1 INICIAÇÃO À TEORIA DO IMAGINÁRIO DE GILBERT DURAND
Por Danielle Perin Rocha Pitta
1.1 O
DEVER DE IMAGINAR
Você já teve a oportunidade de
ver, ou já ouviu falar nas diferenças existentes entre os esqueletos humanos
nas diversas culturas? No Musée de l’Homme, em Paris, por exemplo, pode-se ver
crânios achatados, outros alongados, outros ainda afundados no meio para formar
uma divisão; existem também pés com as falanges torcidas; e varias outras
deformações.
Depois do esqueleto, muitas
culturas modificam a pele através de cortes ou deformações: esticam-se os
lábios ou as orelhas, fazem-se perfurações e aranhões.
Chegando-se à modificação mais
superficial deste corpo através da roupa e da pintura.
Mas o que leva o ser humano a
tanto modificar o que foi feito pela natureza? Certamente seria difícil dar uma
explicação baseada na utilidade dessas modificações. Na verdade, por estas
ações, o homem esta exercendo uma faculdade que lhe e própria, que é a de dar
sentido ao mundo.
Para criar sentido,
entretanto, ele põe em atividade uma função da mente que é a imaginação.
O raciocínio, a razão, outra
função da mente, permite sem dúvida analisar os fatos, compreender a relação
existente entre eles, mas não cria significado. Para que a criação ocorra é
necessário imaginar. E o que fazem, na sociedade ocidental, os filósofos, os
cientistas sociais, os que estudam as religiões, os políticos, os arquitetos,
os artistas, os físicos, os matemáticos... .Criam filosofias, teorias,
religiões, obras.... Criam, a cada instante, o mundo.
A ciência, como conhecimento,
pode ser obtida seguindo-se os mais variados caminhos. Nas ciências humanas,
durante muitos anos, optou-se por um caminho calcado naquele das ciências
naturais e que se acreditava ser objetivo.
Atualmente, em 1993, as
diversas críticas e as modificações do pensamento sobre o assunto, em parte em
relação aos progressos da física, consideram como impossível estudar o ser
humano como se esse fosse um objeto, e talvez mesmo desinteressante.
Nesta perspectiva, um estudo
baseado na observação sensível dos fatos aparece como muito mais adequada para
a obtenção de um conhecimento, aprofundado de um objeto tão complexo quanto o
ser humano.
Este texto, para abordar o
Imaginário, não terá pois como finalidade retraçar no tempo e no espaço a
história desta ciência na tentativa de dar uma visão completa sobre o assunto,
mas optara por uma visão em particular, que é a do antropólogo Gilbert Durand.
A tentativa será de, à partir das “Estrutura Antropológicas do Imaginário” e da
“Imaginação Simbólica”, apresentar uma síntese da sua proposta em uma linguagem
acessível a pessoas sem formação sobre o assunto.
Deve-se ressaltar ainda que o
Imaginário, como encruzilhada das mais diversas ciências, diz respeito ao
conhecimento corno um todo, isto é, às diversas disciplinas.
1.1.1 Quando e Como Surgiu, no
Ocidente, o Estudo do Imaginário?
O ser humano, para além da
funcionalidade dos seus atos, é aquele que atribui significados. Assim é que
aquilo que poderia parecer como absolutamente natural, é transformado pelas
diversas culturas para adquirir significado. Altera-se a aparência do corpo com
as mais diversas escarificações, com o corte dos cabelos, com os enfeites, a
roupa... No plano das necessidades de base, o procedimento não é diferente:
para a alimentação existem as proibições alimentares, o modo de apresentação
dos alimentos, a maneira de assimilá-los, etc... Enfim, nada para o ser humano
é insignificante. E dar significado implica entrar no p1ano do simbólico.
Se simbolizar faz parte da
própria condição humana, é compreensível que estudiosos das mais variadas
disciplinas se tenham desde sempre interessado por este nível de expressão. No
entanto, para a cultura ocidental, estes estudos foram feitos durante longo
tempo de maneira desorganizada.
Modernamente, pode-se
considerar que é com o filósofo francês Gaston Bachelard (1884-1962) que tem
início um estudo sistemático e Interdisciplinar (a partir de diversas
disciplinas ou campos de estudo) sobre o símbolo: isto ocorre com a fundação da
Société de Symbolisme em 1930, em Genebra, que, a partir de 1962 passa a
publicar os Cahiers Internaticnaux de Syrnbolisme. Discípulo de Bachelard,
Gilbert Durand funda em 1967 o Centre de Recherches sur l’Imaginaire, em
Charnbéry, na França, que passa a publicar a revista Circé. Com uma proposta,
também, de interdisciplinaridade, o “Centre” se desenvolve com forte influência
das obras de Bachelard e do psicanalista suíço C. G. Jung (1875 - 1961).
A partir destes dois centros e
da difusão da base, os grupos de estudo sobre o imaginário se multiplicam.
Atualmente existem centros de pesquisa em mais de vinte países, e em cada pais,
em diversas universidades. Na França, a reflexão sobre a dimensão simbólica tem
sido aprofundada - a partir de bases teóricas diversas - por estudiosos como
Paul Ricoeur, René Alleau, Edgar Morin, Michel Maffesoli, Jean Duvignaud, Jean
Baudrillard, J.J. Wunenburger, entre outros, alem do próprio Gilbert Durand.
1.2 O
IMAGINÁRIO: ESSÊNCIA DO ESPIRITO
Ao longo da exposição da sua
teoria, Gilbert Durand define ou dá elementos de definição do imaginário, que
serão aqui reagrupados:
O Imaginário - isto é, o
conjunto de imagens e de relações de imagens que constitui o capital pensado do
homo ‘sapiens’ - nos aparece como o grande denominador fundamental onde vêm se
arrumar (ranger) todos os procedimentos do espírito humano.
O imaginário... é a norma
fundamental... perto da qual a contínua flutuação do progresso científico
aparece como um fenômeno anódino e sem significado.
