quarta-feira, 24 de junho de 2015

VIAGEM AO ORIENTE











Por P. Césare

Viagem ao Oriente não é o tipo de livro que vai agradar a qualquer leitor, nem mesmo àquele que se apaixonou por Sidarta, uma das mais belas obras de Hermann Hesse, merecedora de várias e várias releituras. Entretanto, para quem não sofre de preconceito contra aquilo que podemos chamar despretensiosamente de romance místico, sugerimos dar uma chance a Hesse porque seu relato de viagem é... uma viagem, boa em todos os sentidos. Mas antes, uma dica: programe-se para ler o texto de uma sentada, assim, sem interrupções, numa tarde de domingo. Faça dessa leitura um exercício de meditação, que tal? Se você for um leitor pouco distraído, não levará mais do que duas horas para terminar as cem páginas desse pequenino romance.

O romance é narrado em primeira pessoa por um músico chamado H.H., membro da Confraria, uma espécie de liga secreta formada por artistas, filósofos, escritores, poetas, entre outros, que se dedicam a participar de uma jornada sem um destino certo, numa espécie de peregrinação rumo ao Oriente. H.H. inicia a viagem com um grupo de membros da Confraria, cada qual com seu objetivo. Aliás, ter um objetivo pessoal para empreender a jornada, afirma o narrador, é uma das obrigatoriedades de cada membro. Aqui já encontramos a primeira das muitas chaves de leitura desse relato: não se faz a viagem sem um objetivo pré-determinado. Isso tem muito sentido se formos pensar na viagem como uma oportunidade de busca pessoal, e nesse ponto já temos em mãos uma segunda chave de leitura: a viagem ao Oriente é uma viagem simbólica, portanto uma viagem interior.

O objetivo de H.H em sua jornada era o de encontrar uma bela princesa chamada Fátima, e se possível conquistar o seu amor. Um outro buscaria um tesouro, por ele denominado “Tao”, e outro, ainda, desejava capturar uma serpente chamada Kundalini, à qual atribuía poderes mágicos. Qualquer um que já tenha estudado ou lido um pouco sobre a espiritualidade oriental consegue decifrar a linguagem simbólica desses objetivos. Os membros, para serem admitidos na Confraria deveriam persistir na fé, ter coragem frente ao perigo, e amar os semelhantes.

Quem já passou por algum tipo de experiência mística, ou pelo menos viveu algo que se assemelhe a isso, sabe como é difícil relatar a alguém aquilo que palavra alguma consegue captar com a mesma intensidade da experiência vivida. Trata-se do inefável, e numa passagem, logo no começo do relato, lemos um pensamento que H.H. atribui a Sidarta:

“As palavras não conseguem expressar os pensamentos com precisão; de imediato as coisas se tornam distorcidas, tolas. E mesmo assim agradam-me, e julgo que seja certo, que aquilo que para um homem parece válido e sábio, para outro caracteriza o absurdo.”

A seguir, H.H. cita uma estrofe expressa por um dos membros da Confraria que também discute essa questão:

“Quem empreender longínquas jornadas verá muitas coisas
Distantes daquilo que considera a Verdade.
E ao relatá-las, chegando a casa,
Será muitas vezes desacreditado,
Pois os empedernidos não acreditarão
Naquilo que não vêem ou sentem distintamente...”

Assim que H.H. é aceito como membro da Confraria, inicia uma peregrinação junto a um pequeno grupo, com direção ao Oriente. Diz que às vezes caminhava em pequenos grupos, às vezes sozinho, outras em multidão, com membros das mais diversas partes. Em alguns momentos, confessa, sente dificuldade em narrar os fatos porque “[...] não vagávamos somente através do espaço, mas também do tempo. Nosso destino era o Oriente, mas também viajávamos para a Idade Média e para a Idade do Ouro; percorríamos a Itália ou a Suíça, mas muitas vezes passávamos a noite no século X, em companhia dos patriarcas ou duendes.” E a terceira (e principal) chave de leitura vem a seguir: “[...] Pois nosso objetivo não era unicamente o Oriente, ou melhor, o Oriente não era apenas um país ou um fato geográfico, era também o lar e a juventude da alma, estava em toda parte e em parte nenhuma, era o conjunto de todas as eras.”.

O relato vai beirando ao fantástico, as descrições daquilo que H.H. observa conforme a peregrinação avança nos faz lembrar de uma viagem alucinógena, como se o observador tivesse experimentado algum tipo de erva ritualística, mas não se trata disso, nem desse tipo de viagem, porque quem relata a experiência demonstra ter um total controle psíquico daquilo que está vivendo. Um pequeno excerto, para apreciar:

“Jamais esquecerei o brilho mortiço da cauda dos pavões sob o luar, surgindo entre as árvores altaneiras, nem as sereias que emergiam cintilantes, com o corpo prateado, nas margens sombrias, por entre as rochas. Dom Quixote, de pé sob a castanheira ao lado da fonte, em sua primeira vigília noturna, enquanto as derradeiras velas romanas do espetáculo pirotécnico caíam suavemente sob as torres do castelo, e meu companheiro Pablo, ornado de rosas, tocava o órgão persa para as donzelas.”

Em determinado momento, ficamos sabendo que com o grupo da Confraria seguia um criado, por todos estimado, chamado Leo. Sábio, fiel, amável, de belo rosto, sua aparição no relato por um momento nos remete ao anjo de Pasolini. No segundo capítulo, quando o grupo chega ao desfiladeiro de Morbio Inferior, num dia qualquer do mês de outubro, descobre que Leo os abandonara. A partir desse fato a história ganha uma outra dimensão; H.H. desiste da viagem, tornando-se um desertor, e seu desejo a partir de então será o de elaborar a descrição da jornada por ele vivida junto à Confraria, “visando salvar sua vida, dando-lhe novamente sentido”, atitude que terá uma consequência profunda no desenrolar dessa história. Já não podemos prosseguir com a análise da obra, porque o que se seguirá daqui em diante é a alma de todo o relato, a surpresa que aguarda o leitor até o último momento dessa jornada fascinante.

Viagem ao Oriente trata da busca espiritual, sem dúvida, mas também pode ser decifrado através de uma leitura psicanalítica junguiana (com a qual Hesse foi muito familiarizado), quando aquilo que H.H. vivencia, sofre, questiona, alude ao processo de individuação, ao encontro com o Self. Mas isso é apenas parte de uma leitura pessoal, e pode nem mesmo ter muito sentido para aqueles que não se interessam por essa temática. Porém, nada disso importa, porque temos convicção de que cada um sairá dessa leitura tocado de alguma maneira muito especial. Experimente.

FONTE: CÉSARE, P. Viagem ao Oriente, por Hermann Hesse. 5 jul. 2009. Disponível em: <http://odeporica.blogspot.com.br/2009/07/viagem-ao-oriente-por-hermann-hesse.html>. Acesso em: 25 jun. 2015.


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