Excerto
do capítulo Iniciação no Jardim e Iniciação na Cidade, da obra O Discurso de
Sintra, de Rémi Boyer
A Rosa-Cruz é o protótipo da
Iniciação no Jardim, que se distingue da Iniciação na Cidade, da qual a
Maçonaria é a expressão mais visível e a mais invasora. É no mínimo paradoxal,
e até um contra-senso, que muitas sociedades iniciáticas construídas sobre o
modelo hierarquizado da Maçonaria se reivindiquem da Rosa-Cruz.
Esta distinção, Iniciação no
Jardim, Iniciação na Cidade, não deixa de lembrar a oposição clássica entre a
filosofia do Jardim, de que a principal figura é Epicuro, e a filosofia na
Cidade, incarnada por Platão, mas não pode ser reduzida apenas a esta oposição.
Lembremo-nos também que Descartes – que não foi o único – quis negar que a
Natureza fosse uma deusa. A Iniciação no Jardim não é cartesiana, mas também
não afirma que a Natureza seja uma deusa; entre as duas, faz uma escolha por
livre vontade de encantamento.
A Iniciação na Cidade assenta
na pavimentação, no trabalho da pedra, na construção pedra sobre pedra, na
repetição da forma, no seu apuramento, na sua rectificação com vista à
edificação.
A Iniciação no Jardim é uma
arte da tecitura, da malhagem, da trama, da criatividade, da mutação e da
travessia das formas.
A replicação está no âmago da
Iniciação na Cidade, que visa a permanência das formas, a sua duração, o seu
prolongamento, a sua reprodução idêntica. Uma tal iniciação releva da imitação,
mas voltaremos a este ponto. O que é antigo é celebrado. Este processo
iniciático está inscrito na memória, na cultura na temporalidade. O processo
iniciático posto em prática no Jardim é, pelo contrário, uma celebração do
instante, do imediato, um reconhecimento do efémero, da impermanência e do
intemporal. (…)
O Jardim é aberto, mas ao
passo que o iniciado da Cidade se mostra e se demonstra, o iniciado do Jardim
oculta-se. “Para vivermos livres, vivamos ocultos”, diz o Mestre Jardineiro.
Ninguém sabe exactamente onde começa e onde acaba o Jardim. Ele manifesta a
Liberdade que caracteriza o Ente em si. A errância é aí encorajada. No Jardim,
não há objecto iniciático em si e objecto não-iniciático. Qualquer situação
pode beneficiar de um tratamento iniciático. Não é a situação externa e interna
que importa, mas sim a relação de consciência mantida com a situação, que a
torna a própria matéria da Obra. Privilegia-se a prática. “Se a doutrina te
incomoda, rejeita a doutrina, mas aprofunda a prática”, sugere ainda o Mestre
Jardineiro. (…)
A aparente oposição entre a
Cidade e o Jardim é o fruto do erro perceptual dualista. Convém substituir-lhe
o princípio de uma articulação induzida pela própria etimologia da palavra “iniciação”,
e instaurar assim uma dialéctica entre praxis
e poiesis. A palavra “iniciação”
provém do latim initiatio, que, por
sua vez, na época greco-romana, traduzia a palavra grega telete. Enquanto a palavra initiatio
expressa a ideia de passagem, telete
veicula a ideia de finalização, de consumação. Enquanto initiatio se baseia na imitação e na repetição, que é o que fazem
os ritos, telete assenta na “libertação
da própria libertação”, usando a expressão de Nikos Kazantzakis. Qualquer via
começa onde acaba a imitação e a repetição, onde se apaga a organização
iniciática. Ela é realmente um abandono das formas, incluindo das formas
sagradas que são os ritos, para penetrar o Grande Real.
FONTE:
Disponível em: < https://incoerismo.wordpress.com/2012/05/09/iniciacao-no-jardim-e-iniciacao-na-cidade/#more-176>.
Acesso em: 13 jun. 2015.
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