Por Cynthia Guimarães Taveira
Tomaremos como ponto de
partida a perspectiva de Mircea Eliade, a partir da qual estabelece três tipos
de iniciação, ou três categorias iniciáticas explicitas na História das
Religiões, sendo que “A primeira compreende os rituais colectivos pelos
quais se efectua a passagem da infância, ou da adolescência para a idade adulta”(1), é a
chamada iniciação tribal e é obrigatória para os membros de uma comunidade
tradicional. A segunda ”… compreende todas as espécies de ritos de
entrada numa sociedade secreta, num Bund ou numa confraria.”(2) Este
tipo não é obrigatório, é muitas vezes reservado a um único sexo (a grande
maioria das sociedades secretas são masculinas), sendo os casos dos reservados
aos dois sexos muito raros, como é o caso dos Mistérios greco-orientais. E, por
fim, uma terceira categoria :
“… aquela que
caracteriza a vocação mística, ou seja, ao nível das religiões primitivas, a
vocação do ‘homem-medicina’ ou do xamã”. Iniciação esta na qual se destaca o
valor dado à ‘experiência pessoal’, em que os indivíduos “estão
destinados - quer queiram quer não - a participar numa experiência religiosa
mais intensa do que aquela que é acessível ao resto da comunidade. Dissemos:
quer eles queiram quer não, porque é possível alguém tornar-se ‘medicine-men’
ou xamã após uma decisão pessoal de se apropriar dos poderes religiosos (aquilo
a que se chama a ‘busca’), mas também por vocação (o ‘chamamento’), ou seja,
porque é forçado a sê-lo por seres sobre-humanos.”(3)
Tomaremos, igualmente, como
ponto de partida a definição existente no dicionário de símbolos para a palavra
Iniciação :
“Iniciar é, de certa forma,
morrer, provocar a morte. Mas a morte é considerada como uma saída, a passagem
de uma porta que dá acesso a outro lugar. À saída segue-se uma entrada. Iniciar
é introduzir.”(4)
Dos três tipos de iniciação
apontados por Mircea Eliade aqueles que, neste caso, mais nos interessam são os
dois últimos. O primeiro, a iniciação na puberdade, existindo também no
ocidente, nas três religiões do Livro, é obrigatório e dirigido aos membros de
uma comunidade como introdução num mundo simbólico, teórico e prático. Os dois
últimos são mais elitistas, por assim dizer, caminham do geral, por exemplo uma
sociedade secreta, para o particular, para o individuo. Há como que um afunilar
nas vias iniciáticas e, no entanto, esse afunilar, ao terminar no indivíduo
único, pode gerar, por sua vez, movimentos regeneradores ao nível de uma
comunidade, por exemplo, Cristo pertencerá, com certeza, ao último tipo de
iniciação apontado por Mircea Eliade, a sua iniciação foi directamente
conduzida por forças não-humanas sobrenaturais (ficando aqui a sua origem
humana ou não em segundo plano na análise). É, ainda assim, na concentração de
um único indivíduo, Cristo, que se origina uma nova religião, com todos os seus
níveis: exotérico (por exemplo, os ritos de passagem para a idade adulta, como
o Crisma), esotérico (por exemplo, sociedades secretas que fazem girar as suas
iniciações em torno de temas cristãos), e ainda as iniciações individuais (por
exemplo o caso dos santos místicos), que originam, por sua vez, movimentos
regeneradores dentro do próprio cristianismo; é, portanto, um movimento
circular aquele que preside à iniciação no ocidente.
