terça-feira, 16 de junho de 2015

INICIAÇÃO À TEORIA GERAL DO IMAGINÁRIO, DE GILBERT DURAND




1 INICIAÇÃO À TEORIA DO IMAGINÁRIO DE GILBERT  DURAND

Por Danielle Perin Rocha Pitta


1.1 O DEVER DE IMAGINAR

Você já teve a oportunidade de ver, ou já ouviu falar nas diferenças existentes entre os esqueletos humanos nas diversas culturas? No Musée de l’Homme, em Paris, por exemplo, pode-se ver crânios achatados, outros alongados, outros ainda afundados no meio para formar uma divisão; existem também pés com as falanges torcidas; e varias outras deformações.

Depois do esqueleto, muitas culturas modificam a pele através de cortes ou deformações: esticam-se os lábios ou as orelhas, fazem-se perfurações e aranhões.

Chegando-se à modificação mais superficial deste corpo através da roupa e da pintura.

Mas o que leva o ser humano a tanto modificar o que foi feito pela natureza? Certamente seria difícil dar uma explicação baseada na utilidade dessas modificações. Na verdade, por estas ações, o homem esta exercendo uma faculdade que lhe e própria, que é a de dar sentido ao mundo.
Para criar sentido, entretanto, ele põe em atividade uma função da mente que é a imaginação.

O raciocínio, a razão, outra função da mente, permite sem dúvida analisar os fatos, compreender a relação existente entre eles, mas não cria significado. Para que a criação ocorra é necessário imaginar. E o que fazem, na sociedade ocidental, os filósofos, os cientistas sociais, os que estudam as religiões, os políticos, os arquitetos, os artistas, os físicos, os matemáticos... .Criam filosofias, teorias, religiões, obras.... Criam, a cada instante, o mundo.

A ciência, como conhecimento, pode ser obtida seguindo-se os mais variados caminhos. Nas ciências humanas, durante muitos anos, optou-se por um caminho calcado naquele das ciências naturais e que se acreditava ser objetivo.

Atualmente, em 1993, as diversas críticas e as modificações do pensamento sobre o assunto, em parte em relação aos progressos da física, consideram como impossível estudar o ser humano como se esse fosse um objeto, e talvez mesmo desinteressante.

Nesta perspectiva, um estudo baseado na observação sensível dos fatos aparece como muito mais adequada para a obtenção de um conhecimento, aprofundado de um objeto tão complexo quanto o ser humano.

Este texto, para abordar o Imaginário, não terá pois como finalidade retraçar no tempo e no espaço a história desta ciência na tentativa de dar uma visão completa sobre o assunto, mas optara por uma visão em particular, que é a do antropólogo Gilbert Durand. A tentativa será de, à partir das “Estrutura Antropológicas do Imaginário” e da “Imaginação Simbólica”, apresentar uma síntese da sua proposta em uma linguagem acessível a pessoas sem formação sobre o assunto.

Deve-se ressaltar ainda que o Imaginário, como encruzilhada das mais diversas ciências, diz respeito ao conhecimento corno um todo, isto é, às diversas disciplinas.

1.1.1 Quando e Como Surgiu, no Ocidente, o Estudo do Imaginário?

O ser humano, para além da funcionalidade dos seus atos, é aquele que atribui significados. Assim é que aquilo que poderia parecer como absolutamente natural, é transformado pelas diversas culturas para adquirir significado. Altera-se a aparência do corpo com as mais diversas escarificações, com o corte dos cabelos, com os enfeites, a roupa... No plano das necessidades de base, o procedimento não é diferente: para a alimentação existem as proibições alimentares, o modo de apresentação dos alimentos, a maneira de assimilá-los, etc... Enfim, nada para o ser humano é insignificante. E dar significado implica entrar no p1ano do simbólico.

Se simbolizar faz parte da própria condição humana, é compreensível que estudiosos das mais variadas disciplinas se tenham desde sempre interessado por este nível de expressão. No entanto, para a cultura ocidental, estes estudos foram feitos durante longo tempo de maneira desorganizada.

