a Rosa atinja seu estado de desenvolvimento máximo no centro da Cruz e que brilhe em todo o seu esplendor. Por outro ponto de vista, poderíamos dizer que a Rosa floresce no cimo da Pirâmide, na Luz divina. Essa última alusão permite lembrar que a Rosa vermelha designa o último estado da obra no processo alquímico, a ascensão da consciência do estudante à dimensão macrocósmica, a dimensão unificadora de todas as demais dimensões, o lugar onde o passado, o presente e o futuro são um, o lugar onde se encontram ao mesmo tempo o próximo e o longínquo e o lugar da fusão natural e evidente do microcosmo com o macrocosmo.

 
As etapas e seu simbolismo
 

A via interior que conduz à Rosa poderia ser esquematizada como um processo tetrafásico:

 

A fase 1 – a terra: marca a tomada de consciência das condições de existência passadas e atuais. O homem desce ao mais profundo de si mesmo para avaliar sua existência fazendo para tanto uso de toda a objetividade de que é capaz. Ele toma consciência de suas lacunas, da fugacidade dos interesses atribuídos a certas atividades ou ocupações e também de sua própria fragilidade. Ele então pensa exaustivamente no tipo de vida que levou até então e renega tudo aquilo que negativamente o condicionou e o guiou. Além disso, ele se dá conta de que cada um de seus pensamentos, cada uma de suas palavras e cada uma de suas ações é uma semente lançada sobre a terra fértil do carma. Ocorre-lhe então o desejo de apagar seus atos negativos, seus efeitos e sobretudo suas causas. É chegado então o tempo dos remorsos e do arrependimento, de onde a prudência que ele demonstra em seus julgamentos e em suas ações a fim de não incorrer nos mesmos erros.


A fase 2 – o ar: esta fase simbolizar a aspiração à elevação. Trata-se efetivamente menos de se elevar do que operar um retorno em si próprio, pois é sua própria montanha interior que o postulante deve escalar. Após haver clareado seu horizonte desviando seu olhar de suas escuridões pretéritas, ele percebe a Luz da Joia e sente-se pronto a se sujeitar a todos os sacrifícios para obtê-la. Seu ser abre asas então para alçar a consciência progressivamente mais alto. Ele necessariamente se desvencilha de algumas preocupações que se tornaram insípidas, importunas e não essenciais a fim de se consagrar com fervor à elevação de sua personalidade.

 

A fase 3 – a água: é o agente da purificação. O buscador deve nesse momento declinar de suas vestes artificiais para mergulhar humildemente nas águas purificadoras. Ele sobretudo não quer mais perder de vista a Joia que acaba de divisar ao longe, mas que na verdade estava escondida no fundo dele mesmo e que ele não havia reconhecido – ou talvez jamais percebido. Ele a havia coberto com imundícies de suas experiências inconsequentes. É chegado o momento da grande limpeza. Ele trata de corrigir seus erros e de sobretudo exprimir suas qualidades opostas. Em outras palavras, ele alivia sua terra removendo as ervas daninhas e a purifica e vivifica pela água.

 

A fase 4 – o fogo: o fogo evoca a Iluminação, a senda de evolução para sua luz interior e a Luz do Deus de seu coração. O aspirante logo toma consciência da grandeza de sua própria luz e, na mesma oportunidade, da imensidade de sua responsabilidade. Ele tem então a possibilidade de participar em plena consciência do brilho da Luz Maior. Seu ser integral é a verdadeira Pedra Filosofal. Ele olha a sociedade com mais acuidade e compreende melhor que qualquer outro a necessidade de ajudar seu próximo a escalar a montanha. Seu papel na organização da sociedade e na instauração da paz sobre a Terra, enfim, lhe é revelado em toda a sua evidência.


A Rosa

 

Ela constitui o desenlace das fases precedentes e, enquanto símbolo da Pedra Filosofal, ela é considerada por alguns alquimistas como o quinto princípio. Ela é progressivamente percebida pelo estudante que cada vez mais se beneficia de sua irradiação, na medida em que sublima os quatro princípios – em outras palavras, à medida que extrai desses princípios as qualidades necessárias para iluminar as sombras de sua personalidade. Os quatro princípios estando dispostos em cruz, podemos dizer que o candidato à Iniciação faz muitas vezes a volta da Cruz aproximando-se cada vez mais da intersecção, ou seja, na direção da Rosa. Eis a razão pela qual a Rosa representa o homem realizado – o  adepto –, aquele que atingiu a Rosa graças à Cruz: “Ad Rosam per Crucem”.

