domingo, 14 de junho de 2015

INICIAÇÃO NO JARDIM E INICIAÇÃO NA CIDADE























 

Por Rémi Boyer

 

Existe em Gilles Deleuze esta ideia de que a arquitectura é, a um tempo, uma arte e uma máquina de guerra. A Arquitectura é uma máquina de guerra quando é normativa, quando impõe o conformismo, quer este seja totalitário ou democrático. Procede-se aí um rapto do devir do ser, a uma captação da energia do ser, até ao seu esgotamento. Mas a arquitectura é também uma arte, e até mesmo uma arte iniciática, quando ela conduz o indivíduo a reaproximar-se de si, do seu próprio ser, da sua própria realidade intrínseca, que é também liberdade.

 A máquina de guerra é alienante, está enfeudada à relação entre o arquitecto e o príncipe, entre o criador e o poder. A arquitectura como arte visa uma intensificação de certos aspectos do espaço. Segundo a nossa relação com o espaço, cairemos na maquinização guerreira ou na arte iniciática.

 No tempo de Newton e de Descartes, um debate opunha aqueles que consideravam o espaço como um dado, independente dos objectos que o habitam, e aqueles que pensavam que o espaço era constituído pelas relações entre os objectos. A primeira hipótese levou a melhor pois ela permitia aplicações matemáticas e físicas que a segunda não permite. Todavia, a segunda é de um grande interesse iniciático, tanto no plano de uma arquitectura interna como no de uma arquitectura externa, os dois planos sendo inseparáveis. O externo é a projecção do interno mas o externo nutre o interno através de um efeito espelho permanente. Ao intensificarmos certas relações entre os objectos, certas linhas, nós modificamos o mundo.

 Através da linguagem, eu crio, eu constituo, eu organizo o mundo, um espaço externo e um espaço interno, um tempo externo e um tempo interno, um «Outro» fora, um «Outro» em mim mesmo, uma língua externa, uma língua interna (note-se que o criador é bilingue na sua própria língua). Contudo, tudo o que se apresenta – seja o «Outro», seja um acontecimento, uma sensação, um sentimento, um pensamento, ausentes ou presentes – é um objecto no seio da consciência. O interno ou o externo estão juntos no seio da consciência. A separação não existe, apesar de assim aparecer.

 George Steiner ensina-nos que a arquitectura deveria fazer parte do novo quadrívio, juntamente com a música, as matemáticas, e as ciências da vida. Durante uma conferência, ele confidenciou que, para ele, actualmente, a arquitectura era verdadeiramente a única arte criadora e inovadora.

 Parece-me que a arquitectura está destinada a reconciliar o homem consigo próprio, com o mundo e, talvez, com os deuses. Ela é uma arte terapêutica no sentido antigo do termo, a therapia. Ela une o Céu e a Terra, mas também a a Terra e a Água, a Água e o Céu, por vezes o Subterrâneo com o Céu. Dou, não por prova, pois a prova é impossível, mas por indício, várias realizações exemplares: aquelas que contemplam o Tejo quando chegamos a Lisboa por mar; os desafios iniciáticos de Sintra, da Pena, o Palácio da Vila, ou a Regaleira, entre outros; muito recentemente, o novo Museu das Civilizações da Europa e do Mediterrâneo, o MuCEM de Marselha, do arquitecto Rudy Ricciotti; e, quanto ao que nos reúne aqui hoje, a obra espantosa de Raul Lino.

 Se a Arte é iniciática e se a arquitectura é Arte, logo, a arquitectura é iniciática, o que é demonstrado desde há séculos pela ciência tradicional dos construtores, e particularmente, pelo Compagnonnage e seus arcanos. Para melhor apreender o processo iniciático até à sua finalização, que será sempre não dual, fui levado a distinguir entre Iniciação no Jardim e Iniciação na Cidade. Será interessante observar se esta distinção tem sentido no campo da arquitectura.

 Esta distinção, Iniciação no Jardim, Iniciação na Cidade, não deixa de lembrar a oposição clássica entre a filosofia do Jardim, de que a principal figura é Epicuro, e a filosofia na Cidade, incarnada por Platão, mas não pode ser reduzida a esta oposição. Lembremo-nos também que Descartes (que não foi o único) quis negar que a Natureza fosse uma deusa. A Iniciação no Jardim não é cartesiana, também não afirma que a Natureza seja uma deusa; entre as duas, faz uma escolha por livre vontade de encantamento.

 

* * *

 

A Iniciação na Cidade assenta na pavimentação, no trabalho sobre a pedra, na construção, pedra após pedra, na repetição da forma, no seu apuramento, na sua rectificação com vista à edificação.