Modernamente, pode-se considerar que é com o filósofo francês Gaston Bachelard (1884-1962) que tem início um estudo sistemático e Interdisciplinar (a partir de diversas disciplinas ou campos de estudo) sobre o símbolo: isto ocorre com a fundação da Société de Symbolisme em 1930, em Genebra, que, a partir de 1962 passa a publicar os Cahiers Internaticnaux de Syrnbolisme. Discípulo de Bachelard, Gilbert Durand funda em 1967 o Centre de Recherches sur l’Imaginaire, em Charnbéry, na França, que passa a publicar a revista Circé. Com uma proposta, também, de interdisciplinaridade, o “Centre” se desenvolve com forte influência das obras de Bachelard e do psicanalista suíço C. G. Jung (1875 - 1961).

A partir destes dois centros e da difusão da base, os grupos de estudo sobre o imaginário se multiplicam. Atualmente existem centros de pesquisa em mais de vinte países, e em cada pais, em diversas universidades. Na França, a reflexão sobre a dimensão simbólica tem sido aprofundada - a partir de bases teóricas diversas - por estudiosos como Paul Ricoeur, René Alleau, Edgar Morin, Michel Maffesoli, Jean Duvignaud, Jean Baudrillard, J.J. Wunenburger, entre outros, alem do próprio Gilbert Durand.

1.2 O IMAGINÁRIO: ESSÊNCIA DO ESPIRITO

Ao longo da exposição da sua teoria, Gilbert Durand define ou dá elementos de definição do imaginário, que serão aqui reagrupados:
O Imaginário - isto é, o conjunto de imagens e de relações de imagens que constitui o capital pensado do homo ‘sapiens’ - nos aparece como o grande denominador fundamental onde vêm se arrumar (ranger) todos os procedimentos do espírito humano.
O imaginário... é a norma fundamental... perto da qual a contínua flutuação do progresso científico aparece como um fenômeno anódino e sem significado.
Entre a assimilação pura do reflexo e a adaptação limite da consciência à objetividade, constatamos que o imaginário constituía a essência do espírito, isto é, o esforço do ser para erguer uma esperança viva diante e contra o mundo objetivo da morte.
Para poder falar com competência do Imaginário não se deve confiar nas exigüidades e nos caprichos da sua própria imaginação, mas possuir um repertório quase exaustivo do Imaginário normal e patológico em todas as camadas culturais que nos propõem a história, as mitologias, a etnologia, a lingüística e as literaturas.

1.3 DO SÍMBOLO AO SIMBÓLICO AO IMAGINÁRIO

Porque falar em imaginário e não simplesmente em simbolismo? Para obter resposta a esta pergunta é necessário fazer um breve percurso pelas principais teorias que serviram de base à reflexão de Gilbert Durand.

Primeiro deve-se dizer que a proposta de abordagem é fenomenológica: dois filósofos alemães, W. Dilthey (1833-1911) e E.Husserl (1869 -1938), preocupados com o significado da obra ou da significação de um modo geral, estabelecem  a  oposição existente entre um  método explicativo (estabelecendo relações de causa a efeito) que pode ser aplicado a natureza, e um método compreensivo, próprio para o estudo do homem. De maneira que o objetivo do estudo é decifrar o sentido próprio de toda a realidade humana, de toda expressão humana da vida e do espírito.

Pode-se considerar que com Bachelard, definitivamente, em relação às ciências humanas, a visão do homem como se fosse um objeto deixa de ser a mais importante.Segundo o filósofo, a validade do conhecimento é a mesma seja ele adquirido pela experimentação ou pela poesia. Bachelard demonstrou, através da sua obra, que a organização do mundo - ou seja, as relações existentes entre os homens, entre os homens e a terra, entre os homens e o universo - não é o resultado de uma série de raciocínios, mas a elaboração de uma função da mente (psíquica) que leva em conta afetos e emoções. Nesta perspectiva ele coloca algumas idéias básicas: que o símbolo permite estabelecer o acordo entre o “eu” e o mundo; que os quatro elementos (terra, ar, água e fogo) são os “hormônios da imaginação”. O símbolo é pois dinâmico e a partir desta constatação Bachelard estabelece a relação entre símbolo, e imaginário:

O vocábulo fundamental que corresponde à imaginação, não é a imagem, é o imaginário. O valor de uma imagem se mede pela extensão de sua aura imaginária. Graças ao imaginário, a imaginação é essencialmente aberta, evasiva. Ela é no psiquismo humano a experiência da abertura, a experiência da novidade...