Tanto Rémi Boyer como Fernando
Pessoa partem do principio que existem vários tipos de iniciação. Fernando
Pessoa estabelece três tipos de iniciação :
“Há, primeiro, e no nível
ínfimo, a iniciação exotérica, análoga à iniciação maçónica (…) que serve para
pôr o indivíduo em condições de poder dar-se o caminho esotérico, de poder
buscar, pelo contacto, embora esotérico, com símbolos e emblemas, o verdadeiro
caminho. O mais exterior e nulo dos sistemas iniciáticos - como é hoje o da
maçonaria - serve este fim. ( …) o único fim com que os Rosa-Cruz
instituíram a maçonaria exotérica é o de pôr muita gente em contacto com, por
assim dizer, o aspecto externo da verdade oculta (…). Há depois a iniciação
esotérica. Difere da primeira, em que tem de ser buscada pelo discípulo, e por
ele desejada e preparada em si mesmo. “Quando o discípulo está pronto”, diz o
velho lema dos ocultistas, “o mestre está pronto também”. Há por fim a
iniciação divina. (…) vem directamente, e por cima de todos, das mesmas mãos,
do que chamamos Deus.”(5)
Embora a Maçonaria seja uma
sociedade secreta, não se dirigindo a toda a comunidade, tem, para Fernando
Pessoa, um papel semelhante àquele descrito por Mircea Eliade quando se refere
à Iniciação com vista à passagem da puberdade à idade adulta. No fundo, há na
Maçonaria, como nesse tipo de iniciações, regras de conduta que são
transmitidas, uma base teórica com vista à especulação e ainda um conjunto de
símbolos e rituais que integram o neófito num sistema de valores. A crítica de
Pessoa à Maçonaria como tendo um valor nulo iniciático é ainda mais vigorosa do
que a de Rémi Boyer quando este, após conotar a Maçonaria com a Iniciação
na Cidade e os Rosa-Cruz como sendo o protótipo da Iniciação no
Jardim, afirma :
“A Iniciação na
Cidade está estabelecida em torno de constrangimentos. A doutrina será
privilegiada como objecto do saber. A Cidade estabelece, aliás, listas de
objectos iniciáticos e não iniciáticos (o alimento, a tecnologia, a
sexualidade…) assim como distingue o profano e o sagrado, nos espaços
exteriores como nos espaços interiores.”(6)
Poder-se-á dizer, e retirando
das entrelinhas algumas palavras invisíveis destes dois textos, que o ritual
maçónico incorre no erro de ser um teatro sem alma. O Despertar, entenda-se,
pratica-se no sentido em que o indivíduo se encontra no estado de vigilante ou
em estado de vigília, ou ainda, nas palavras de Almada Negreiro, “à escuta do
universo”(7).
O mesmo problema suscitado pela Iniciação é levantado em relação à Arte, não
havendo muita diferença entre aquele que pratica uma certa vibração ou
frequência dentro do silêncio, aqui como processo iniciático e o artista que
deixa que a inspiração nele flua, à boa maneira medieval, isto partindo do princípio
que, no início, maçons eram aqueles que praticavam a arte da pedra. A arte
como duplo sopro que molda as formas no areal: o vento molda a areia e sopra,
por sua vez, segundo e seguindo as formas desse areal moldado por ele em
influência criativa mútua (as bacias semânticas das quais nos fala Gilbert
Durand). É sempre um princípio superior que se espera que influencie o
artífice:
“A iniciação representa
verdadeiramente e legitimamente o espírito, animador principal de todas as
coisas, enquanto no que diz respeito à ‘pseudo-iniciação’, o espírito está
naturalmente ausente. Daqui resulta imediatamente que a acção assim exercida,
em vez de ser realmente ‘orgânica’, só pode ter um carácter puramente ‘mecânico’”.
(8)
Rémi Boyer é mais descritivo
relativamente aos processos de funcionamento maçónicos, visando demonstrar a
contradição no que se refere às palavras Igualdade e Fraternidade :
“Em Loja, a palavra circula de
cima para baixo e de baixo para cima. A deslocação de Loja em Loja está
submetida ao controlo hierárquico (…) O saber é esperado vindo do outro, de
fora, ainda que por vezes seja ‘de fora de em si mesmo’”. (9)
Faz, deste modo, um aviso
atento à diferença existente entre iniciação externa e iniciação interna, sendo
que o ”de fora em si mesmo” será trabalho meramente intelectual, sem
a participação do espírito, ainda que solitário. Toda esta hierarquia piramidal
existente em Loja acaba por “…impossibilitar o Companheirismo tradicional, que
é, no entanto, o que justifica a Iniciação na Cidade.”(10)
Igualdade e Fraternidade são dois conceitos, portanto, dificilmente
alicerçados, uma vez que implicariam uma certa horizontalidade, uma determinada
Távola Redonda, na qual os Iniciados estariam igualmente posicionados face ao
Centro. Em pirâmide verticalizada, tal distancia não é possível. A Fraternidade
pura, entre irmãos de um mesmo pai e de uma mesma mãe, é difícil de encontrar
numa Sociedade que distingue Aprendizes, Companheiros e Mestres; o mais velho,
o mais sábio, está num plano acima do neófito Aprendiz.