Entre a assimilação pura do
reflexo e a adaptação limite da consciência à objetividade, constatamos que o
imaginário constituía a essência do espírito, isto é, o esforço do ser para
erguer uma esperança viva diante e contra o mundo objetivo da morte.
Para poder falar com
competência do Imaginário não se deve confiar nas exigüidades e nos caprichos
da sua própria imaginação, mas possuir um repertório quase exaustivo do
Imaginário normal e patológico em todas as camadas culturais que nos propõem a
história, as mitologias, a etnologia, a lingüística e as literaturas.
1.3 DO
SÍMBOLO AO SIMBÓLICO AO IMAGINÁRIO
Porque falar em imaginário e
não simplesmente em simbolismo? Para obter resposta a esta pergunta é
necessário fazer um breve percurso pelas principais teorias que serviram de
base à reflexão de Gilbert Durand.
Primeiro deve-se dizer que a
proposta de abordagem é fenomenológica: dois filósofos alemães, W. Dilthey
(1833-1911) e E.Husserl (1869 -1938), preocupados com o significado da obra ou
da significação de um modo geral, estabelecem
a oposição existente entre um método explicativo (estabelecendo relações de
causa a efeito) que pode ser aplicado a natureza, e um método compreensivo,
próprio para o estudo do homem. De maneira que o objetivo do estudo é decifrar
o sentido próprio de toda a realidade humana, de toda expressão humana da vida
e do espírito.
Pode-se considerar que com
Bachelard, definitivamente, em relação às ciências humanas, a visão do homem
como se fosse um objeto deixa de ser a mais importante.Segundo o filósofo, a
validade do conhecimento é a mesma seja ele adquirido pela experimentação ou
pela poesia. Bachelard demonstrou, através da sua obra, que a organização do
mundo - ou seja, as relações existentes entre os homens, entre os homens e a
terra, entre os homens e o universo - não é o resultado de uma série de
raciocínios, mas a elaboração de uma função da mente (psíquica) que leva em
conta afetos e emoções. Nesta perspectiva ele coloca algumas idéias básicas:
que o símbolo permite estabelecer o acordo entre o “eu” e o mundo; que os
quatro elementos (terra, ar, água e fogo) são os “hormônios da imaginação”. O
símbolo é pois dinâmico e a partir desta constatação Bachelard estabelece a
relação entre símbolo, e imaginário:
O vocábulo fundamental que
corresponde à imaginação, não é a imagem, é o imaginário. O valor de uma imagem
se mede pela extensão de sua aura imaginária. Graças ao imaginário, a
imaginação é essencialmente aberta, evasiva. Ela é no psiquismo humano a
experiência da abertura, a experiência da novidade...
Por outro lado, Jung (1875-
1961), psicanalista suíço, intrigado com o fato de seus clientes relatarem
sonhos idênticos a mitos de outras culturas, propõe o conceito de inconsciente
coletivo, memória da experiência da humanidade. O
mito seria então a organização de
imagens universais (arquetípicas) em constelações, em narrações, sob a ação
transformadora da situação social. O que implica em uma unidade entre o
indivíduo, a espécie e o cosmos. O
inconsciente coletivo é estruturado
pelos arquétipos, ou seja, por disposições hereditárias para reagir.
Esses arquétipos se expressam em imagens simbólicas coletivas, o símbolo sendo
a explicitação da estrutura do arquétipo.
Cassirer (1874-1945) filósofo
alemão da escola neo-kantiana, por sua vez, mostra a importância do homem como
animal simbólico. Para ele, os símbolos têm propriedades criadoras e
libertadoras.
Para Mircea Eliade
(1907-1987), ainda, autor do “Tratado da Historia das Religiões” e estudioso do
pensamento mítico, o mito é a experiência existencial do homem que lhe permite
encontrar-se e compreender-se. A atividade criadora do espírito humano lida com
toda a experiência humana. A Física não descreve o mundo mas o ordena.
A partir destas orientações,
entre outras, Gilbert Durand vai falar em imaginário e não em simbolismo, pois
o símbolo seria a maneira de expressar o imaginário.
Freqüentemente, para se tratar
de simbolismo, faz-se referência a “sistemas simbólicos”: aborda-se então o
simbolismo religioso, político, etc. Mas para Gilbert Durand, esses sistemas
simbólicos não são independentes, pois decorrem de uma visão de mundo
especifica, imaginária, que é a própria cultura.
1.3.1
O Método de Convergência
Assim como aquela do autor das
“Estruturas antropológicas do imaginário”, esta exposição deverá ser feita de
maneira linear, quando de fato não existe anterioridade de nenhuma etapa sobre
a outra. Para se abordar a “convergência” (maneira como se organizam) dos
símbolos, é necessário definir os principais termos empregados:
1.3.1.1
Schéme
É anterior à imagem,
corresponde a uma tendência geral dos gestos, leva em conta as emoções e as
afeições. Ele faz a junção entre os gestos inconscientes e as representações.
Exemplos: à verticalidade da postura humana, correspondem dois schémes: o da
subida e o da divisão (visual ou manual); ao gesto de engolir, correspondem os
schémes da descida (percurso interior dos alimentos) e do aconchego na
intimidade (o primeiro alimento do homem sendo o leite materno, a amamentação)
1.3.1.2
Arquétipo
É a representação dos schémes.
Imagem primeira de caráter coletivo e inato; é o estado preliminar, zona onde
nasce a idéia(Jung) . Ele constitui o ponto de junção entre o imaginário e os
processos racionais. Exemplos: o schéme da subida vai ser representado pelos
arquétipos (imagens universais) do chefe, do alto; o schéme do aconchego, pelos
da mãe, do colo, do alimento.
1.3.1.3
Símbolo
É todo signo concreto
evocando, por uma relação natural, algo ausente ou impossível de ser percebido.
Uma representação que faz “aparecer” um sentido secreto. Eles são visíveis nos
rituais, nos mitos, na literatura, nas artes plásticas.