Por outro lado, Jung (1875- 1961), psicanalista suíço, intrigado com o fato de seus clientes relatarem sonhos idênticos a mitos de outras culturas, propõe o conceito de inconsciente coletivo, memória da experiência da humanidade. O mito seria então    a organização de imagens universais (arquetípicas) em constelações, em narrações, sob a ação transformadora da situação social. O que implica em uma unidade entre o indivíduo, a espécie e  o cosmos. O inconsciente coletivo é estruturado  pelos arquétipos, ou seja, por disposições hereditárias para reagir. Esses arquétipos se expressam em imagens simbólicas coletivas, o símbolo sendo a explicitação da estrutura do arquétipo.

Cassirer (1874-1945) filósofo alemão da escola neo-kantiana, por sua vez, mostra a importância do homem como animal simbólico. Para ele, os símbolos têm propriedades criadoras e libertadoras.

Para Mircea Eliade (1907-1987), ainda, autor do “Tratado da Historia das Religiões” e estudioso do pensamento mítico, o mito é a experiência existencial do homem que lhe permite encontrar-se e compreender-se. A atividade criadora do espírito humano lida com toda a experiência humana. A Física não descreve o mundo mas o ordena.

A partir destas orientações, entre outras, Gilbert Durand vai falar em imaginário e não em simbolismo, pois o símbolo seria a maneira de expressar o imaginário. 

Freqüentemente, para se tratar de simbolismo, faz-se referência a “sistemas simbólicos”: aborda-se então o simbolismo religioso, político, etc. Mas para Gilbert Durand, esses sistemas simbólicos não são independentes, pois decorrem de uma visão de mundo especifica, imaginária, que é a própria cultura.

1.3.1 O Método de Convergência

Assim como aquela do autor das “Estruturas antropológicas do imaginário”, esta exposição deverá ser feita de maneira linear, quando de fato não existe anterioridade de nenhuma etapa sobre a outra. Para se abordar a “convergência” (maneira como se organizam) dos símbolos, é necessário definir os principais termos empregados:

1.3.1.1 Schéme

É anterior à imagem, corresponde a uma tendência geral dos gestos, leva em conta as emoções e as afeições. Ele faz a junção entre os gestos inconscientes e as representações. Exemplos: à verticalidade da postura humana, correspondem dois schémes: o da subida e o da divisão (visual ou manual); ao gesto de engolir, correspondem os schémes da descida (percurso interior dos alimentos) e do aconchego na intimidade (o primeiro alimento do homem sendo o leite materno, a amamentação)

1.3.1.2 Arquétipo

É a representação dos schémes. Imagem primeira de caráter coletivo e inato; é o estado preliminar, zona onde nasce a idéia(Jung) . Ele constitui o ponto de junção entre o imaginário e os processos racionais. Exemplos: o schéme da subida vai ser representado pelos arquétipos (imagens universais) do chefe, do alto; o schéme do aconchego, pelos da mãe, do colo, do alimento.

1.3.1.3 Símbolo

É todo signo concreto evocando, por uma relação natural, algo ausente ou impossível de ser percebido. Uma representação que faz “aparecer” um sentido secreto. Eles são visíveis nos rituais, nos mitos, na literatura, nas artes plásticas.

1.3.1.4 Mito

O mito sistema dinâmico de símbolos, arquétipos e schémes que tende a se compor em relato, ou seja, que se apresenta sob forma de história. Por este motivo ele já apresenta um inicio de racionalização.

Como forma então o imaginário de uma cultura dada?

1.4 A ORGANIZAÇÃO DOS SÍMBOLOS

Para a compreensão do que segue, deve-se considerar que o processo de formação das imagens é o mesmo quer se trate de um indivíduo, quer se trate de uma cultura.

A sensibilidade própria de uma cultura em interação com um meio e circunstâncias determinadas, valoriza mais ou menos os schémes que, como um todo, correspondem à condição humana.Assim é que uma cultura pode perceber o universo em duas perspectivas: como cheio de divisões e oposições1, e outra o percebera como unido e harmonioso.

A primeira estará valorizando os schémes da divisão entre opostos: alto/baixo, bem/mal etc. e valorizará a individualidade, o arquétipo do herói, o exercício do poder, a ação (como, por exemplo, os Mundugumor estudados por M.Mead: tribo da Nova Guiné australiana, os Mundugumor são canibais e caçadores de cabeças, individualistas e ávidos de poder).