 A Iniciação no Jardim é uma arte da tecedura, da malha, da teia, da criatividade, da mutação e da travessia das formas.

 A replicação está no âmago da Iniciação na Cidade, que visa a permanência das formas, a sua duração, o seu prolongamento, a sua reprodução idêntica. Semelhante iniciação releva da imitação, já voltaremos a este ponto. Nela se procede à celebração do antigo. Este processo iniciático está inscrito na memória, na cultura, na temporalidade.

 O processo iniciático posto em prática no Jardim é, pelo contrário, uma celebração do instante, do imediato, um reconhecimento do efémero, da impermanência e do intemporal.

 O modelo de organização iniciático na Cidade é a Loja, de onde vem a palavra «alojamento». Note-se que os iniciados se deslocam para a Loja. Deslocam-se para um lugar fixo que encarna o objecto do seu desejo espiritual. A Loja acolhe o que Louis-Claude de Saint-Martin designou como «os Homens de Desejo»2, aqueles em quem despontou o desejo de se conhecerem a si próprios.

 A organização da Loja é fortemente hierarquizada em torno da autoridade artificial das funções. A transmissão no seio da Loja é piramidal. A Loja é o lugar onde são propostos os saberes tradicionais. A Loja é o lugar do saber e da Experiência. A palavra «alojada» circula de cima para baixo e de baixo para cima. A deslocação de Loja em Loja está submetida ao controlo hierárquico.

 Os mecanismos de satisfação dos desejos gregários, dos desejos de pertença e de reconhecimento são constitutivos da vida da Loja e dos seus membros. A referência externa é dominante, exprime-se pela Regra, e a linguagem está impregnada de operadores modais de necessidade (eu devo; eu tenho de; é preciso que...). O saber é esperado vindo do outro, de fora, ainda que por vezes seja «de fora em si mesmo». Esta tendência é de tal ordem que os disfuncionamentos correntes da Loja se traduzem pela procura da arbitragem ou do reconhecimento profano. Esta organização acaba por impossibilitar o Companheirismo tradicional, quando, no entanto, é isso que justifica a Iniciação na Cidade. A realização da Obra-prima é muitas vezes esquecida, ficando-se apenas pelo conceito de obra-prima, da sua ideia.

 A organização no Jardim é uma desorganização que deixa emergir uma harmonia natural, baseada sobre uma hierarquia movente de competências, em perpétua transformação, para se adaptar ao carácter efémero dos fenómenos. O Jardim está onde está o iniciado. Os habitantes do Jardim trazem o jardim neles próprios. Eles são o Jardim, sem o constituírem. O encontro é o lugar da partilha do Conhecimento e da «Imperiência». A transmissão é não-hierárquica e silenciosa. O primado do Companheirismo é afirmado. A Obra-prima é realizada. A alternativa nómada e a circulação das elites constituem uma modalidade fundamental da Iniciação no Jardim. Por «elite», não devemos entender uma «meritocracia» estabelecida pelo fazer e pelo ter, mas antes aqueles que conheceram a eleição mistérica conferida pelo sufrágio do Silêncio. Os desejos de pertença e de reconhecimento estão ausentes, só importa a realização da sua própria natureza, original e derradeira.

 A Iniciação na Cidade está estabelecida em torno de constrangimentos. A doutrina é privilegiada como objecto do saber. A Cidade estabelece, aliás, listas de objectos iniciáticos e não-iniciáticos (como o alimento, a tecnologia, a sexualidade…) tal como distingue o profano e o sagrado, nos espaços exteriores como nos espaços interiores. A Cidade cria espaços fechados, regras de passagem, portas e becos. Estamos no mundo das antinomias, onde reina o uso aristotélico da linguagem3. A Iniciação na Cidade suscita o desejo mimético. O objecto iniciático é desejado por imitação. O irmão mais velho, ou a irmã mais velha, aparece na sua potência mediadora. O iniciador é um mediador.

 A Iniciação no Jardim não rejeita de maneira nenhuma o desejo. Axializa-o. É o desejo em si, um desejo sem objecto. O iniciador é despertador. Ele desperta-nos para aquilo que É, ou seja, para o Si. Em ambos os casos, não existe transmissão, pelo menos no sentido habitual de «transferência» temporal ou até espacial de um legado iniciático. O conceito de «transmissão tradicional» é demasiadas vezes um apego da «pessoa», do «eu», do ego, que quer ligar e ligar-se em vez de desligar. Este enviesamento perceptual secundário pode ser temporariamente útil, mas não merece a hipertrofia que lhe conferem várias correntes tradicionais, que vivem coladas a formas dualistas.

