segunda-feira, 29 de junho de 2015

INICIAÇÃO E CONTRA-INICIAÇÃO




Por Julius Evola

29 — Inversão do gibelinismo — Considerações finais

Uma vez que as nossas pesquisas também tiveram em consideração as interferências entre organizações iniciáticas e correntes históricas, é oportuno dizer qualquer coisa — a título de conclusão — acerca das relações existentes entre aquilo a que nós chamámos a “herança do Graal”, ou seja, o alto gibelinismo, e as sociedades secretas dos tempos modernos, particularmente aquelas que, a partir do Iluminismo, se definiram sob a forma de Maçonaria. Deveremos, evidentemente, limitar-nos aqui ao essencial.

Já na chamada seita dos Iluminados da Baviera encontramos um exemplo típico dessa interferência de tendências a que há pouco nos referimos e que resulta da mesma mudança de significado experimentada pelo termo “Iluminismo”. Originalmente, este termo correspondia à ideia de uma iluminação espiritual supra-racional; mas, progressivamente, ele tornou-se sinónimo de racionalismo, de teoria da “luz natural”, de anti-tradição. Pode-se falar, a este respeito, de um uso falsificado e “subversivo” do direito próprio do iniciado, do adepto. O iniciado, se o é verdadeiramente, pode colocar-se para além das formas históricas contingentes de uma tradição particular, pode acusar – se para tanto receber o mandato as suas limitações e libertar-se da sua autoridade; ele pode negar o dogma porque está na posse de algo superior, o conhecimento transcendente, cuja inviolabilidade ele conhece a um nível totalmente diverso; pode, finalmente, reivindicar para si a dignidade de um ser livre, uma vez que se libertou dos laços da natureza inferior, humana: sob esta perspectiva, os “livres” são também os “pares” e a sua comunidade pode ser concebida como uma “confraria”. Pois bem, basta materializar, laicizar e democratizar estes aspectos do direito iniciático e traduzi-los em termos individualistas, para se obter imediatamente os princípios-base das ideologias subversivas e revolucionárias modernas. A luz da razão humana pura sucede à “iluminação” e dá lugar às destruições do “livre exame” e da crítica profana. O sobrenatural é banido ou confundido com a natureza. A liberdade, a igualdade e a paridade tornam-se aquelas que são reivindicadas de um modo prevaricador pela simples “consciência da sua dignidade” — mas não, contudo, consciência da sua escravidão perante si própria — para se erguer contra toda a forma de autoridade e se constituir ilusoriamente como razão suprema: dizemos ilusoriamente uma vez que, no encadeamento inexorável das várias fases da decadência moderna, o individualismo teve a duração de uma breve miragem e de um falso entusiasmo, tendo em breve o elemento colectivo e irracional na época das massas e da técnica tido consciência do indivíduo “emancipado”, ou seja, desenraizado e sem tradição.

Ora, a partir do séc. XVIII, surgem precisamente grupos, paralelos às chamadas societés de pensée, que ostentam um carácter iniciático, enquanto se entregam mais ou menos directamente a esta obra revolucionária e “reformista” de “iluminismo” e de racionalismo (1). Alguns destes grupos eram efectivamente a continuação de organizações anteriores de tipo regular e tradicional. Assim, deve-se pensar, a esse respeito, num processo de involução levado até a um ponto no qual, em função do afastamento do princípio animador original destas organizações, pode realizar-se uma verdadeira e própria inversão de polaridade: influências de uma ordem totalmente diversa inseriram-se e actuaram em organismos que, mais ou menos, representavam o cadáver ou a sobrevivência automática daquilo que eles tinham sido anteriormente, utilizando e dirigindo as suas forças numa direcção oposta àquela que tinha sido normal e tradicionalmente a sua (2). No prólogo de “José Bálsamo” de A. Dumas, que é algo mais do que uma pura fantasia (porque utiliza dados recolhidos no processo desta personagem), encontramos um chefe que se apresenta como um Grão-Mestre Rosa-Cruz e que, numa reunião secreta de “iniciados” vindos de todos os países, dá como palavra de ordem L.D.P. (as iniciais de lilia destrue pedibus — isto é: destrói e calca aos pés a Casa de França). Esta cena pode ser considerada como um reflexo do clima próprio das lojas e das reuniões dos Iluminados e de grupos afins, os quais promoveram aquela “revolução intelectual” que deveria, finalmente, desencadear a onda das revoluções políticas, de 1789 a 1843 (3).