Também a face ”especulativa” da
Maçonaria não é poupada, nesta discrição que permeia a crítica: tendo raízes
operativas sobre a matéria e, tendo sido minimizado, ao longo dos últimos
quatro séculos, o trabalho manual sobre a pedra, dá-se a impossibilidade de
realizar a Obra: ”A realização da Obra-Prima é muitas vezes esquecida para
se contentar apenas com o conceito de obra-prima, com a sua ideia.” (11)
Se Fernando Pessoa fala da
Maçonaria como a face exotérica, exterior daquilo que supostamente guarda uma
sabedoria oculta, e se afirma até que foram os Rosa-Cruz que ”instituíram
a Maçonaria”, provavelmente numa alusão a um qualquer período coincidente
com a passagem da Maçonaria operativa à especulativa (talvez como esforço de
resgate e salvação de alguma sabedoria em risco de se perder), Boyer fala dessa
face exterior da Ordem iniciática tendo em vista o apelo tradicional da
supremacia do Espírito sobre a matéria :
“A Cidade promove as
organizações iniciáticas que não passam de criações humanas, veículos
imperfeitos e ecos muitas vezes longínquos das vias iniciáticas, sendo estas,
na sua essência, ‘não humanas’, entenda-se ‘não condicionadas’”. (12)
Sendo o Iniciado na Cidade
aquele que se “mostra”, que se dá a conhecer, enfim, que é um “conquistador,
inscrito no esforço, por vezes em sobre-esforço; quer progredir, evoluir,
atingir o divino, etapa após etapa. É uma visão prometeica, típica da “pessoa”,
do “eu”, do ego fascinado pelo devir. O iniciado na Cidade está ainda sobre a
influência da “pessoa” (…) Perdido no duplo constrangimento da Cidade de Deus e
da Cidade dos homens, o iniciado na Cidade cai por vezes no pacto faustiano.” (13)
Como se poderá dar a passagem
da Cidade para o Jardim? É Fernando Pessoa que, falando das “habilitações
indispensáveis aos candidatos”, nos revela essa passagem. Notamos aqui
igualmente as duas matérias primas que regem estes tipos de iniciação: na Maçonaria
a matéria-prima é a pedra, no Jardim, a madeira. Numa primeira fase o homem
construiu com madeira, numa segunda fase com pedra: “...por isso a arte da
carpintaria que aparece como auxiliar a maçonaria, é-lhe anterior”, mais
primitiva, portanto, mas também ligada à matéria orgânica, sensível e mais
subtil: “A suprema arte do carpinteiro trabalha com a matéria do mundo e
os aprendizes têm de transformar-se em pássaros para não sentirem a vertigem
sobre os altos andaimes.” (14)
É a madeira, segundo António
Telmo, a “matéria do mundo”, e ainda “Em português, matéria é madeira, que
se arranca das florestas” (15),
sendo as raízes, matrizes, e dando ainda um ensinamento Maçónico: “O
Grande Arquitecto do Universo edificou o Templo do Mundo sobre a madeira” (16).