O Jardim é aberto, mas enquanto o iniciado da Cidade mostra-se e demonstra-se, o iniciado do Jardim oculta-se. «Para viver livres, vivamos ocultos», diz o Mestre Jardineiro. Ninguém sabe exactamente onde começa e onde acaba o Jardim. Ele manifesta a Liberdade que caracteriza o Ser em si. A errância é aí encorajada. No Jardim, não há objecto iniciático e objecto não-iniciático. Qualquer situação pode beneficiar de um tratamento iniciático. Não é a situação externa e interna que importa, mas sim a relação de consciência mantida com a situação, que a torna a própria matéria da Obra. Privilegia-se a prática. «Se a doutrina te incomoda, rejeita a doutrina, mas aprofunda a prática», sugere ainda o Mestre Jardineiro. A iniciação, desengano integral, quer-se uma ortopraxia, mais do que uma ortodoxia.

 A Cidade promove as organizações iniciáticas, criações humanas, veículos imperfeitos e ecos muitas vezes longínquos das vias iniciáticas, que são, na sua essência, «não humanas», entenda-se «não condicionadas».

 No Jardim, o ensinamento é como o bater de asas de uma águia. Uma palavra, um olhar, uma alusão, um silêncio, uma presença, um gesto, uma imobilidade despertam para o Grande real.

 Na Loja, o ensinamento vem ainda carregado de procedimentos, de demonstrações, de formas, de construções simbólicas, todas necessárias. A Loja é por isso um lugar de memória, um espaço envolvente no qual tudo conta, tudo simboliza, tudo significa, por vezes até em excesso, podendo fazer esquecer, pela contracção da identidade e da nominalização, que o Ser é o seu próprio sentido.

 Na Loja, a praxis, aquilo que fazemos sem conhecer claramente a finalidade e na ignorância das consequências reais – uma prática esconde muitas vezes uma outra, inaudível e não recebível pelo ego – é de suma importância. No Jardim, a praxis cede o lugar à poiesis4, a acção que faz coincidir a origem e o fim, convergindo-os para o não-fazer.

 Com Lucian Blaga5, poderíamos ainda dizer que a Iniciação na Cidade é modeladora. Ela ensina por imitação. A sua injunção é: «Sê como eu! Conforma-te ao modelo». A iniciação no Jardim é, pelo contrário, catalítica; ela ensina: «Sê apenas tu próprio! Deixa advir o que tu és».

 Este esboço rápido é suficiente para que adivinhemos a natureza dualista e gradativa da Iniciação na Cidade, e a natureza não dualista e subitista da Iniciação no Jardim.

O iniciado na Cidade é um conquistador, inscrito no esforço, por vezes em sobresforço; quer progredir, evoluir, atingir o divino, etapa após etapa. É uma visão prometeica, típica da «pessoa», do «eu», do ego fascinado pelo devir. O iniciado na Cidade está ainda sob influência da «pessoa»; o Si ainda está oculto. Perdido no duplo constrangimento da Cidade de Deus e da Cidade dos homens, o iniciado na Cidade cai por vezes no facto faustiano.

 A Iniciação na Cidade é artesanal, guerreira e sacerdotal. Encerra por isso a possibilidade de uma corrupção totalitária, bastando, para que ela surja, que a impostura do ego se imponha sobre a realeza do Ser. Pode revelar-se viciante.

 A Iniciação no Jardim é «impremeditada» ao passo que a Iniciação na Cidade é «pós-meditada», em particular na sua implementação dos símbolos vivos activados pelo ritual. A primeira não deixa qualquer rasto, a segunda inscreve-se no rasto e prolonga-o. O iniciado no Jardim avança frente ao Sol sem que qualquer sombra seja projectada no solo. Nele não há ninguém.

 O iniciado no Jardim é um poeta, um fazedor – palavra que define o alquimista –, um profeta do não-tempo, um teósofo. Ele sabe que tudo está já realizado, que ele não está em devir. Ele é o Absoluto; ele É. A Iniciação no Jardim não é conquistadora, é libertária, é uma «Recordação», segundo Hermes, uma «Reintegração», segundo Martines de Pasqually, um «Reconhecimento» da sua Liberdade Absoluta, segundo Mestre Eckhart, no Ocidente, bem como para Abinavagupta, no Oriente. O iniciado no Jardim está des-mascarado, é acéfalo. Nesse sentido, o iniciado no Jardim opõe-se ao profeta. É um hipo-feta, palavra forjada por Rabelais para designar aquele que se recorda do que já passou, do antigo. Mas este «antigo» é mais antigo do que o antigo, é original; é por isso que ele é totalmente novo e vanguardista, na sua expressão como na sua impressão.