Mas a dualidade contraditória dos dois temas — ou seja, por um lado, as sobrevivências do ritualismo hierárquico simbólico e iniciático e, por outro lado, a profissão de ideologias completamente opostas às que nós poderíamos deduzir de uma doutrina iniciática autêntica — é sobretudo evidente na Maçonaria moderna. Esta Maçonaria parece ter sido positivamente organizada no período dos rumores rosa-crucianos e quando os verdadeiros “Rosa-Cruz” deixaram a Europa. Elias Ashmole, que se diz ter tido um papel fundamental na organização da primeira Maçonaria inglesa, viveu entre 1617 e 1692. Contudo, segundo a maior parte dos autores, a Maçonaria, na sua forma actual de associação semi-secreta militante, não remonta para além de 1700 (4) — foi em 1717 que teve lugar a fundação da Grande Loja de Londres. Como antecedentes positivos, não fantasiados, a Maçonaria teve sobretudo as tradições de certas corporações medievais, nas quais os elementos principais da arte de construir, de edificar, eram simultaneamente tomados num sentido alegórico e iniciático. Deste modo a “construção do Templo” podia tornar-se sinónimo da “Grande Obra” iniciática, o desbaste da pedra bruta em pedra esquadriada podia aludir à tarefa preliminar de formação interior, e assim por diante. Podemos afirmar que, até ao princípio do séc. XVIII, a Maçonaria conservou este carácter iniciático e tradicional, e foi por isso, em relação à tarefa de uma acção interior, que ela foi chamada “operativa” (5). Foi em 1717 que, com a referida fundação da Grande Loja de Londres e com o aparecimento da chamada “Maçonaria especulativa” continental, se verificaram a substituição e a inversão de polaridade, a que já fizemos referência. Por “especulação” devemos entender, com efeito, a ideologia iluminista, enciclopedista e racionalista, ligada a uma correspondente interpretação desviada dos símbolos. A actividade da organização concentrou-se claramente no plano político-social, embora utilizando sobretudo a táctica da acção directa e manobrando com influências e sugestões, cuja origem era dificilmente identificável.

Pretende-se que esta transformação se tenha verificado apenas nalgumas lojas e que as outras tenham conservado o seu carácter iniciático e operativo, mesmo depois de 1917. Com efeito, este carácter pode ser encontrado nos ambientes maçónicos a que pertenceram um Martinez de Pasqually, um Claude de St. Martin e o próprio Joseph de Maistre. Todavia, devemos ter em conta que esta mesma Maçonaria, por sua vez, numa fase de degenerescência, uma vez que se revelou impotente perante a afirmação da outra e esta última acabou, praticamente, por a dominar. Nem tão pouco se constatou, por parte da Maçonaria que teria permanecido iniciática, qualquer acção para desafiar e desacreditar a outra, para condenar a actividade político-social e para impedir que, por toda a parte, ela se apresentasse própria e oficialmente como a verdadeira Maçonaria.