1.3.1.4
Mito
O mito sistema dinâmico de
símbolos, arquétipos e schémes que tende a se compor em relato, ou seja, que se
apresenta sob forma de história. Por este motivo ele já apresenta um inicio de
racionalização.
Como forma então o imaginário
de uma cultura dada?
Para a compreensão do que
segue, deve-se considerar que o processo de formação das imagens é o mesmo quer
se trate de um indivíduo, quer se trate de uma cultura.
A sensibilidade própria de uma
cultura em interação com um meio e circunstâncias determinadas, valoriza mais
ou menos os schémes que, como um todo, correspondem à condição humana.Assim é
que uma cultura pode perceber o universo em duas perspectivas: como cheio de
divisões e oposições1, e outra o percebera como unido e harmonioso.
A primeira estará valorizando
os schémes da divisão entre opostos: alto/baixo, bem/mal etc. e valorizará a
individualidade, o arquétipo do herói, o exercício do poder, a ação (como, por
exemplo, os Mundugumor estudados por M.Mead: tribo da Nova Guiné australiana,
os Mundugumor são canibais e caçadores de cabeças, individualistas e ávidos de
poder).
A segunda, estará valorizando
a comunidade, o plural, o arquétipo da mãe, do aconchego, o ato de proteger, o
refugio (como por exemplo os Arapesh estudados pela mesma M.Mead: tribo do nordeste da Nova Guiné que têm por
principais valores a comunidade e a harmonia). Isto não significa que todos os
elementos da cultura se encontram neste registro de sensibilidade e percepção,
mas que existe um pólo predominante. Por este motivo não se trata de
classificar uma cultura em tal ou tal estrutura mas de perceber o tipo de
dinamismo que se encontra em ação e polarização predominante. O que leva à
determinação do “trajeto antropológico” em determinada cultura ou grupo social.
O schéme é pois a dimensão
mais abstrata, correspondendo ao verbo, à ação básica de dividir, unir,
confundir. O arquétipo, dando forma a esta intenção fundamental, já vai ser uma
imagem, herói, mãe, ou tempo cíclico, mas universal. Já o símbolo, vai ser a
tradução desse arquétipo dentro de um contexto específico. Exemplo: schéme:
unir, proteger; arquétipo: a mãe; símbolo para a cultura cristã: a virgem
Maria.
O mito vai transformar em
linguagem, em relato (história),as escolhas assim feitas, e este relato, por
sua vez vai organizar o mundo, estabelecer o modo das relações sociais, e seus
personagens vão servir de modelo para a ação cotidiana dos indivíduos (em “o
duplo e a metamorfose”da antropologia franco-brasileira Monique Augras, pode-se
observar a importância do modelo, do exemplo dado pelos orixás na vivência
cotidiana dos adeptos do Candomblé, no Rio de Janeiro).
São pois os schémes,
arquétipos, símbolos e mitos que vão, a partir da sua organização, feita por
uma cultura dada, orientar o desenvolvimento desta cultura.
1.4.1
Os Símbolos Convergem
As imagens vêm se organizar em
torno de um “núcleo” e formam constelações, se organizando a um só tempo em
torno de imagens de gestos, de schémes, e em torno de objetos privilegiados
pela sensibilidade.
O objetivo inicial da tese de
Gilbert Durand era o de estabelecer uma relação de imagens colhidas em culturas
diversas. Para tanto, o autor faz um levantamento de imagens em grande número
de culturas, nas mitologias, nas artes, seja na literatura ou nas artes
plásticas: é para organizar o material obtido, que o autor parte da idéia da
existência de um “trajeto Antropológico”, ou seja, uma maneira própria para
cada cultura de estabelecer a relação existente entre a sua sensibilidade
(pulsões subjetivas) e o meio em que vive (tanto o meio geográfico como
histórico e social).
O trajeto antropológico pode
partir tanto da cultura como do natural psicológico, o essencial da representação
e do símbolo estando contido entre estas duas dimensões.
Uma vez levantadas às imagens,
na tentativa de classifica-las, o autor percebe que estas se dividem em dois
grupos que se distinguem pelo seu significado fundamental. Seguindo a distinção
efetuada anteriormente por outros filósofos, Gilbert Durand reagrupa as imagens
em dois “regimes”: o diurno (relativo ao dia) e o noturno. Esta classificação
leva em conta a existência de uma maneira de organizar, de um dinamismo,
própria a cada cultura, dinamismo esse que se encontra na base das organizações
(convergências) dos símbolos que formam as constelações de imagens.
Seguindo uma lógica própria,
os símbolos se reagrupam em torno de núcleos organizadores. As constelações de
imagens são estruturadas por isomorfismo (que se apresenta sob a mesma forma)
dos símbolos convergentes. Por exemplo: as ondas do mar vão se ligar às ondas
dos cabelos, que por sua vez se ligam à feminilidade, imagens todas convergindo
em torno da passagem do tempo que passa e não volta.
Finalmente, antes de se dar
início ao detalhe da teoria, deve-se levar em conta a hipótese segunda a qual
existe uma estreita relação entre os gestos do corpo e as representações
simbólicas.
1.5 OS
REGIMES DAS IMAGENS E AS ESTRUTURAS DO IMAGINÁRIO
Existe um isomorfismo de
schémes, de arquétipos e de símbolos, presente nos mitos ou nas constelações de
imagens. A constelação da existência desse isomorfismo leva a perceber certas
normas de representação imaginária, bem definidas e relativamente estáveis. Estas
representações agrupadas em torno de schémes originários, são chamadas
estruturas. Considera-se aqui a estrutura como uma “forma transformável”.
Cada imagem, seja ela mítica,
literária, visual, se forma em torno de uma orientação fundamental que se compõe
dos sentimentos próprios de uma cultura, assim como de toda a experiência
individual e coletiva. Este eixo (orientação) básico corresponde ao schéme.
Assim, por exemplo, temos uma imagem mítica (presente na mitologia) que é a do
cangaceiro (afetividade e experiência regionais), ligada ao arquétipo do herói
(universal), ligado ao schéme da divisão (entre o bem e o mal, por exemplo).