 No quadro das filosofias não dualistas, distinguimos correntemente quatro relações com o Real6. Recordemo-las brevemente:

 1. Se o demandador compreende imediatamente que ele é o Absoluto, a demanda está terminada, aqui e agora, para sempre; ela nem veio a ter início. Tudo está cumprido.

 2. Se ele não compreende o Absoluto, mas percebe o jogo da Consciência e da Energia, de Xiva/Shakti, da Absolutidade/Seidade, ele joga o jogo sem se deixar ludibriar.

 3. Se o jogo da Consciência e da Energia continua a não ser conhecido pelo iniciado, então, ele respeita os ritos e as regras (a Regra absoluta sendo a ausência de regra e a liberdade infinita).

 4. Se ele não compreende os ritos, então ele põe-se ao serviço da alteridade, ele serve o seu próximo, que ele crê ser outrem, quando o verdadeiro «próximo», mais uma vez, é aquele que surge em si próprio, o Si; literalmente: «aquele que se aproxima».

 Note-se que no seio destas quatro relações aparecem quatro níveis de encontro:

 1. O verdadeiro encontro, o único encontro, é «não dual». Nenhuma separação, apenas a Unidade. O próprio conceito de «encontro», ou qualquer outro conceito, está ausente da consciência não dual. Há plenitude. Nem objecto, nem sujeito.

 2. O encontro «dual / não-dual» é amor livre, imediato, não condicionado, manifestado sem intenção numa dualidade não vivida como tal. Há «conhecimento» pelo espírito, não há um «saber». O objecto e o sujeito são percebidos no interior da consciência.

 3. O encontro «dual consciente» apoia-se no jogo da consciência e da energia. A visão do jogo energético das compensações no seio da consciência dual é clara e a raiz do sofrimento surge na relação fictícia entre o sujeito e o objecto. Existe, no entanto, intenção e adesão da «pessoa».

 4. Por fim, a forma mais relativa do encontro reside na consciência «dual identificada» com o sujeito. Este encontro relativo nasce de uma «pessoa» com outra «pessoa» e não de «Ser» com «Ser». É um encontro social e um acto de cidadania.

 Já tivemos a ocasião de desenvolver de diferentes maneiras este quadrante, que não deve ser representado por uma escala, mas antes por um labirinto multidimensional e mutável. Este quadrante, «altruísmo; ritos; jogo da Consciência e da Energia; Absoluto», pode ser expresso por outros termos. Por exemplo:

 • forma; símbolo; método; Despertar. Ou, no domínio da terapia:

• medicamentação e cirurgia; espagíria e medicina pelas plantas; alquimia e terapia energética; Despertar, que é a última cura.

• Por fim, de forma mais provocante: a tolice, que é o facto de crer compreender e passar ao acto; a idiotice, antídoto da tolice, que consiste em não compreender nada, bloqueio do pensamento, prelúdio do silêncio; depois, a loucura controlada; e, finalmente, o Despertar. Em qualquer dos casos, a Liberdade ou a Morte.

 É este mesmo quadrante que está representado na Tradição arturiana pelas três Cavalarias do Graal. O Homem (ou a mulher) vulgar que, à custa de preparação e de mérito, se torna Cavaleiro, é introduzido numa Cavalaria terrestre, depois numa Cavalaria espiritual, por fim numa Cavalaria celeste. A essas três Cavalarias correspondem três conteúdos alquímicos diferentes do Graal7.

 Fernando Pessoa expressa a mesma ascensão através das três mortes e três saídas do túmulo. O homem condicionado, o homem vivido, o «cadáver adiado», descobre a Lei da Natureza. Ele é Hiram, morto para o mondo profano, reerguido do túmulo pela descoberta dos três assassinos que representam o triângulo arcaico: «poder - território - reprodução»8. Hiram parte à procura da Palavra Perdida, da qual ele tem o pressentimento. Ele torna-se Christian Rosenkreutz na abertura do seu livro, expondo o «Livro T», complemento do Liber Mundi. Christian Rosenkreutz conhece a Palavra mas apenas através do seu Símbolo. Ele intui-a. É a segunda morte, a morte para o mundo sagrado condicionado. Abre-se então um terceiro túmulo, vazio, desta vez. O demandador, pelo casamento divino, torna-se Cristo. Ele é a Palavra Livre.