Se considerarmos, portanto, a Maçonaria “especulativa”, constatamos que, nela, os vestígios iniciáticos ficaram limitados a uma superestrutura ritual que, na Maçonaria de Rito Escocês, apresentou muitas vezes, nos diferentes graus que se seguem aos três primeiros (os únicos que têm uma relação efectiva com as tradições corporativas anteriores) um carácter inorgânico e sincretista, tendo sido recolhidos símbolos das tradições iniciáticas mais diversas, obviamente para criar a aparência de ter recolhido a herança de cada uma delas. Deste modo encontramos também nesta Maçonaria vários elementos da iniciação cavaleiresca, do hermetismo e da “Rosa-Cruz”: nele figuram “dignidades” como a de “Cavaleiro d'Oriente”, de “Príncipe Adepto”, de “Dignitário do Sacro Império”, de “Cavaleiro Kadosh” (ou seja, em hebraico, “Cavaleiro Santo”), equivalente a “Cavaleiro do Templo”, de “Príncipe Rosa-Cruz”. Em geral – e este ponto tem para nós um significado especial — existe, por parte da Maçonaria de Rito Escocês, uma particular pretensão em se reclamar precisamente da tradição templária. Assim, ela pretende que pelo menos sete dos seus graus sejam de origem templária, para além do 30.°, formalmente designado num grande número de lojas como o de Cavaleiro do Templo. Uma das jóias do grau supremo de toda a hierarquia (o 33.°) uma cruz teutónica contém a sigla J. B. M., que é quase sempre explicada pelas iniciais de Jacopus Burgundus Molay, que foi o último Grão Mestre da Ordem do Templo, surgindo também “De Molay” como um “santo-e-senha” deste grau: como se aqueles que nela são iniciados retomassem a dignidade e a função do chefe da Ordem gibelina destruída. A Maçonaria escocesa pretende, aliás, que muitos dos seus elementos lhe tenham sido transmitidos por uma organização mais antiga, conhecida como “Rito de Heredom”. Esta expressão é traduzida por vários autores maçónicos como “rito dos herdeiros”, entendendo-se precisamente por isso os herdeiros dos Templários. A lenda correspondente é que os raros Templários sobreviventes se teriam refugiado na Escócia, onde se puseram sob a protecção de Robert Bruce; por este foram agregados a uma organização iniciática pré-existente de origem corporativa, que então assumiu o nome de “Grande Loja real de Heredom”.

É fácil ver o alcance que teriam essas referências, especialmente naquilo a que nós chamámos “a herança do Graal”, se elas tivessem um fundamento real: elas forneceriam à Maçonaria um título de ortodoxia tradicional. Mas, na realidade, as coisas apresentam-se de uma maneira totalmente diversa. É de uma usurpação que se trata; não é uma continuação mas sim uma inversão da tradição anterior que aqui deve ser constatada. Isto revela-se de um modo característico se considerarmos no seu conjunto o referido 30.° grau do Rito Escocês que, nalgumas lojas, tem como palavra de ordem: “A vingança dos Templários”. A lenda que a isto se refere retoma o tema acima indicado: os Templários que teriam encontrado refúgio em certas organizações inglesas, nelas teriam criado este grau com a intenção de reorganizar a sua Ordem e de realizar a sua vingança. Ora a referida inversão do gibelinismo não poderia encontrar uma expressão mais clara do que neste comentário do ritual: “A vingança templária abateu-se sobre Clemente V, não no dia em que os seus ossos foram deitados ao fogo pelos Calvinistas da Provença, mas no dia em que Lutero sublevou metade da Europa contra o Papado em nome dos direitos da consciência. E a vingança abateu-se sobre Filipe o Belo, não no dia em que os seus restos foram atirados para o meio dos dejectos de S. Dinis por uma população em delírio, nem tão pouco no dia em que o último descendente revestido do poder absoluto saiu do Templo, na condição de prisioneiro do Estado, para subir ao patíbulo, mas sim no dia em que a Constituição francesa proclamou, diante dos tronos, os direitos do homem e do cidadão” (6). O facto de, em seguida, o nível acabar por descer do plano do indivíduo — o “homem” e o “cidadão” — ao plano das massas anónimas e dos seus dirigentes mascarados, resulta de uma história relacionada com o ritual de vários graus no Rito Escocês do Supremo Conselho da Alemanha, ela figurava no 4.° grau, o grau chamado “Mestre secreto”. Trata-se da história de Hiram, o construtor do Templo de Jerusalém, o qual, perante o rei sacral Salomão, demonstra ter um poder tão prodigioso sobre as massas que “o rei, que tinha fama de ser um dos maiores Sábios, descobriu que, para além da sua, existe uma potência maior, uma potência que, no futuro, se ela chegar a conhecer a sua própria força, exercerá uma soberania maior do que a sua (isto é de Salomão). Esta potência é o povo (das Volk)”. E acrescenta-se: “Nós, maçons de Rito Escocês, vemos em Hiram a personificação da humanidade”. Ora o rito, fazendo-os “Mestres secretos”, deveria conferir aos iniciandos maçons a própria natureza de Hiram, ou seja, deveria torná-los participantes deste poder misterioso de mover a humanidade enquanto povo, enquanto massa, poder que destituiria mesmo o próprio poder do rei sacral simbólico.