Pois Gilbert Durand percebe no
material que estuda duas intenções fundamentalmente diversas na base da
organização das imagens: uma dividindo o universo em opostos (alto/baixo,
esquerda/direita, feio/bonito, bem/mal etc.), outra unindo os opostos,
complementando, pela luz que permite as distinções, pelo debate. O segundo é o
regime noturno, caracterizado pela noite que unifica pela conciliação.
Estes dois regimes da imagem
recobrem três estruturas do imaginário. Estruturas estas que dão respostas à
questão fundamental do homem que é a sua mortalidade.
Morte e angústia existencial
se expressam através das imagens relativas ao tempo.
1.5.1
O Regime Diurno
1.5.1.1
As faces do tempo
Para falar da dimensão
simbólica é necessário ter em mente que o símbolo se caracteriza pela sua
ambigüidade e pelo sem fim de seus significados. De maneira que, a seguir,
serão vistos somente os aspectos angustiantes dos elementos citados, os
aspectos positivos fazendo parte de outras constelações de imagens.
Ligados por uma lógica
própria, os símbolos expressando a angústia se dividem em três grandes temas:
A)
Símbolos teriomórficos:
São aqueles ligados à
animalidade angustiante sob várias formas. É necessário distinguir o animal
físico do animal simbólico. Assim são encontrados:
- O formigamento (grouillement), que diz respeito a larvas amontoadas
visguentas e agitadas, a insetos em geral, e que expressam a repugnância
primitiva diante da agitação incontrolável que é o arquétipo do caos. São
baratas correndo em todos os sentidos, a “bicheira” que se desenvolve nos
animais, uma casa de cupim, por exemplo.
- A
animação, o movimento em si, incontrolável, dos grandes animais. Aí se
encontram principalmente o cavalo e o touro que, em diversas mitologias,
representam a morte. “O folclore e as tradições populares germânicas e
anglo-saxônicas conservam este significado negativo e macabro do cavalo: sonhar
com um cavalo é sinal de morte próxima”. O tropel do animal, relacionado ao
trovão, já é mau agouro (os cineastas bem o sabem). O touro desempenha o mesmo
papel imaginário do que o cavalo: “todas as culturas paleo-orientais simbolizam
o poder meteorológico e destruidor pelo touro”. A sua força bruta é mortal (não
é a toa o sucesso das touradas: vencer o touro é vencer a morte). É a mesma
angústia que motiva os dois simbolismos: a angústia diante da mudança, da fuga
do tempo, do “mau” tempo.
- A “mordicância” ou ato de morder, de devorar, é outro aspecto
angustiante da animalidade. Aqui, a imagem significativa primeira da
animalidade não está mais centrada no movimento, seja ele formigamento ou
tropel, mas na boca aberta e cheia de dentes. Nesta ordem de pensamento vão ser
encontrados os lobos (principalmente para o Ocidente), os leões (para os
trópicos e o Equador), as onças pintadas (para o Brasil) que em diversas
mitologias e contos infantis devoram seja as pessoas, seja a lua (que
representa o tempo), e também os “ogros” (comedores de criancinhas), e o
próprio Kronos, o tempo, devorando seus próprios filhos. “Terror diante da
mudança e diante da morte devorante, tais parecem ser os dois primeiros temas
negativos inspirados pelo simbolismo animal”.
B)
Símbolos nictomórficos
Dizem respeito à escuridão.
Eles se subdividem em:
- Situação de trevas, seja provocada como é o caso do “choque negro”
do Rorschach (teste projetivo em psicologia), seja natural como a cegueira. No
folclore, a hora final do dia, ou a meia-noite, são consideradas muito
perigosas: “é a hora em que os animais meléficos e os monstros infernais se
apossam dos corpos e das almas”. Os psicólogos notam por sua vez que a manha
negra (Rorchach), induzindo a situação de trevas, provoca imagens de caos,
agitação desordenada. Já a cegueira se encontra freqüentemente, nas diversas
mitologias sob os traços do “rei cego”, símbolo do inconsciente, que aqui se
torna decadência; mas deve-se levar em conta que o velho rei cego muitas vezes
tem por parceiro o jovem herói (muitos folhetos de literatura de cordel
retraçam esta situação).
- Água escura, triste: aquela do rio que passa para nunca mais
voltar; água estagnada, convite ao suicídio, cujo fundo esconde entidades
maléficas (como tão bem observou Bachelard) presentes em todos os folclores e
mitologias (no Brasil, por exemplo, Iemanjá leva seus amantes para o fundo do
mar); o espelho, réplica da água estagnada, convite a passar para o “outro
lado” (como nos filmes de Cocteau em se locomover “do outro lado”e tem grande
dificuldade em se locomover “do outro lado”- tema aliás aproveitado na
publicidade da Rede Globo de Televisão); a cabeleira, que “vai insensivelmente
inclinar os símbolos negativos... para uma feminização...”(pelo menos no
Ocidente onde é a mulher que tem – ou tinha – cabelos longos) por suas
ondulações, réplica da água corrente que implica a feminização da água, mas num
feminino noturno de mulher fatal que por sua vez estabelece a relação água/lua
(marés), lua (mês)/menstruação, lua (tempo/morte, o que traz a imagem da mãe
terrível, devoradora, e a “vamp”, o que leva a uma feminilidade animalizada que
leva à aranha, à mulher aranha, que leva ao liame (instrumento que liga: linhas
cordões, etc.) que sufoca, e por ai vai...
C)
Símbolos catamorfos:
São aqueles relativos à
experiência dolorosa da infância. A queda tem a ver com o medo, a dor, a
vertigem, o castigo (Ícaro). Mas a queda freqüentemente é uma queda moral (pelo
menos no Ocidente) e tem então a ver com a carne, o ventre digestivo e o ventre
sexual e daí, com o intestino, o esgoto, o labirinto. Cai-se no abismo, e o
abismo pode ser tentação.