Podemos ainda pensar de uma outra forma este processo que conduz a um não-processo. O ser humano está colado ao «conformismo», um conformismo que não é para ser entendido no sentido habitual, mas como toda e qualquer identificação ou adesão às formas. Sob a impulsão do Si, o ser humano revolta-se contra esta alienação. Essa revolta vai levá-lo a entrar em dissidência. Distinguiremos a dissidência pessoal, horizontal, da dissidência iniciática, vertical. A primeira opera uma revolução no seio da «pessoa», continua a ser egoica e temporal. A segunda opera uma «desvolução», ou seja, a saída de toda a evolução. Com efeito, a evolução é uma outra palavra para a temporalidade. Se a revolução «egoica» conduz invariavelmente a um novo conformismo e a novas identificações que reciclam os condicionamentos, a desvolução conduz à liberdade absoluta do Ser, à realização do Si.

 Em arquitectura, talvez pudéssemos distinguir: uma arquitectura profana; uma arquitectura sagrada e simbólica; uma arquitectura imaginal (como aquela do «entre-dois-mares», de Sohravardi), lugar das teofanias, nomeadamente as do Quinto Império, do Encoberto e do Espírito Santo; e, finalmente, uma arquitectura metafísica, uma arquitectura sem arquitectura. A arquitectura profana gera pessoas condicionadas, os «cadáveres adiados» de Fernando Pessoa; a arquitectura sagrada apela ao indivíduo, à nossa parte indivisível, inalienável, aquela que permanece; a arquitectura imaginal apreende e precipita na forma as estruturas cosmogónicas, o plano de Deus, ou o plano do Grande arquitecto dos Mundos; finalmente, a arquitectura metafísica, que seria uma inconcebível liberdade.

A Iniciação na Cidade é geradora de mudanças favoráveis à «pessoa», mudança de comportamentos, de critérios, de valores, de crenças. A iniciação no Jardim traz consigo uma mudança de mudança radical, pois a ideia de mudança desaparece na experiência da Seidade. Se a iniciação na Cidade pode ser apreendida como uma mudança de paradigma, a iniciação no Jardim instaura um estado sem paradigma.

 Para sair do labirinto, isto é, da organização, da representação, da história, da evolução e da temporalidade, para escapar ao condicionado e ao fenoménico, às relações entre os objectos exteriores (de Spinoza), temos de encontrar a passagem, a Mancha de Dom Quixote.

 A chave da iniciação, a Linha de Silêncio que convém franquear pelo abandono, por um salto no vazio, situa-se nessa passagem sem porta entre os ritos e o jogo divino, da imitação à invenção, neste salto «quântico» entre dual e não dual, entre a Cidade e o Jardim.

 A aparente oposição entre a Cidade e o Jardim é fruto do erro perceptual dualista. Convém substituir-lhe o princípio de uma articulação induzida pela própria etimologia da palavra «iniciação», e de instaurar assim uma dialéctica entre praxis e poiesis. A palavra provém do latim «initiatio», que, por sua vez, na época greco-romana, traduzia a palavra grega «telete». Mas enquanto a palavra initiatio expressa a ideia de passagem, telete veicula a ideia de finalização, de consumação. Enquanto initiatio se baseia na imitação e na repetição, que é o que fazem os ritos, telete assenta na «libertação da própria libertação», para usar aqui a expressão de Nikos Kazantzaki. Qualquer via começa onde acaba a imitação e a repetição, onde se apaga a organização iniciática. Ela é realmente um abandono das formas, incluindo das formas sagradas como o são os ritos, para penetrar no Grande Real.

 O caminho da iniciação prevê uma única inversão, passagem para o País do Silêncio onde a linguagem, a memória, os condicionamentos, os tempos, as formas, o múltiplo, o ter e o fazer, o reino do triângulo «poder – território – reprodução», cedem todo o lugar ao Ser, ao Intemporal, ao indizível, ao Um, à plenitude do Grande Nada. Esta passagem, em que tudo se inverte, assinala a renúncia à imitatio, para tomar a via da inventio, em que cada gesto, cada sopro, cada instante são, ao mesmo tempo, totalmente novos, totalmente consumados, totalmente únicos.

 O iniciado realizado é um ser nu e livre, desnudado e liberto de todas as sobreposições culturais e cultuais, de todos os condicionamentos humanos, é um ser em silêncio, liberto da linguagem, veículo privilegiado dos condicionamentos. O iniciado não tem qualquer necessidade de nomear a Coisa. Ele é a própria Coisa. Ele é o próprio jogo da energia e da consciência, um jogo sem «eu», um jogo mudo sem bom nem mau pois a oposição obsessiva entre o «bem» e o «mal», característica da Cidade e das suas leis liberticidas, dissolve-se na Imperiência da Liberdade Absoluta.