Quanto ao grau especificamente templário (o 30.°), convém notar ainda, no seu rito, a confirmação da associação do elemento iniciático com o elemento subversivo anti-tradicional, o que confere necessariamente ao primeiro as características de uma autêntica contra-iniciação, onde quer que o próprio rito não se reduza a uma cerimónia vazia, mas mobilize forças subtis. No grau em questão, o iniciado que derruba as colunas do Templo e calca aos pés a cruz, sendo em seguida admitido no Mistério da escada ascendente e descendente com sete degraus, é aquele que deve jurar vingança e concretizar ritualmente esse juramento, atingindo com um punhal a Coroa e a Tiara, isto é, os símbolos do duplo poder tradicional, da autoridade real e da autoridade pontifícia, exprimindo com isto o sentido de quanto a Maçonaria, como força oculta da subversão mundial, favoreceu no Mundo Moderno, partindo da preparação da Revolução Francesa e da constituição da Democracia americana, passando pelos movimentos de 48, até chegar à Primeira Guerra Mundial, à revolução turca, à revolução de Espanha e a outros acontecimentos análogos (6a). Enquanto no ciclo do Graal, como vimos, a realização iniciática é concebida de tal maneira que a ela se liga a intenção de fazer ressurgir o rei, no rito que acabámos de indicar encontramos precisamente o contrário, ou seja, a imitação de uma iniciação que se liga ao juramento (por vezes com a fórmula: “A vitória ou a morte”) de combater ou destruir qualquer forma de autoridade do alto.

De qualquer modo, o que mais nos interessa destas considerações é determinar o ponto em que a “herança do Graal” e de tradições iniciáticas análogas se detém e no qual, para além de eventuais sobrevivências de nomes e de símbolos, já não podemos constatar qualquer filiação legítima. No caso específico da Maçonaria moderna, por um lado o seu confuso sincretismo, o carácter artificial da hierarquia de grande parte dos seus graus — carácter evidente mesmo para um profano —, a banalidade das exegeses correntes, moralistas, sociais e racionalistas aplicadas a diferentes elementos retomados pela Maçonaria, com um conteúdo efectivamente esotérico — tudo poderia contribuir para que nela se visse um exemplo típico de organização pseudo-iniciática (7). Mas se considerarmos, por outro lado, a “direcção de eficácia” da organização em questão, em relação aos elementos acima referidos e à sua actividade revolucionária, surge a sensação precisa de estarmos perante uma força que, no campo do espírito, actua contra o espírito: uma força obscura de anti-tradição e de contra-iniciação. E então é muito possível que, nestas condições, os seus ritos sejam menos inofensivos do que se poderia pensar e que, muitas vezes, sem que aqueles que neles participam se dêem conta disso, eles estabeleçam precisamente o contacto com esta força, inacessível para a consciência vulgar.