Matéria mais subtil, portanto, obrigando os aprendizes a transformarem-se em
pássaros para que não “caiam” das alturas, tendo sempre em vista
que ”Em Tiferet, no centro dos centros, já não há esse perigo de
cair, porque o baixo é o alto e o alto é o baixo. O Sol não cai, imóvel no
centro do seu sistema. Pois para que lado há-de cair, se já não há lado?”(17) Esses
aprendizes de “jardinagem” devem ter características fundamentais
:
“Ser um simbolista (…) para
quem os símbolos são coisas, vidas, almas, e para quem, paralela e
conversamente, as coisas e os homens tenham, em certo modo, a vida irreal, a
analógica dos símbolos”, devem estudar as matérias com simpatia, que pode ser
induzida com um ”grande poder de imaginação, de despersonalização, de
auto-sugestão”, e, por fim, saber nas ler nas entrelinhas, pois “os livros
maçónicos, e sobretudo os públicos, por isso mesmo que são públicos, não são
nem podem ser escritos em linguagem que não seja a linguagem que lá está.”(18)
E Pessoa chama a atenção mais
à frente: “É impossível chegar a qualquer entendimento íntimo da Maçonaria
sem ter conhecimento da chamada Ciência Hermética” (19) e aqui dá-se então
o passo fundamental: está o aprendiz no limiar, no portal de acesso ao jardim.
Mas não está ainda no jardim. A despersonalização terá de ser dupla: morte
da “pessoa” e morte daquilo que mais ama: “os símbolos”,
primeiro uma morte dos símbolos como suporte de um ritual, em seguida a morte
efectiva de todos os símbolos (num percurso que, lembremos, é de morte e
renascimento), isto porque ”Quem tenha em si o poder de sentir pronta e
instintivamente a vida dos símbolos não precisa de iniciação ritual.”(20),
palavras que mais uma vez vão ao encontro das de Rémi Boyer: “Qualquer via
começa onde acaba a imitação e a repetição, onde se apaga a organização
iniciática. Ela é realmente um abandono das formas, incluindo das formas
sagradas que são os ritos, para penetrar o Grande Real.”(21)
O problema da repetição e da
criação é aquele que se enlaça com a própria natureza e seus segredos, a
manutenção dos ciclos em repetição é sempre constituída também por uma arritmia
breve mas suficientemente forte (porque provém de um tempo forte, o sagrado)
para que haja mudança. É assim que, no pensamento hermético, nada é
absolutamente equivalente na natureza. Um pássaro gera outro da mesma espécie,
mas em si são dispares, com pequenas diferenças quase imperceptíveis, mas que
geram a renovação das gerações, como padrões que mudam devagar, ou músicas que
se transformam noutras com ligeiras alterações nas notas até à aquisição final
de uma forma totalmente nova, e, no caso do sagrado, Totalmente
Outra. Diríamos que as pequenas intervenções do Espírito Santo vão gerando
pequenas mutações com o propósito de uma perfeição final. Larga-se o papel do “caseiro” do
jardim, que mantém a casa e entra-se num outro estado, o do Jardineiro que cria
o jardim dentro de si:
“O iniciado não tem qualquer
necessidade de nomear a Coisa. Ele é a própria Coisa. Ele é o próprio Jogo da
Energia e da Consciência, o jogo sem “eu”, o jogo sem palavras e sem males
pois a oposição obsessiva entre o “bem” e o “mal” –
característica da Cidade e das suas leis liberticidas – dissolveu-se na
Imperiência da Liberdade Absoluta.”(22)
Chegámos, aqui, ao terceiro
elemento, o da Liberdade, que, afinal, na iniciação maçónica era, tal como a
Fraternidade e a Igualdade, afinal uma lei liberticida, uma não-liberdade. E os
símbolos, esses que eram suporte de meditação, que se erguiam em dança nos
rituais, que brilhavam em cima de panos escarlate, são, afinal, parte de um
mundo ilusório, eles pertencem a este mundo apenas, de alguma maneira eles morrem
e o neófito morre com eles:
“Mas o verdadeiro significado da
iniciação é o de ser este mundo visível em que vivemos um símbolo e uma sombra,
e o de ser esta vida que conhecemos por intermédio dos sentidos uma morte e um
sono, é o de ser quanto vemos uma ilusão. A iniciação é o desfazer gradual
e parcial dessa ilusão. A razão para ser simbólica é não ser a iniciação um
conhecimento mas uma vida e por conseguinte devem os homens pensar pela sua
cabeça o que os símbolos mostram, pois de tal modo não apenas aprenderão as
palavras em que se exprimem, mas viverão por si próprios as suas vidas”(23), ou
nas palavras de Rémi Boyer, num outro livro : “As Vias Reais são feitas
para aqueles que são reais, que vivem, em vez de serem vividos”(24). O
mistério da morte iniciática é, ainda assim, silenciado, por todos os
hermetistas, sendo apenas comunicado por uma linguagem simbólica, como por
exemplo “morrer de amor”, em Dante e Camões, na linhagem dos Fiéis d’Amor,
a “abertura da matéria” em Alquimia, ou ainda, as mortes fragmentadas
em êxtase dos místicos, em visão e vivência corporal, traduzida, por exemplo,
por Bernini na magnífica estátua na qual Santa Teresa de Ávila desfalece em
frente a um anjo que segura uma seta.