Aí estão as imagens do tempo
negativo, do tempo de morte. Foi visto que um isomorfismo contínuo re-liga uma
série de imagens díspares à primeira vista, mas cuja constelação permite
induzir um regime multiforme da angústia diante do tempo”.
Existe também um tempo
positivo que será visto adiante. Mas diante deste, o negativo, segundo Gilbert
Durand, só existem três soluções possíveis para sobreviver: pegar as armas e
destruir o monstro (a morte), criar um universo harmonioso no qual ela não
possa entrar, ter uma visão cíclica do tempo no qual toda morte é renascimento.
Diz o antropólogo: “Aos schémes, aos arquétipos, aos símbolos valorizados
negativamente e aos semblantes imaginários do tempo, poder-se-ia opor, ponto
por ponto, o simbolismo simétrico da fuga diante do tempo ou da vitória sobre o
destino e sobre a morte”.
Ligado à verticalidade do ser
humano, este regime é o das “matérias luminosas, visuais e das técnicas de
separação, de purificação, das quais as armas, flecha ou gládio, são símbolos
freqüentes”. Trata-se aqui de dividir, de separar e de lutar. Aqui, “os
símbolos constelam em torno da noção de Potência”: as armas são os arquétipos
correspondentes, a espada e o gládio os símbolos culturalmente determinados.
1.5.1.2
O cetro e o gládio
Correspondendo ao regime diurno das
imagens, a estrutura heróica representa “uma vitória sobre o destino e sobre a
morte”. Vitória pelas armas, pela luta aberta.Esta estrutura corresponde a três
grandes constelações de imagens:
A) Os
símbolos de ascensão
São os símbolos ligados ao
schéme da elevação. Para Bachelard, “é a mesma operação do espírito humano que
nos leva para a luz e para o alto”. Estes símbolos se dividem em:
- Verticalidade: práticas ascensionais nas religiões, o monte sagrado
(os locais de espiritualidade se encontram na maioria das vezes em
elevações).As práticas ascensionais são freqüentes nas mais diversas religiões:
no Brasil, por exemplo, existem diversas festas de santos em que os fiéis sobem
escadas de joelhos ou com outras formas de sofrimento, para atingir uma graça,
um perdão, em direção à igreja.
- Asa e angelismo: a desanimalização do pássaro pela asa: o animal
biológico é totalmente esquecido para se transformar fundamentalmente na sua
função, voar.Neste contexto a pomba significando a paz, a águia a soberania
pelo poder do vôo; a asa é vontade de transcendência (que se eleva para uma
superioridade);existe pois um isomorfismo entre asa, elevação, flecha, luz...
- A soberania uraniana: gigantismo e potência: elevação e poder são
sinônimos no campo simbólico, o rei é alteza; ora, o que está mais alto é o que
está no céu e principalmente, o sol; de onde a universalidade do Grande Deus
uraniano; o rei e o pai (pai-virilidade-potência); o soberano guerreiro e o
jurista (o poder de quem julga o certo e o errado), incluindo as guerras
justiceiras; orei religioso e orei jurista (dualidade funcional da soberania –
executiva e judiciária).
- O chefe: participa dos mesmos significados (em francês ‘Le chef’ é
também a cabeça) com o culto universal dos crânios (centro e princípio de
vida); os cornos e o troféu que são maneiras de aumentar o crânio, sitio do
poder.
O simbolismo ascensional se coloca
como a reconquista de uma potência perdida. Reconquista pela ascensão para um
além do tempo pela rapidez do vôo, pela virilidade monárquica.
B)
Símbolos espetaculares:
- Luz e sol: isomorfismo entre céu e luminoso; pureza celeste e
brancura; o dourado e o azulado; o sol nascente (adoração do sol); as
divindades solares (o Oriente); coroa e auréola (solaridade da
espiritualidade). “Na tradição medieval, o Cristo é constantemente comparado ao
sol, ele é chamado ‘sol salutis’, ‘sol invictus’, ou ainda, em nítida alusão a
Josué, ‘sol ocasum nesciens’ e, segundo santo Eusébio de Alexandria, os
cristãos, até o século V, adoravam o sal nascente”.
- O olho e o verbo: parte do isomorfismo luz-visão; visão e distância
(o olho vence o espaço), o olho do pai (de Deus), olho solar e uraniano;
divindades com “mil olhos”, valor simbólico intelectual e moral do olho. Ver é
saber. Luz e palavra andam juntas, por exemplo, nos textos bíblicos e nas
mitologias de culturas totalmente diversas. Existem diversas dimensões do
isomorfismo da luz e da palavra: assim como a visão, a palavra (o verbo) traz o
conhecimento à distância. Gilbert Durand diz que toda transcendência se
acompanha de métodos de distinção e de purificação.
A) Símbolos
diairéticos
Trata-se da separação “cortante”
entre o bem e o mal, “a transcendência está sempre armada”. Separação e
polêmica exigem um herói, um guerreiro. E o guerreiro tem armas. E o herói
solar é sempre um guerreiro violento.
- As armas do herói: são símbolos de poder e pureza, pois todo combate
é espiritualizado (existência de sociedades guerreiras);
- As armas espirituais: batismos e purificações: são maneiras de
distinguir o profano (estranho à religião) do sagrado, o pertencer (a uma
comunidade) do não pertencer, uma situação social de outra. Para distinguir vão
ser usadas escarificações (incisões superficiais da pele), a circuncisão
(excisão ritual do prepúcio); para purificar, a água e o fogo. Assim
praticam-se rituais de separação (de corte): “tais nos parecem ser as práticas
como a depilação, a ablação (raspagem) dos cabelos, as mutilações dentárias.
Essas últimas, por exemplo, praticadas pelo Bagobo, são explicitamente feitas
“pra não ter os dentes como os dos animais”. A circuncisão, por sua vez, vai
permitir a distinção entre os opostos sexuais. Mas para tantos atos de divisão,
as armas são necessárias: o arsenal simbólico compreende pois: a espada, o
fogo, a tocha, a água e o ar, os detergentes, que têm por função cortar,
purificar, limpar, salvar, separar, “distinguir as trevas do luminoso valor”.