Uma última observação. Na lenda do 32.° grau do Rito Escocês (“Príncipe Sublime do Segredo Real”) trata-se muitas vezes da organização e da inspecção de forças (concebidas como estando reunidas em vários “acampamentos”) que, uma vez conquistada “Jerusalém”, aí deverão construir o “Terceiro Templo”; Templo que se identifica com o “Sacro Império”, enquanto “Império do Mundo”. Ora discutiu-se muito a propósito dos chamados “Protocolos dos Sábios de Sião”, que contêm o mito de um minucioso plano de conjura contra o mundo europeu tradicional. É intencionalmente que empregamos a palavra “mito”, pretendendo deste modo deixar em aberto a questão da veracidade ou da falsidade desse documento, muitas vezes explorado por um vulgar anti-semitismo (8). O que acontece na realidade é que este documento, tal como vários outros publicados aqui e ali, tem um valor sintomático, uma vez que os principais acontecimentos da História contemporânea que se verificaram depois da sua publicação, revelaram uma impressionante concordância com o plano nele descrito. Em geral, escritos semelhantes reflectem a obscura sensação da existência de uma “inteligência” orientadora por detrás dos factos mais característicos da subversão moderna. Portanto, qualquer que seja a finalidade prática da sua divulgação ou, no caso de serem falsos e inventados, da sua compilação, eles recolheram “algo que existe no ar” e que a história vai, pouco a pouco, confirmando. Ora nos “Protocolos” vemos precisamente reaparecer a ideia de um futuro império universal e de organizações que trabalham subterraneamente para o seu advento (9). Mas aqui trata-se de uma contrafacção a que poderemos chamar satânica, porque aquilo que está efectivamente em primeiro plano é a destruição e o desenraizamento de tudo o que é tradicional, valores da personalidade e verdadeira espiritualidade. O suposto Império é a concretização suprema da religião do homem tornado terrestre, que fez de si mesmo a razão extrema e que tem Deus por inimigo. É o tema com que parece deverem concluir-se o “declínio do Ocidente” de Spengler e a idade obscura – kali-yuga – da antiga tradição hindu.

* * *

A título de conclusão, será oportuno fornecer algumas indicações acerca da razão de ser deste livro.

A nossa finalidade não foi, evidentemente, juntar um novo contributo à numerosa série dos ensaios crítico-literários consagrados aos assuntos aqui tratados. Neste campo, o nosso livro poderá ter, quando muito, o valor de mostrar a fecundidade do método ao qual, por oposição ao método das pesquisas académicas correntes, chamamos “tradicional” (10).

Um objectivo mais específico respeitou à determinação da natureza do conteúdo espiritual da matéria examinada. Quanto a isso, o presente livro liga-se a vários outros por nós escritos com a intenção de acusar as deformações que os símbolos e as doutrinas tradicionais têm sofrido por parte de autores e correntes dos tempos modernos. Ao longo da nossa exposição aludimos, por exemplo, a propósito do ciclo do Graal, à falsificação do seu espírito e dos seus temas devida a Richard Wagner. Chegou-se a um ponto tal que, se o grande público ainda sabe alguma coisa do Graal, de Parsifal e de tudo o resto, sabe-o unicamente em relação ao modo arbitrário, deturpado e mistificador com que a obra musical de Wagner apresentou a saga, com base numa incompreensão fundamental: incompreensão que, aliás, ele demonstrou igualmente na utilização de muitos temas da antiga mitologia nórdico-germânica no seu “Anel dos Nibelungos”.

A mesma observação aplica-se às interpretações de um certo espiritualismo, o qual, muitas vezes influenciado pelo wagnerismo e desprovido de todo o conhecimento sério e directo das fontes, retomou de uma forma diletante o ciclo do Graal nos termos de um pretenso “esoterismo cristão”, recamando-o de fantasias de toda a espécie, em grupinhos e conventículos. Mostrámos, pelo contrário, que os temas fundamentais do Graal não são-cristãos e pré-cristãos e vimos também a que ordem tradicional de ideias, inspiradas pela espiritualidade real e heróica, eles se ligam. No ciclo em questão, os elementos cristãos são unicamente secundários e de cobertura; eles derivam de uma tentativa de adaptação que jamais conseguiu alcançar aquilo que corresponde a uma substancial heterogeneidade de inspiração. Tal como noutros casos, também aqui o esforço de fabricar um “esoterismo cristão” inexistente deve ser considerado desprovido de qualquer fundamento.

Apresentado como um pretenso Mistério cristão, falta, pois, ao Mistério do Graal a relação essencial e particular com uma missão e com um ideal que, como vimos, ultrapassam um plano puramente iniciático e se apresentaram também no Ocidente no interior de um determinado ciclo histórico.