É nesta dupla condição, de
morte em vida e vida em morte, numa espécie de suspensão num abismo, que é
possível caminhar pelo Jardim e conter, em simultâneo o Jardim dentro de si.
Porque não há ego, nem eu, o Iniciado não se “mostra” nem ”demonstra” como
o Iniciado na Cidade, ao invés, ele “… oculta-se. Para vivermos
livres, vivamos ocultos, diz o Mestre Jardineiro.”(25)
Foi dita a frase a Rémi Boyer
por Lima de Freitas : “O Modernismo abre espaço para a Tradição passar”. É uma
frase digna de um Fiel d’Amor. Assim, na perspectiva de Boyer, o Modernismo vai
ser o movimento que se solta e um movimento solto de antigos espartilhos
simbolistas e decadentistas. São os Modernistas, nestes tempos próximos
de nós, os inventores do próprio tempo e, na sua vertigem de invenção, de
criação, de arte, de alguma forma, projectam-se até ao limite de um Futurismo
vivido antecipadamente, acabando por alterar as leis do tempo que são sempre
constrangimentos, que são sempre condicionantes, até atingir um não-tempo
:
“O iniciado no Jardim é um
poeta, um fazedor - palavra que define o alquimista -, um profeta do não-tempo,
um teósofo. Ele sabe que tudo já está cumprido, que ele não está em devir.
Ele é o Absoluto. Ele é. A iniciação no Jardim não é conquistadora, é
libertária, é uma Recordação, segundo Hermes, uma Reintegração, segundo
Martinez de Pasqually, um Re-conhecimento da sua Liberdade Absoluta, para
Mestre Eckhart, como para Abinavagupta. O iniciado no Jardim está des-mascarado,
é acéfalo. Nesse sentido, o iniciado no Jardim opõe-se ao profeta. É um
hipo-feta, palavra forjada por Rabelais para designar aquele que se recorda do
que já passou, do antigo. Mas este ‘antigo’ é mais antigo do que o antigo, é
original; é por isso que ele é totalmente novo e vanguardista, tanto na sua
expressão como na sua impressão.”(26)
O iniciado no Jardim reencontra-se
também com a matéria-prima, sendo que o seu ofício externo e visível na
sua “expressão” e “impressão” possa ser o da criação, domínio
para o qual ele nasceu (raiz do verdadeiro adepto), de um Jardim, de um Poema,
e o seu interno é o de um Mestre (poderemos dizer de um mestre de cerimónias,
se bem que as cerimónias sejam produto de um Mistério, traduzidas na Alegria
que preside a Vida) que conduz, ou antes, abre a porta para que se dê a
iniciação, esta sim, subtil e derradeira, mas apenas como um destino que se
cumpre num fluir natural a par (e sempre em sintonia) com o fluir
sobrenatural e, no qual o desejo é “axializado”, e não terreno. A sua
matéria-prima é viva, os objectos dos quais se socorre já não estão dentro dos
limites e divisões do sagrado e do profano:
“No Jardim, não há objecto
iniciático e objecto não-iniciático. Qualquer situação pode beneficiar de um
tratamento iniciático. Não é a situação externa e interna que importa, mas sim
a relação de consciência mantida com a situação, que a torna a própria matéria
da Obra.”(27)
Ele é um “despertador”: “No
Jardim, o ensinamento é como o bater de asas da águia. Uma palavra, um olhar,
uma alusão, um silêncio, um gesto, uma imobilidade despertam para o Grande Real”(28), mas
um despertador no âmago, na verdade, no plano em que não há ”eu”, ele
desperta ao ponto de não haver distância, separação entre ele e o outro, porque
se tudo é passível de tratamento iniciático, e a sensibilidade desperta reside
no Absoluto, então ele “sofre mais no corpo dos outros do que no seu
próprio corpo”(29),
digamos que, em termos iniciáticos, ele vive mais a morte do outro do que a
sua.