O Regime Diurno da imagem se
apresenta pois como caracterizado por uma lógica da antítese(de oposições),
onde prevalecem as intenções de distinção e análise.
1.5.2
O Regime Noturno da Imagem
Oposto ao Regime anterior
preocupado em dividir e reinar, o Regime Noturno vai se empenhar em fundir e
harmonizar. Fará isto de duas maneiras distintas, correspondendo a duas
estruturas do imaginário: a estrutura mística e a sintética. Neste regime, a
queda se trata mais de ascensão em busca do poder, mas de descida interior em
busca do conhecimento.
1.5.2.1
A estrutura mística do imaginário
A palavra mística não deve ser
entendida aqui com um sentido religioso, mas no seu sentido mais comum que
significa “construção de uma harmonia”, na qual “se conjugam uma vontade de
união e um certo gosto pela secreta intimidade”. Aqui não se trata mais de
polêmica, mas de quietude e gozo. Para atingir tal objetivo, o procedimento vai
ser o da eufemização (modo de minimizar uma expressão muito “crua”, chocante) e
a inversão dos significados simbólicos.
A) Símbolos
de inversão
- Expressão do eufemismo: Trata-se de desdramatizar o conteúdo
angustiante de uma expressão simbólica, invertendo o seu significado: o abismo
não é mais o buraco sem fundo onde se perde a vida, mas o receptáculo (aquilo
que contém), a taça. A linguagem do eufemismo é obrigatoriamente ambígua, já
que ela procede por inversões. O isomorfismo dos símbolos do eufemismo leva das
figuras femininas para a profundeza aquática, para o alimento, o plural, a
riqueza, a fecundidade.
Se, para o regime diurno, o
“puro” significava ruptura a separação, para o regime noturno ele vai
significar ingenuidade, origem. O corpo, com sua interioridade morna e obscura,
passa a ser tomado em consideração, enquanto, no regime anterior reinava a
espiritualidade clara.
- Encaixamento e redobramento: É uma maneira de assimilar, “engolir”,
o outro para se apropriar da sua essência: nas diversas mitologias se encontram
peixes grandes que engolem os menores; é também o caso das bonecas russas em
que a maior contém as menores; e das cantilenas universais de “encaixe” como
por exemplo “a velha a fiar”.
- Hino à noite: Ao contrário da “noite diurna” onde predomina o
simbolismo da angústia, noite onde se escondem todos os perigos, a noite do
regime noturno (ao contrário das trevas) vai ser a noite de paz. Neste caso a
noite é o avesso do dia, local de grande repouso. A noite se torna divina. Ela
é local de reunião, de comunhão. É “o dia das fadas”. Nesta noite existe a
presença e valorização das cores: “a pedra filosofal, símbolo da intimidade das
substâncias, tem todas as cores, entenda-se, todas as potências”. Cores também
dos reflexos da água ao luar, ligadas à valorização da mulher, da natureza, do
centro, da fecundidade.
- Mater e matéria: São muito freqüentes, nas diversas mitologias, as
Grandes Mães aquáticas (no panteon afro-brasileiro: Oshum e Iemanjá), presentes
nas cavidades da terra e fontes. De onde decorre o isomorfismo mãe, matéria,
terra, mãe terra, pátria, pátria mãe. As grandes Mães usam, nas diversas
culturas, grandes cabeleiras, e a análise dois cultos que lhes são dedicados
mostra a sua relação com a matéria prima, cujo simbolismo oscila entre o
aquático e o telúrico (da terra), confundindo as virtudes aquáticas e as
qualidades terrestres. “As águas seriam pois as mães do mundo, enquanto a terra
seria a mãe dos vivos e dos homens”.
B) Símbolos
da intimidade
- O túmulo e o repouso: Com a sua capacidade de eufemização, a
estrutura mística vai transformar o túmulo em local de repouso desejado justa
recompensa de uma vida agitada. Assim a morte não é mais destruição definitiva
do ser mais um retorno ao berço, local de calma e felicidade. A morte se torna
um retorno ao lar. “Em numerosas culturas, na Escandinávia, por exemplo, o
doente ou o moribundo é revigorado pelo sepultamento ou pela simples passagem
por uma fenda rochosa. Enfim, vários povos sepultam seus mortos em posição do
aconchego fetal, marcando assim nitidamente sua vontade em ver na morte uma
inversão do terror naturalmente experimentado e um símbolo do repouso
primordial” (primeiro, essencial).
- A moradia e a taça: As duas contêm, são continentes, donde decorre
o isomorfismo (significado próximo) entre: a caverna, a casa antropomorfa
(aquela descrita por Bachelard cujo sótão é a cabeça e o porão as raízes ou
pés). Espontaneamente a criança reconhece nas janelas os olhos da casa e
imagina as entranhas no porão e nos corredores. E essa casa tem cantos onde a
intimidade se concentra: o canto (do quarto, do jardim...), onde gosta de se
esconder á infância. Outro “espaço feliz” é aquele que diz respeito ao centro,
em geral paradisíaco: mandala (que tem também outros sentidos) das culturas
orientais, “A mandala tântrica, jogo de figuras fechadas circulares e quadradas,
no interior das quais reinam imagens de divindades, parece constituir um resumo
do local sagrado...”.
“O recinto quadrado é aquele
da cidade, é a fortaleza, a cidadela. O espaço circular é mais aquele do
jardim, do fruto, do ovo ou do ventre, e desloca o acento simbólico para as
volúpcias secretas da intimidade”. Com este sentido de centro de
espiritualidade íntima, ainda vão ser encontradas as imagens de nave (da
igreja) e nave (do navio), a arca. A “guliverização” (de Gulliver, herói de J.