A isto corresponde um outro objectivo do presente estudo, que deve parecer bastante claro ao leitor depois das últimas considerações por nós expostas a propósito da involução do gibelinismo. Hoje desceu-se tão baixo, que a palavra “gibelinismo” é novamente utilizada e surge mesmo nas polémicas políticas para designar a defesa do direito de um Estado “laico”, “moderno” e aconfessional, contra as ingerências da Igreja católica e de partidos de tendências clericais no campo político, social e cultural. Esperamos que o conjunto da nossa exposição tenha posto em evidência da maneira mais clara que se trata aqui de um dos casos mais lamentáveis da perda do significado original de um termo. Na sua essência, o gibelinismo não passou de um ressurgimento do ideal sacral e espiritual –  nas vias, mesmo iniciáticas, por nós indicadas – da autoridade própria do chefe de uma organização política de carácter tradicional, portanto exactamente o oposto de tudo aquilo que é “laico” e, no sentido degradado moderno, político e estatal (11).

Podemos interrogar-nos se o facto de apresentar à luz este conteúdo do gibelinismo, do reino do Graal e do Templarismo terá hoje um sentido diferente do de restabelecer a verdade perante as referidas incompreensões e falsificações. A resposta a essa questão deve permanecer indeterminada. Já no simples domínio das ideias, o carácter da cultura hoje dominante é tal, que a maior parte dos nossos contemporâneos não podem sequer formar uma ideia daquilo de que se trata. Em relação ao resto, só uma pequena minoria poderia compreender que, do mesmo modo que as Ordens ascético-monásticas realizaram uma missão fundamental no caos material e moral que se seguiu à queda do Império Romano, também uma Ordem, nos termos de um novo Templarismo, seria de importância decisiva num mundo que, tal como o actual, apresenta formas bastante mais avançadas de dissolução e de desordem interior do que aquela época. O Graal conserva o valor de um símbolo no qual foi superada a antítese entre “guerreiro” e “sacerdote”, e, assim, também o equivalente moderno dessa antítese, ou seja, as formas materializadas e, neste caso, bem podemos dizer luciféricas, telúricas ou titânicas da vontade de poder, por outro lado, e, do outro, as formas “lunares” da religião sobrevivente de fundo devocional e de confusos impulsos místicos e neo-espiritualistas em direcção ao sobrenatural e ao além.

Se nos limitarmos a considerar o indivíduo e alguns indivíduos, o símbolo mantém sempre um valor intrínseco, indicativo de um determinado tipo de formação interior. Mas passar daqui para o conceito de uma Ordem, de um Templarismo moderno, e acreditar que, mesmo que este pudesse tomar forma, ele estaria em condições de influenciar directa e sensivelmente as formas históricas gerais hoje dominantes e processos já irreversíveis, é bastante arriscado. Já os Rosa-Cruz – os Rosa-Cruz autênticos – no século XVIII, julgaram vã uma tal tentativa. É por isso que, mesmo aquele que tivesse recebido a “espada”, deve esperar para a empunhar, podendo o momento certo ser unicamente aquele em que as forças com as quais não foi ainda medida a cadeia, encontrarão um limite, em função de um determinismo intrínseco, e um ciclo se fechar – o momento em que, perante situações existenciais extremas, um instinto desesperado de defesa brotando do mais profundo (poderíamos dizer: da “mémoire de sang”) eventualmente galvanize e dê força a ideias e a mitos ligados à herança de tempos melhores. Antes que isso suceda, pensamos que um possível Templarismo pode apenas revestir um carácter defensivo interior, em relação à tarefa de manter inacessível a simbólica – mas não só simbólica – “cidadela solar”.

Isto esclarece o significado último e não desprovido de importância que pode ter um estudo sério e empenhado dos testemunhos e dos temas da saga templária e do alto gibelinismo. Com efeito, compreender e viver esses temas significa penetrar num campo de realidades supra-históricas e, desse modo, alcançar gradualmente a certeza de que o Centro, invisível e inviolável, o soberano que deve despertar, o próprio herói vingador e restaurador, não são fantasias de um passado morto mais ou menos romântico, mas sim a verdade daqueles que, sozinhos, nos nossos dias, podem legitimamente chamar-se vivos.