Se até aqui estávamos no plano
da Liberdade, regressamos mais uma vez, mas agora em viagem interna e oculta,
ao plano da Igualdade e da Fraternidade. Numa voz em coro com a de Fernando
Pessoa, diz-nos Rémi Boyer: “A Confraria dos Jardineiros da Rosa designa
uma axiologia composta por todos aqueles que passaram para lá da Aparência das
aparências e se reconheceram como o Absoluto, o próprio Senhor”(30);
indo ainda mais longe na descrição de tal estado, Fernando Pessoa escreve não
designando os Rosa-Cruz mas sim a Ordem de Cristo :
“A Ordem de Cristo não tem
graus, templo, rito ou passe. Não precisa reunir-se, e os seus cavaleiros,
para assim lhes chamar, conhecem-se sem saber uns aos outros, falam-se sem o
que propriamente se chama linguagem. Quando se é escudeiro dela não se está
ainda nela; quando se é mestre dela, já se lhe não pertence. (…). Não se entra
para a Ordem de Cristo por nenhuma iniciação, ou, pelo menos, por nenhuma
iniciação que possa ser descrita em palavras. Não se entra para ela por querer
ou por ser chamado; nisto ela se conforma com a fórmula dos mestres: “quando o
discípulo está pronto, o Mestre está pronto também”. E é na palavra “pronto”
que está o sentido vário, conforme as ordens e as regras.
Fiel à sua obediência - se
assim se pode chamar onde não há obedecer -, à fraternidade de quem é filha e
mãe, há nela a perfeita regra de Liberdade, Igualdade, Fraternidade. Os seus
cavaleiros - chamemos-lhe sempre assim - não dependem de ninguém, não obedecem
a ninguém, não precisam de ninguém, nem da Fraternidade de que dependem, a quem
obedecem e de que precisam. Os seus cavaleiros são entre si perfeitamente
iguais naquilo que os torna cavaleiros; acabou entre eles toda a diferença que
há em todas as coisas do mundo. Os seus cavaleiros são ligados uns aos outros pelos
simples laços de serem tais, e assim são irmãos, não sócios nem associados. São
irmãos, digamos assim, porque nasceram tais. Na ordem de Cristo não há
juramento nem obrigação.”(31)
É então desvendada a
verdadeira metáfora, provocada pela Maçonaria quando menciona pedreiros livres,
fraternos e iguais entre si. Hierarquizada, ritualizada, com juramentos,
obediências e lealdades, símbolos, uma matéria-prima existente apenas como
decoração (sem que ninguém a trabalhe, de facto e literalmente) e ainda um
Grande Arquitecto do Universo, dúbio, às vezes, pela ausência de crença em
princípios espirituais, desde o século XIX, a Maçonaria nada mais é, afinal, do
que uma Grande Alegoria do que será uma iniciação interna, efectiva e actuante,
vinda directamente das profundezas do coração da Tradição.