 Note-se que trata-se de passar de um labirinto a outro, do labirinto da Cidade, do qual convém sair, ao labirinto do Jardim que se desenvolve na Consciência livre9. Há identidade entre a ilusão e o Real. Esses dois labirintos apenas se diferenciam do ponto de vista da «pessoa» apegada ao dualismo. No seio da consciência não dual, esses dois labirintos são idênticos e reconhecidos como sendo da natureza do vazio. Eles estão, e não estão, na periferia da consciência.

 A separação, ilusória, que pode exacerbar-se até tornar-se numa oposição, entre a Iniciação na Cidade e a Iniciação no Jardim, aparece apenas na experiência dual da Cidade que, pela sua construção, separa, constitui um «fora» e um «dentro». Todavia, a Cidade cria jardins no seu seio. Públicos, privados ou secretos, esses jardins, evocações do jardim original bem como do jardim derradeiro, são de facto lugares de intimidade, de internidade, onde o passante pode aproximar-se da sua própria essência livre. Note-se que algumas bibliotecas assumem plenamente a função de jardins iniciáticos. Pensamos nomeadamente na extraordinária Biblioteca Marciana de Veneza e na espantosa biblioteca do Palácio de Mafra, autênticos parênteses sagrados no rumor dualista.

 A Cidade permanece um lugar fechado que confina a consciência, a reduz, por identificação, à «pessoa». O Jardim é um estado de consciência sem lugar. Para o iniciado da Cidade, na perspectiva da «pessoa», do ego, esses dois mundos, Cidade e Jardim, são radicalmente distintos. Contudo, a Cidade iniciática, lugar das necessidades e das restrições, abre sobre o Jardim iniciático, não-lugar das possibilidades infinitas. Para o iniciado no Jardim, no coração do Ser, no coração da plenitude do Vazio, esses dois mundos são um e não são. Um é o Outro. O Outro é o Um. Nem Um nem Outro. A ilusão e o Real, o relativo e o Absoluto são um só.

 

* * *

 

O processo Construir – Habitar - Pensar e Pensar-se, no eixo da temporalidade e no eixo da espacialidade, pode conduzir ao Ser, ao Infinito, à Luz, pode reaproximar-nos da nossa axialidade solar ou, pelo contrário, despedaçar-nos, reduzir-nos, aniquilarmo-nos.

 O arquitecto, o artista, têm uma altíssima responsabilidade na expressão dessa tensão criadora entre Cidade e Jardim. Parece-me que Raul Lino soube orientar a sua obra da Cidade para o Jardim, das periferias para o centro, procurando trazer o habitante, enquanto observador e testemunha, para «um mais elevado sentido». Ele fê-lo, creio eu, com elegância. A elegância, em arte iniciática, pode ser definida como a mais pequena mudança susceptível de gerar o maior efeito libertador para o ser. É um movimento criador, quase invisível, que cria uma divina surpresa.

 Quando eu deambulo, como profano e como poeta, no labirinto das criações de Raul Lino, ele parece-me ser um adepto da arquitectura imaginal. Ele concebe num entremeio axial e constrói num entremeio horizontal e temporal, a partir de um centro único. Ele é simultaneamente mediador e passador, passador de um mundo fechado para um mundo aberto, da Cidade para o Jardim. No seu programa de construção de escolas, ele soube conciliar funcionalidade e beleza, racionalidade e imaginação, educação e iniciação. A sua vontade inclusiva levou-o a abrir os espaços para acolher o mundo, espaços nos quais os objectos determinam um centro onde o sujeito pode reencontrar-se consigo mesmo, tanto no isolamento como no encontro com o outro.

 Esse entremeio, que inclui em vez de separar, é aparente na Casa de Santa Maria de Cascais, que une o Oceano e a Terra; na Casa dos Patudos, que une vila e a natureza; na Casa da Quinta da Comenda, que manifesta um ternário sagrado entre o Céu, a Montanha e o Oceano. Não é o Teatro Tivoli um templo onde o aparecimento do mundo vem descobrir-se no espelho da cena depois de lhe ter polido o ângulo até fazer uma amável redondeza?

 A Casa dos Penedos de Sintra é como uma janela entre a Montanha e a extensão vasta que alcança o Oceano, entre o fechado e o aberto, o interno e o externo, o ventre e o espírito. Em inglês, é habitual designar-se a janela por «window», e, em espanhol, por «ventana»; ambas as palavras aludem ao vento, a janela pára o vento, protege do exterior. Em italiano, «finestra», em alemão, «fenster», e em francês, «fenêtre»; a palavra evoca, pela sua sonoridade, «la fin de l'être», o fim do ser, o fim do lugar do ser. A referência é interna, ao passo que com «window», a referência é externa. Mas em português, diz-se «janela». A palavra evoca Janus bifronte, duplo rosto, duplo olhar que reúne, ou, talvez, o entremeio, o imaginal. As casas de Raul Lino são exigentes. Elas não são ninhos, não são casulos para onde nos retiramos e nos cortamos do mundo; ou então, são ninhos de águia, exigem sempre a confrontação com o infinito visando a coincidência apaziguada dos contrários.