REFERÊNCIAS

(1) – Por um mero acaso — graças a documentos encontrados na posse de um correio, morto por um raio — também se obtiveram provas positivas de uma acção revolucionária organizada, levada a cabo pela seita dos Iluminados.

(2) – Sobre o mecanismo deste processo, na sua analogia com uma acção necromática, cf. R. Guénon, Le règne de la quantité et les signas des temps, Paris, 1945, cap. XXVI, XXVII.

(3) – A sigla L.D.P. aparece no primeiro dos chamados graus cavaleirescos maçónicos (o 15.° da hierarquia do Rito Escocês). Obscuramente, parece que a lenda deste grau faz alusão ao deslocamento da função do iniciado; nela se fala, com efeito, de marcas de dignidade principesca que o iniciando recebe de Ciro juntamente com a liberdade, mas que depois perde; tendo, contudo, chegado junto do Mestre que se refugiara entre as ruínas do templo salomónico com alguns fiéis sobreviventes, ele aprende o duplo valor destes símbolos e recebe, com a espada, um novo título.

(4) – Cf. A. Pike, Morals and Dogmas of the ancient and accepted Scotch rite, Richmond, 2ª. ed., 1927.

(5) – Convém observar que, já no seu período operativo e iniciático se revela, na Maçonaria, uma certa usurpação, quando ela refere a si própria a “Arte Régia”. A iniciação ligada aos ofícios corresponde, com efeito, ao antigo Terceiro Estado (a casta hindú dos vayça), ou seja, a estratos hierarquicamente inferiores à casta dos guerreiros, a que corresponde legitimamente a “Arte Régia”. Além disso, convém ainda referir que foi a acção revolucionária da Maçonaria especulativa moderna que minou a civilização do Segundo Estado e preparou, com as democracias, as civilizações do Terceiro Estado. Em relação ao primeiro ponto, mesmo sob a perspectiva mais exterior, é difícil escapar a uma impressão de comicidade perante as fotografias de reis ingleses que, enquanto dignitários maçónicos, usam o avental e outros símbolos das corporações de artífices.

(6)  Ritual do XXX grau do Supremo Conselho da Bélgica do rito escocês antico e aceite, Bruxelles, s. d., pp. 49, 50. Na acção dramática ritual faz-se aparecer Squin de Florian, aquele que teria denunciado os Templários e que, como justificação, afirma o princípio: “A Igreja está acima da liberdade” ao que o Mestre da loja replica: “A liberdade está acima da Igreja”. Evidentemente, a primeira proposta está certa se se tratar da pretensão à liberdade por parte de qualquer indivíduo, enquanto a segunda é verdadeira se se tratar de alguém que tenha a qualificação necessária para passar além das limitações próprias de uma forma histórica particular de autoridade espiritual.

(6a) – Em relação a tudo isto ler “História da Franco-Maçonaria em Portugal”, de Borges Grainha, e “Para a História da Maçonaria em Portugal”, de António Carlos Carvalho, publicada nesta colecção. (A.C.C.).