Tanto Fernando Pessoa como
Rémi Boyer partem de uma crítica (sobre um ponto de vista analítico totalmente
impessoal no apelo da observação) do chamado mundo externo para chegar ao
interno; uma via iniciática externa, a Maçonaria, e outra, interna, a da Arte
Hermética. Por um percurso um pouco sinuoso, é indicada, pelos dois autores, a
possibilidade de se sair de um círculo vicioso, que é no fundo o círculo vicioso
da própria vida enquanto “somos vividos” e não “vivemos”. Este trabalho
procurou acompanhar apenas (e não recriar pelas próprias palavras) o caminho
elaborado por estes dois autores na procura de uma Via Iniciática verdadeira,
dentro do esoterismo ocidental. No final, fica suspensa a questão, até porque
Fernando Pessoa brincava facilmente com palavras, mas sobretudo com ideias: não
será uma alegoria também o que o poeta escreveu relativamente à aparentemente
extinta Ordem Templária de Portugal afirmando ter tido o seu término
exactamente no ano do nascimento do poeta? Não terá antes re-nascido com ele?
Se “O jardim está onde está o iniciado”(32),
e ainda, “a Obra-Prima é realizada”(33), não
será este, afinal, o retrato do poeta enquanto iniciado e iniciador?
NOTAS
(2) Obra cit., pág. 22
(3) Obra cit., pág. 22
(4) Chevalier, Jean; Alain Gheerbrant, Dicionário de Símbolos, Ed. Círculo de Leitores, 1997, pág. 377
(5) Pessoa, Fernando, Obra em Prosa de Fernando Pessoa, A procura da Verdade Oculta - Textos Filosóficos e esotéricos, prefácio, organização e notas de António Quadros, Ed. Europa-América, 2ª edição, 1989, pág. 168
(6) Boyer, Rémi, O Discurso de Sintra - Metafísica & Iniciação, Co-edição Zéfiro e Arcano Zero, 1ª edição, 2011, pág. 92
(7) Negreiros, Almada, A Invenção do Dia Claro, Ed. Assírio & Alvim, 2005, pág. 12
(8) Guénon, René, O Reino da Quantidade e os sinais dos Tempos, Ed. Dom Quixote, Lisboa, 1989, pág. 229
(9) Boyer, Rémi, O Discurso de Sintra - Metafísica & Iniciação, Co-edição Zéfiro e Arcano Zero, 1ª edição, 2011, pág. 91
(10) Obra cit., pág. 91
(11) Obra cit., pág. 92
(12) Obra cit., pág. 94
(13) Obra cit., pág. 96
(14) Telmo, António, O Mistério de Portugal na História e n’Os lusíadas, Ed. Ésquilo, 2004, pág. 26
(15) Obra cit., pág. 266
(16) Obra cit., pág. 266
(17) Obra cit., pág. 266
(18) Pessoa, Fernando, Obra em Prosa de Fernando Pessoa, A procura da Verdade Oculta - Textos Filosóficos e esotéricos, prefácio, organização e notas de António Quadros, Ed. Europa-América, 2ª edição, 1989, pág. 168
(19) Obra cit., pág. 170
(20) Obra cit., pág. 175
(21) Boyer, Rémi, O Discurso de Sintra - Metafísica & Iniciação, Co-edição Zéfiro e Arcano Zero, 1ª edição, 2011, pág. 101
(22) Obra cit. pág. 102
(23) Obra cit., pág. 178
(24) Boyer, Rémi, O Louco de Shakti, Ed. Hugin, 1998, pág. 7
(25) Boyer, Rémi, O Discurso de Sintra - Metafísica & Iniciação, Co-edição Zéfiro e Arcano Zero, 1ª edição, 2011, pág. 94
(26) Obra cit., pág. 97
(27) Obra cit., pág. 94
(28) Obra cit., pág. 94
(29) Boyer, Rémi, Poeiras de Absurdidade Sagrada - Livro Solar, Co-Edição Zéfiro e Arcano Zero, 2011, pág. 44