 A dimensão do toque parece-me caracterizar as obras de Raul Lino. As suas casas tocam-nos e convidam ao toque, como se ele soubesse que o toque é o único sentido, que se prolonga em olfacto, gosto, visão pensamento. Penso, logo, toco. Sou tocado, logo, sou pensado. Esta casa torna-me mais vivo, pois ela enleva-me. Ela não está somente na minha consciência, eu estou vivo no seu olhar, no olhar desta casa. As casas de Raul Lino são vivas, procuram extrair-nos da tragédia da Cidade para nos levar rumo à tranquilidade e à sabedoria do Jardim. De um modo mais spinozista, eu diria que elas convidam a escapar à oscilação permanente do «eu» entre o pólo da tristeza e o pólo do júbilo para se orientar resolutamente para o pólo do júbilo. Segundo Spinoza, a tristeza interessa ao déspota e ao padre, pois ela mantém na submissão. Pelo contrário, o júbilo aumenta o poder de agir. As casas de Raul Lino veiculam os três níveis de conhecimento spinozista, o da relação com os objectos exteriores, o das noções comuns, e, por fim, o das essências singulares.

 Raul Lino inscreve nas suas obras uma ordem cósmica percebida no imaginal, mas ele sabe que essa ordem não é uma ordem, nem uma mera disposição, sem contudo ser uma desordem. É um convite à escolha, à autonomia, a dar a si próprio a sua própria lei e o seu próprio nome, é um convite à liberdade.

 Raul Lino é um despertador.

 Os arquitectos são despertadores.

 

2. Note-se que a própria natureza da consciência dualista é desejo e que a sua função é de produzir continuamente o que o filósofo Gilles Deleuze designa pela expressão «machines désirantes» [máquinas desejantes], cujo primeiro programa é a replicação. O «eu», a «pessoa», é uma máquina desejante e replicante. O homem de Desejo extrai-se da corrente e orienta a potência desejante e replicante rumo ao centro, ao coração. Estes são os primeiros passos de uma via cardíaca, que não deve ser confundida com as vias devocionais ou espiritualistas.
3. Para uma abordagem não aristotélica da linguagem, ver os trabalhos de Alfred Kozybski, fundador da Semântica Geral.
4. Trata-se de uma concepção não aristotélica da poiesis pois, para Aristóteles, a poiesis, acção de fazer em função de um saber, conduz à produção de um objecto exterior, uma obra, ao passo que a praxis não tem objecto fora dela própria, ela é a sua própria finalidade orientada para o bem. Os Gregos antigos davam à palavra poiesis, que deu o seu nome à poesia, o sentido de «trabalho», entendido como uma arte de tornar mais viva a matéria. Ela designa o trabalho do artesão ou do artista. A poiesis é a livre criação do ser humano, uma actividade não condicionada, não subordinada. A poiesis pressupõe uma tekne a não confundir com a simples tecnologia para produzir um objecto exterior. Não é o «fazer» mas sim um «não-fazer» que revela o Ser e pressupõe um domínio da Arte. As competências técnicas são menores e estão ao serviço de uma filosofia, de uma teosofia e de uma metafísica.
5. Sobre Lucian Blaga, ler, de Ioana Lipovanu, a grande especialista de Blaga, Un Menhir, În umbra minus-cunoa șterii [Um Menhir, à sombra do menos-conhecimento] publicado em Bucareste nas edições Herald em 2001. Uma tradução francesa estará disponível brevemente.
6. Este ponto já foi desenvolvido nomeadamente em Le Discours de Venise. Second manifeste incohériste, de Rémi Boyer, nas Editions Rafael de Surtis, 2007. ISBN 978-2-84672-108-0.
7. Ler L’Amour Courtois, les Cathares, le Graal, três ensaios de Claude Bruley, Editions Rafael de Surtis, ISBN 2-84672-068-1 e Editinter, ISBN 2-915228-93-0 e Le Grand Œuvre comme fondement d’une spiritualité laïque. Le chemin vers l’individuation de Claude Bruley, Editions Rafael de Surtis. ISBN 978-2-84672-139-4.
8. Ponto desenvolvido em La Franc-maçonnerie comme voie d’éveil. Co-edição Rafael de Surtis, 2006. ISBN 2-84672-067-3 e Editinter ISBN 2-915228-90-6. Publicado em português pelas edições Arcano Zero, com o título A Tradição Maçónica e o Despertar da Consciência (N.T.)
9. O Labirinto, de Lima de Freitas, Edições Arcadia, Lisbonne, 1975.