(7) – É surpreendente encontrarmos num autor como René Guénon, aliás tão qualificado no domínio dos estudos tradicionais, a afirmação de que, para além das associações de operários, a Maçonaria seria quase a única organização actualmente existente no Ocidente que, apesar da sua degenerescência, “pode reivindicar uma origem tradicional autêntica e uma transmissão iniciática regular” (Aperçus sur l'initiation, Paris, 1946, pp. 40, 103). O diagnóstico correcto que considera a Maçonaria como um sincretismo pseudo-iniciático sustentado por forças subterrâneas de contra-iniciação, diagnóstico que pode ser formulado a partir da perspectiva do próprio Guénon, é mais ou menos contestado por ele (cf. ibid., p. 201). Não se compreende bem como é que isso se pode conciliar com o carácter de tradicionalidade que Guénon reconhece, simultaneamente, ao Catolicismo, inimigo moral da Maçonaria moderna. De um ponto de vista mais particular, um desconhecimento deste género é igualmente perigoso, pois fornece armas preciosas a uma polémica católica interessada. A mistificação e o uso subversivo do Mistério que se produziu, através de um fenómeno de inversão, nas correntes já citadas e nomeadamente na Maçonaria, numa época recente (ainda que, anteriormente, ele não passasse de uma anomalia teratológica), serviu de apoio a uma tese extravagante do Catolicismo militante: aquele segundo a qual toda a tradição iniciática teria tido, em todas as épocas, um carácter tenebroso, diabólico, anti-cristão e, pelas suas consequências, subversivo. Trata-se, evidentemente, de uma brincadeira de mau gosto. Mas não será esta tese porventura sustentada por aqueles que, de ânimo leve, atribuem à Maçonaria um carácter de ortodoxia e de filiação iniciática autêntica?
Gostaríamos que o leitor não supusesse da nossa parte a menor animosidade preconcebida em relação à Maçonaria. Pessoalmente, mantivemos relações amigáveis com alguns dos seus altos expoentes que se esforçaram por valorizar os seus vestígios iniciáticos e tradicionais. Nesse sentido trabalharam também, por ex., Ragon, A. Reghini, O. Wirth. Sabemos, além disso, da existência de certas lojas, como a Johannis Loge e outras, que se mantiveram afastadas da actividade político-social, apresentando-se essencialmente como centros de estudos. Mas, por amor da verdade, não poderíamos modificar em ponto algum o quadro geral da Maçonaria moderna, que aqui apresentámos do ponto de vista histórico, tendo em consideração a direcção predominante, efectiva e comprovada, da sua acção.

(8) – Nos “Protocolos dos Sábios de Sião” supõe-se que os fios da conjura se encontrem nas mãos do hebraismo, mas faz-se igualmente referência à Maçonaria. Outro ponto que é posto em relevo em relação à Maçonaria é que os elementos por ela recolhidos de tradições propriamente ocidentais passam quase para segundo plano quando confrontados com os elementos hebraicos — a maior parte das “lendas”, assim como quase todas as “senhas”, têm origem hebraica. Este é outro ponto suspeito. Com efeito, mesmo no conjunto do hebraismo, podemos contatar um processo de degradação e de inversão que despertou, igualmente, forças de contra-iniciação ou de subversão anti-tradicional. Essas forças talvez tenham desempenhado um papel não descurável na história secreta da Maçonaria.

(9) – Convém observar, de passagem, que a obra revolucionária da Maçonaria permanece essencialmente limitada à preparação e à consolidação da época do Terceiro Estado (que deu lugar ao mundo do capitalismo, da democracia, da civilização e da sociedade burguesas). A última fase da subversão mundial, uma vez que corresponde ao advento do Quarto Estado, relaciona-se com outras forças que vão necessariamente além da Maçonaria e do próprio Judaísmo, embora se tenham servido, muitas vezes, das destruições favorecidas por uma e pelo outro. É significativo que as actuais vanguardas da época do Quarto Estado tenham escolhido o símbolo do pentagrama, a estrela de cinco pontas, como estrela vermelha dos Sovietes. O antigo símbolo mágico do poder do homem enquanto iniciado e dominador sobrenatural símbolo que consagra igualmente a espada do Graal — torna-se, por inversão, o símbolo da omnipotência e do demonismo do homem materializado e colectivizado no reino do Quarto Estado.

(10) – Em relação à edição alemã do presente livro (Geheimnis doe Grais, München, 1954), esse mérito já foi reconhecido: cf. W. Heinrich, Ueber die traditionelle Methode (Salzurg, 1954).

(11) – Sobre o gibelinismo em relação com a temática política actual, cf. o nosso livro Gli uomini e le rovine (Roma, 3.a ed. 1971).


FONTE: EVOLA, Julius. O mistério do Graal. Lisboa: Vega,1976. p. 241-256.

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