Swift, sobre o poder do pequeno – miniaturização) do continente (aquilo que
contém) participa da mesma constelação na medida em que a redução do tamanho
concentra a essência: assim se encontram a casca (casca de nozes, por exemplo,
em que vivem personagens poderosos dos contos infantis), o ovo cósmico (como
aqueles dos quadros de J. Bosch), o vaso (vaisseau significa vasilha, vaso,
nave), as taças litúrgicas (destinadas a rituais religiosos: o Santo Graal, por
exemplo), o estômago, todos contendo a intimidade secreta e preciosa. Mas a
imagem do estômago vai levar a outra série de imagens ligadas à interiorização.
- Alimentos e substâncias: A substância é a intimidade da matéria e
“toda alimentação é transubstanciação” já que transforma o alimento em
substância modificando sua essência. Os alimentos arquétipos são: o leite
(primeiro alimento afetivamente significativo já que normalmente relacionado à
amamentação), o mel (precioso por estar escondido, pela cor de ouro, pelo poder
nutritivo), as bebidas sagradas, as “águas de vida” (em francês cachaça é “eau
de vie”), e finalmente o “ouro alimentar”: o sal, como o ouro princípio
substancial das coisas, ele e inalterável e serve para a conservação do
alimento.
A estrutura mística do
imaginário, diante da angústia existencial e da morte, vai pois negar suas
existências e vai criar um mundo em harmonia baseado no aconchego e na
intimidade (de si, e das coisas). Trajeto interior mais lento na descida do que
o do herói na subida.
1.5.2.2
A estrutura sintética do imaginário
Nesta estrutura o tempo se
torna positivo: trata-se do movimento cíclico do destino e da tendência
ascendente do progresso do tempo.“Os arquétipos e os schémes que polarizam esta
ambição fundamental são tão poderosos que conseguem, nas mitologias do progresso,
nos messianismos (crença em um messias) e filosofias da história, ser tomados
por realidade objetiva, por moeda válida do absoluto e não mais como resíduo
concretizado de simples estruturas singulares, de simples trajetos da
imaginação”.
Vários estudiosos do
imaginário dizem que o homem não faz senão repetir o ato de criação; o
calendário religioso comemora no espaço de um ano todas as fases que ocorreram
desde as origens. Neste caso o destino não é mais uma fatalidade, mas
conseqüência dos atos dos homens. No entanto para conseguir assegurar o ciclo
de vida são necessários rituais e sacrifícios.
A) Símbolos
cíclicos:
O tempo cíclico não tem começo
nem fim, já que são as fases (uma que desce e outra que sobe) do círculo que o
formam. Deste modo a morte não é mais fim mais recomeço, renascimento. Os
símbolos se reagrupam de forma a dominar o tempo: o recomeço dos períodos
temporais, a regeneração, a repetição do Sato criador presente em tosas as
mitologias (no Ocidente, apesar da predominância de um tempo linear, várias
festas correspondem a rituais de regeneração: por exemplo, o Ano Novo, as
festas juninas e o carnaval); é neste contexto que se equilibram os contrários.
Grande número de culturas
expressa nos seus mitos a preocupação em equilibrar os contrários: para os
índios Fulni-ô (Estado de Pernambuco), por exemplo, o mundo foi criado por dois
irmãos rivais, Falêdato (o calor) e Walêdato (o frio), que devastavam tudo nas
suas passagens, um queimando e o outro gelando; é do acordo entre os dois, em
ficarem juntos, que nasce o equilíbrio dando origem à vida.
Por outro lado o tempo pode se
tornar positivo a partir do mito do progresso. Neste caso, as imagens convergem
de maneira a integrar, em uma seqüência contínua, todas as outras intenções do
imaginário.
Estes dois aspectos da
temporalidade, ligados ao ritmo (das estações, da copulação – ato sexual),
dizem respeito às seguintes constelações:
- O ciclo lunar: a lua, como já foi visto, pela regularidade das suas
fases, serve de base em grande número de culturas para a organização do tempo;
ela tem uma ligação estreita também com a vegetação já que ao tempo
correspondem as estações. Neste contexto vai ser encontrada a figura do
andrógino (que tem os dois sexos): “a maioria das divindades da lua ou da
vegetação possuem dupla sexualidade”, o que equivale à mesma valorização das
duas fases do ciclo. No entanto para que o ciclo não seja interrompido, os
homens acreditam que devem se sacrificar. Este sacrifício pode ser o do próprio
homem, o de um animal que tome o seu lugar, ou de objetos quando o sacrifício é
simbólico. O sangue do homem é que fertiliza a terra e assegura o reinício do
ciclo.
A lua vem associada a imagens
de animais, a um “bestiário”: qualquer animal, como qualquer planta, é capaz de
simbolizar o drama ou simplesmente a marcha do tempo; “o schéme cíclico
eufemiza a animalidade, a animação e o movimento, pois integra-os em um
conjunto mítico onde desempenham um papel positivo, já que em tal perspectiva,
a negatividade, fosse ela animal, é necessária à vinda da plena positividade”.
- A espiral: Simbolismo freqüentemente ligado à permanência e ao
movimento. Representação importante para as culturas cuja mitologia se baseia
no equilíbrio dos contrários. O caracol participa do mesmo significado, já que
carrega uma espiral, ao qual somam o aspecto aquático (da concha) e o feminino.
- O simbolismo ofidiano (da serpente): A serpente carrega consigo
grade número de significados; a sua
relação com o tempo cíclico passa por três dimensões: a da transformação
temporal na medida em que, periodicamente muda de pele abandonando a antiga; a
da representação do ciclo através do “uroboros”( a serpente mordendo o próprio
rabo); e o aspecto fálico que o torna “mestre das águas e da fecundidade”.
- A tecnologia do ciclo: são os objetos representativos do tempo e do
destino como o fuso e a roca, o tecido, a corrente, a trama; e os arquétipos da
roda: como a carruagem, “engrenagem arquetipal essencial na imaginação humana”.
- Do “schéme rítmico ao mito do pregresso”: O ritmo da natureza,
principalmente nos climas temperados, ensina que a morte é necessária para que
haja nascimento. O fogo, proporcionando a morte total é o elemento mais
propício ao renascimento (renascer das próprias cinzas). Várias fogueiras juntas
implicam em lembrança de sacrifício, trazendo a regeneração da vegetação
(festas de São João no Brasil).