Morto na Cruz, o iniciado renasce adepto na Rosa. É o nascimento numa nova dimensão. O ser que chega a esse nível de consciência sabe que essa realização é nem um fim em si e nem o objetivo de sua vida. Ele regressa então ao seio da humanidade – lá onde cada um de seus congêneres ainda carrega sua cruz – para difundir o perfume e a luz de sua Rosa. Ele encoraja e apoia os esforços empreendidos por outros buscadores. De seu plano de consciência, ele insufla uma nova dinâmica a todos os progressos necessários ao homem e à sociedade. No serviço, ele faz com que a sociedade e a própria natureza usufruam da Pedra Filosofal que seu ser plenamente se tornou: “Ad Crucem per Rosam”.

Aquele que dessa forma percorreu o caminho operou a união do pai e da mãe – o pai simbolizado pela cabeça e mãe simbolizada pelo coração; ou ainda a união do Rei e da Rainha. O advento da Rosa confere a esse percurso uma dimensão que poderíamos comparar à da encarnação do Verbo. A Rosa simboliza a energia divina no homem e o reflexo de Deus em seu coração. A tradição cristã evocaria também a ressurreição do Cristo no coração do cristão. O que seria da Cruz sem a Rosa? O que seria da tradição cristã sem a ressurreição do Cristo? A Rosa no coração do homem é o espelho no qual Deus se revela. E podemos afirmar, seguindo Hermes Trimegisto: “Aquilo que está em cima é como o que está em baixo e aquilo que está em baixo é como o que está em cima, para operar os milagres da coisa única”.


O caminho no cotidiano

 

A análise desse percurso faz emergir duas ideias principais que podem ser sintetizadas da seguinte maneira:

·         

A primeira ideia vai do mais denso ao menos denso. O buscador deve se desembaraçar progressivamente dos hábitos que o estorvam a fim de elevar mais facilmente sua consciência para os planos espirituais. Assim como a energia divina no momento da Criação procedeu por meio da densificação progressiva – inicialmente pelo fogo, depois pela água, em seguida pelo ar e finalmente pela terra –, assim também o homem, por seu retorno à Unidade, caminha no sentido inverso, indo na direção da menor densidade, ou seja, da terra para o ar e em seguida para a água e finalmente para o fogo.

 

A segunda ideia vai do exterior para o interior. A busca do estudante de misticismo deve conduzi-lo progressivamente a compreender que aquilo que está em cima é como o que está em baixo e que, na realidade, não existe nem alto nem baixo. Ele sabe além disso que há mais a ser combatido na esfera da sublimação de suas próprias falhas do que contra inimigos exteriores. Este é o sentido das provações às quais são submetidos todos os candidatos à Iniciação no antigo Egito, pois o maior inimigo do homem é a parte mais sóbria de sua própria personalidade.

 

Se conviermos que o desenlace do caminho para o ser interior requer muitas encarnações, podemos, todavia, observar, no decurso de uma vida, ciclos de evolução inferiores que sintetizam por vezes o caminho inteiro. Na escala de uma vida, pode-se definir assim a vereda do estudante de misticismo:

 

• A terra oferece uma tomada de consciência da ignorância e de suas consequências. As insatisfações das respostas apresentadas às questões essenciais levam-no a bater às portas de uma escola de Mistérios.

 

• Pelo ar se manifesta o compromisso de elevar sua consciência a fim de ser um discípulo digno de receber a Luz de seus Ancestrais e dos Mestres.

 

• A água permite a aceitação com humildade do autoquestionamento e o despir-se de conhecimentos obsoletos em favor de um ensinamento impregnado pela Iniciação.

 

• O fogo inclina ao serviço. Este serviço é a disposição de difundir a Luz recebida do Divino e dos Mestres para o bem da humanidade.

 

Testemunho egípcio
 

Sabemos da importância que o antigo Egito atribuía à Iniciação e de quais meios o país de Thot Hermes se serviu para dar um testemunho duradouro dos tesouros que a própria natureza lhes havia concedido. Não ignoramos tampouco que o Egito fundou os princípios da Iniciação sobre o arquétipo que acabamos de examinar, a saber, a progressão simbólica do iniciado nas energias dos quatro princípios. Hermes Trimegisto, em sua Tábua de Esmeralda, descreve de modo simples e sem ambiguidade aquilo que ele considera como o agente na base de toda a Criação: “O Sol é seu pai, a Lua é sua mãe, o vento a levou para seu ventre e a terra é sua nutriz”. Eis outra maneira de revelar a fundação quaternária e oculta da Criação: o “Sol” pelo fogo, a “Lua” pela água, o “vento” pelo ar e, evidentemente, a “terra nutriz” pelo princípio terra.

Além disso, as muitas mensagens que a Esfinge da planície de Gizé dispõe para a meditação da humanidade há alguns milênios constituem um excelente testemunho da magia desses princípios – a mais alta das magias – que não é outra senão a da transmutação de nossa própria personalidade.

 
Tradução: Raul Passos. Publicado originalmente na revista “Rose-Croix” nº 246.
 

REFERÊNCIA
LAGO, Serge-Henri. O caminho da rosaIn: O Rosacruz. n. 287. verão 2014. Curitiba: AMORC-GLP, 2014. p. 40-45.

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