(30) Boyer, Rémi, O Discurso de Sintra - Metafísica & Iniciação, Co-edição Zéfiro e Arcano Zero, 1ª edição, 2011, pág. 105
(31) Pessoa, Fernando, Obra em Prosa de Fernando Pessoa, A procura da Verdade Oculta - Textos Filosóficos e esotéricos, prefácio, organização e notas de António Quadros, Ed. Europa-América, 2ª edição, 1989, pág. 231
(32) Boyer, Rémi, O Discurso de Sintra - Metafísica & Iniciação, Co-edição Zéfiro e Arcano Zero,edição, 2011, pág. 92
(33) Obra cit., pág. 92
(3) Obra cit., pág. 22
(4) Chevalier, Jean; Alain Gheerbrant, Dicionário de Símbolos, Ed. Círculo de Leitores, 1997, pág. 377
(5) Pessoa, Fernando, Obra em Prosa de Fernando Pessoa, A procura da Verdade Oculta - Textos Filosóficos e esotéricos, prefácio, organização e notas de António Quadros, Ed. Europa-América, 2ª edição, 1989, pág. 168
(6) Boyer, Rémi, O Discurso de Sintra - Metafísica & Iniciação, Co-edição Zéfiro e Arcano Zero, 1ª edição, 2011, pág. 92
(7) Negreiros, Almada, A Invenção do Dia Claro, Ed. Assírio & Alvim, 2005, pág. 12
(8) Guénon, René, O Reino da Quantidade e os sinais dos Tempos, Ed. Dom Quixote, Lisboa, 1989, pág. 229
(9) Boyer, Rémi, O Discurso de Sintra - Metafísica & Iniciação, Co-edição Zéfiro e Arcano Zero, 1ª edição, 2011, pág. 91
(10) Obra cit., pág. 91
(11) Obra cit., pág. 92
(12) Obra cit., pág. 94
(13) Obra cit., pág. 96
(14) Telmo, António, O Mistério de Portugal na História e n’Os lusíadas, Ed. Ésquilo, 2004, pág. 26
(15) Obra cit., pág. 266
(16) Obra cit., pág. 266
(17) Obra cit., pág. 266
(18) Pessoa, Fernando, Obra em Prosa de Fernando Pessoa, A procura da Verdade Oculta - Textos Filosóficos e esotéricos, prefácio, organização e notas de António Quadros, Ed. Europa-América, 2ª edição, 1989, pág. 168
(19) Obra cit., pág. 170
(20) Obra cit., pág. 175
(21) Boyer, Rémi, O Discurso de Sintra - Metafísica & Iniciação, Co-edição Zéfiro e Arcano Zero, 1ª edição, 2011, pág. 101
(22) Obra cit. pág. 102
(23) Obra cit., pág. 178
(24) Boyer, Rémi, O Louco de Shakti, Ed. Hugin, 1998, pág. 7
(25) Boyer, Rémi, O Discurso de Sintra - Metafísica & Iniciação, Co-edição Zéfiro e Arcano Zero, 1ª edição, 2011, pág. 94
(26) Obra cit., pág. 97
(27) Obra cit., pág. 94
(28) Obra cit., pág. 94
(29) Boyer, Rémi, Poeiras de Absurdidade Sagrada - Livro Solar, Co-Edição Zéfiro e Arcano Zero, 2011, pág. 44
(30) Boyer, Rémi, O Discurso de Sintra - Metafísica & Iniciação, Co-edição Zéfiro e Arcano Zero, 1ª edição, 2011, pág. 105
(31) Pessoa, Fernando, Obra em Prosa de Fernando Pessoa, A procura da Verdade Oculta - Textos Filosóficos e esotéricos, prefácio, organização e notas de António Quadros, Ed. Europa-América, 2ª edição, 1989, pág. 231
(32) Boyer, Rémi, O Discurso de Sintra - Metafísica & Iniciação, Co-edição Zéfiro e Arcano Zero,edição, 2011, pág. 92
(33) Obra cit., pág. 92
FONTE: Disponível em: <http://www.sgdl-auteurs.org/remi-boyer/index.php/post/Fernando-Pessoa-R%C3%A9mi-Boyer,-um-di%C3%A1logo-espelhado>.
Acesso em: 13 jun. 2015.
Nenhum comentário:
Postar um comentário