- O sentido da árvore: pela sua verticalidade, idêntica à do homem,
além das suas características cíclicas (floração, frutificação), a árvore permite
passar “do devaneio cíclico para o devaneio progressista”. Associada à água
fertilizante, ela é símbolo de vida. E pelas suas transformações sucessivas,
pela sua humanização (assim como o homem ela é resumo cósmico e verticalidade),
sugere o devir, a progressão no tempo.
A estrutura sintética do
imaginário tanto harmoniza os contrários, mantendo entre eles uma dialética e
salvaguardando as distinções e oposições, quanto propõe um caminhar histórico e
progressista.
1.6 AS FUNÇÕES DA IMAGINAÇÃO SIMBÓLICA
Para
abordar o simbolismo, deve-se ter sempre em mente a dimensão da ambigüidade,
que é fundamental. E essa ambigüidade faz com que “a essência dialética do
símbolo” se estenda sobre diversos planos, exercendo uma constante
reequilibração.
Gilbert
Durand destaca quatro setores em que esta reequilibração se exerce:
O primeiro
diz respeito ao plano biológico: é o equilíbrio vital a constante atividade de
criação do ser humano, nas artes, nas ciências, nas ocupações do cotidiano, são
maneiras de ultrapassar o destino mortal: “... a arte inteira da máscara
sagrada à opera cômica, é antes de tudo empreendimento eufêmico para se
insurgir contra o apodrecimento da morte”. Essa eufemização é feita através das
estruturas do imaginário.
O segundo é
fator de equilíbrio psicosocial: permite ao indivíduo estabelecer a síntese
entre as suas pulsões individuais e aquelas do meio em que vive. É o que
ocorre, por exemplo, nas técnicas de reequilibração mental criada pelos
doutores Desoille e Séchehaye, com a utilização de imagens antagônicas
(contraditórias) ao regime da imagem em que se encontra o indivíduo: se o
regime for o diurno, o terapeuta vai propor imagens noturnas (descida para a
terra ou para o mar), se for noturno, imagens de ascensão (luz, pureza, vôo),
obtendo assim a reequilibração psíquica do indivíduo. Em certos casos de doença
mental, o que está em jogo é o equilíbrio entre os regimes do imaginário, visto
que toda a intensificação de um regime leva ao desequilíbrio e à patologia,
(seja para o indivíduo, seja para a sociedade).
A
reequilibração social é aquela que ocorre de uma geração para a outra, cada
“geração de trinta e seis anos”, se opondo à precedente (“uma pedagogia expulsa
a outra”). Trata-se do equilíbrio sócio-histórico de uma sociedade.
Terceiro,
no nível do planeta, efetua-se um equilíbrio antropológico: os atuais meios de
comunicação permitem “um real ecumenismo”. O conhecimento, muitas vezes através
das artes, de outras maneiras de organizar o mundo, permite “temperar” a própria.
É assim que a tendência diurna do Ocidente estaria atualmente se reequilibrando
através de um maior conhecimento do Oriente. “O que a antropologia do
imaginário permite, e é a única a permitir, é reconhecer o mesmo espírito da
espécie em ação no pensamento ‘primitivo’ como no pensamento civilizado, no
pensamento normal, como no pensamento patológico”.
Quarto e
último setor, por “dizer o indizível”, a imaginação simbólica tem uma função
transcendental, ou seja, ela permite ir além do mundo material objetivo e criar
o que Bachelard chamava de um “suplemento de alma”.
Para
finalizar, três aspectos da teoria podem ser destacados:
Um diz
respeito à formação do “trajeto antropológico”: deve-se ter em mente que é o
contexto sociológico que modela os arquétipos e os símbolos. Os schémes, na
base da dimensão cultural, orientam a ação, mas as imagens concretas presentes
nas artes, nas mitologias, nos relatos diversos (orais ou escritos), adquirem
contornos específicos em relação ao contexto (meio ambiente) social. Segundo,
não se trata de uma teoria determinista. O fato de o imaginário ter regras não
implica em relações causais, ao contrário, pelo seu poder de criação, a cada
instante, imaginar é um ato de liberdade. Por último, o imaginário diz respeito
a todas as ciências. Primeiro as ciências humanas, implica, para o Ocidente, em
uma nova pedagogia (um modo de ensino não mais centrado unicamente na razão);
em outra visão da história já que esta se coloca dentro do trajeto
antropológico; em outras dimensões da economia que mostra não ser somente
resultante de um calculo racional; em por outra abordagem da geografia: hoje a
geografia humana já leva em conta, exemplo, a literatura a respeito da área
estudada, enfim, as relações com a filosofia, a psicologia, a literatura
parecem ser evidentes; quanto às ciências ditas exatas, a matemática utiliza
conceitos como “limites” e “infinito” entre muitos outros e teorias como a das
“catástrofes”; a física quântica, a química, a biologia já a muito tempo
trabalha com conceitos que vão além de um puro raciocínio. O estudo da relação
entre imaginário e mídia necessitaria de todo um livro.
Enfim,
imaginar é criar o mundo, é criar o universo, seja através das artes, através
das ciências, ou através dos pequenos atos, profundamente significativos, do
cotidiano.
NOTAS
1 - Talvez no mesmo universo
físico, ver os trabalhos da antropóloga Margaret Mead (1901-1978).
FONTE:
PITTA, Danielle Perin Rocha. Inciação á teoria do imaginário de Gilbert Durand.
Recife.UFPE, 1995. Disponível em: < https://www.google.com.br/search?q=PITTA,+Danielle+Perin+Rocha.+Incia%C3%A7%C3%A3o+%C3%A1+teoria+do+imagin%C3%A1rio+de+Gilbert+Durand.+Recife.UFPE,+1995.&biw=1366&bih=599&source=lnms&sa=X&ved=0CAUQ_AUoAGoVChMI9OvI-MaVxgIVsDCMCh1bXwBw&dpr=1>.
Acesso em: 16 jun. 2015.
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