 

REFERÊNCIA:
BOYER, Rémi. Iniciação no Jardim e Iniciação na Cidade Arquitectura externa, arquitectura interna. Disponível em: http://www.sgdl-auteurs.org/remi-boyer/index.php/post/Inicia%C3%A7%C3%A3o-no-Jardim-e-Inicia%C3%A7%C3%A3o-na-Cidade-Arquitectura-externa%2C-arquitectura-interna. Acesso em: 14 jul. 2024.

                                                                    * * *

Excerto do capítulo Iniciação no Jardim e Iniciação na Cidade, da obra O Discurso de Sintra, de Rémi Boyer

A Rosa-Cruz é o protótipo da Iniciação no Jardim, que se distingue da Iniciação na Cidade, da qual a Maçonaria é a expressão mais visível e a mais invasora. É no mínimo paradoxal, e até um contra-senso, que muitas sociedades iniciáticas construídas sobre o modelo hierarquizado da Maçonaria se reivindiquem da Rosa-Cruz.
Esta distinção, Iniciação no Jardim, Iniciação na Cidade, não deixa de lembrar a oposição clássica entre a filosofia do Jardim, de que a principal figura é Epicuro, e a filosofia na Cidade, incarnada por Platão, mas não pode ser reduzida apenas a esta oposição. Lembremo-nos também que Descartes – que não foi o único – quis negar que a Natureza fosse uma deusa. A Iniciação no Jardim não é cartesiana, mas também não afirma que a Natureza seja uma deusa; entre as duas, faz uma escolha por livre vontade de encantamento.
A Iniciação na Cidade assenta na pavimentação, no trabalho da pedra, na construção pedra sobre pedra, na repetição da forma, no seu apuramento, na sua rectificação com vista à edificação.
A Iniciação no Jardim é uma arte da tecitura, da malhagem, da trama, da criatividade, da mutação e da travessia das formas.
A replicação está no âmago da Iniciação na Cidade, que visa a permanência das formas, a sua duração, o seu prolongamento, a sua reprodução idêntica. Uma tal iniciação releva da imitação, mas voltaremos a este ponto. O que é antigo é celebrado. Este processo iniciático está inscrito na memória, na cultura na temporalidade. O processo iniciático posto em prática no Jardim é, pelo contrário, uma celebração do instante, do imediato, um reconhecimento do efémero, da impermanência e do intemporal. (…)
O Jardim é aberto, mas ao passo que o iniciado da Cidade se mostra e se demonstra, o iniciado do Jardim oculta-se. “Para vivermos livres, vivamos ocultos”, diz o Mestre Jardineiro. Ninguém sabe exactamente onde começa e onde acaba o Jardim. Ele manifesta a Liberdade que caracteriza o Ente em si. A errância é aí encorajada. No Jardim, não há objecto iniciático em si e objecto não-iniciático. Qualquer situação pode beneficiar de um tratamento iniciático. Não é a situação externa e interna que importa, mas sim a relação de consciência mantida com a situação, que a torna a própria matéria da Obra. Privilegia-se a prática. “Se a doutrina te incomoda, rejeita a doutrina, mas aprofunda a prática”, sugere ainda o Mestre Jardineiro.  (…)
A aparente oposição entre a Cidade e o Jardim é o fruto do erro perceptual dualista. Convém substituir-lhe o princípio de uma articulação induzida pela própria etimologia da palavra “iniciação”, e instaurar assim uma dialéctica entre praxis e poiesis. A palavra “iniciação” provém do latim initiatio, que, por sua vez, na época greco-romana, traduzia a palavra grega telete. Enquanto a palavra initiatio expressa a ideia de passagem, telete veicula a ideia de finalização, de consumação. Enquanto initiatio se baseia na imitação e na repetição, que é o que fazem os ritos, telete assenta na “libertação da própria libertação”, usando a expressão de Nikos Kazantzakis. Qualquer via começa onde acaba a imitação e a repetição, onde se apaga a organização iniciática. Ela é realmente um abandono das formas, incluindo das formas sagradas que são os ritos, para penetrar o Grande Real.


FONTE: Disponível em: < https://incoerismo.wordpress.com/2012/05/09/iniciacao-no-jardim-e-iniciacao-na-cidade/#more-176>. Acesso em: 13 jun. 2015.



Nenhum comentário:

Postar um comentário