A segunda, estará valorizando a comunidade, o plural, o arquétipo da mãe, do aconchego, o ato de proteger, o refugio (como por exemplo os Arapesh estudados pela mesma M.Mead:  tribo do nordeste da Nova Guiné que têm por principais valores a comunidade e a harmonia). Isto não significa que todos os elementos da cultura se encontram neste registro de sensibilidade e percepção, mas que existe um pólo predominante. Por este motivo não se trata de classificar uma cultura em tal ou tal estrutura mas de perceber o tipo de dinamismo que se encontra em ação e polarização predominante. O que leva à determinação do “trajeto antropológico” em determinada cultura ou grupo social.

O schéme é pois a dimensão mais abstrata, correspondendo ao verbo, à ação básica de dividir, unir, confundir. O arquétipo, dando forma a esta intenção fundamental, já vai ser uma imagem, herói, mãe, ou tempo cíclico, mas universal. Já o símbolo, vai ser a tradução desse arquétipo dentro de um contexto específico. Exemplo: schéme: unir, proteger; arquétipo: a mãe; símbolo para a cultura cristã: a virgem Maria.

O mito vai transformar em linguagem, em relato (história),as escolhas assim feitas, e este relato, por sua vez vai organizar o mundo, estabelecer o modo das relações sociais, e seus personagens vão servir de modelo para a ação cotidiana dos indivíduos (em “o duplo e a metamorfose”da antropologia franco-brasileira Monique Augras, pode-se observar a importância do modelo, do exemplo dado pelos orixás na vivência cotidiana dos adeptos do Candomblé, no Rio de Janeiro).

São pois os schémes, arquétipos, símbolos e mitos que vão, a partir da sua organização, feita por uma cultura dada, orientar o desenvolvimento desta cultura.

1.4.1 Os Símbolos Convergem

As imagens vêm se organizar em torno de um “núcleo” e formam constelações, se organizando a um só tempo em torno de imagens de gestos, de schémes, e em torno de objetos privilegiados pela sensibilidade.

O objetivo inicial da tese de Gilbert Durand era o de estabelecer uma relação de imagens colhidas em culturas diversas. Para tanto, o autor faz um levantamento de imagens em grande número de culturas, nas mitologias, nas artes, seja na literatura ou nas artes plásticas: é para organizar o material obtido, que o autor parte da idéia da existência de um “trajeto Antropológico”, ou seja, uma maneira própria para cada cultura de estabelecer a relação existente entre a sua sensibilidade (pulsões subjetivas) e o meio em que vive (tanto o meio geográfico como histórico e social).

O trajeto antropológico pode partir tanto da cultura como do natural psicológico, o essencial da representação e do símbolo estando contido entre estas duas dimensões.

Uma vez levantadas às imagens, na tentativa de classifica-las, o autor percebe que estas se dividem em dois grupos que se distinguem pelo seu significado fundamental. Seguindo a distinção efetuada anteriormente por outros filósofos, Gilbert Durand reagrupa as imagens em dois “regimes”: o diurno (relativo ao dia) e o noturno. Esta classificação leva em conta a existência de uma maneira de organizar, de um dinamismo, própria a cada cultura, dinamismo esse que se encontra na base das organizações (convergências) dos símbolos que formam as constelações de imagens.

Seguindo uma lógica própria, os símbolos se reagrupam em torno de núcleos organizadores. As constelações de imagens são estruturadas por isomorfismo (que se apresenta sob a mesma forma) dos símbolos convergentes. Por exemplo: as ondas do mar vão se ligar às ondas dos cabelos, que por sua vez se ligam à feminilidade, imagens todas convergindo em torno da passagem do tempo que passa e não volta.

Finalmente, antes de se dar início ao detalhe da teoria, deve-se levar em conta a hipótese segunda a qual existe uma estreita relação entre os gestos do corpo e as representações simbólicas.

1.5 OS REGIMES DAS IMAGENS E AS ESTRUTURAS DO IMAGINÁRIO

Existe um isomorfismo de schémes, de arquétipos e de símbolos, presente nos mitos ou nas constelações de imagens. A constelação da existência desse isomorfismo leva a perceber certas normas de representação imaginária, bem definidas e relativamente estáveis. Estas representações agrupadas em torno de schémes originários, são chamadas estruturas. Considera-se aqui a estrutura como uma “forma transformável”.

Cada imagem, seja ela mítica, literária, visual, se forma em torno de uma orientação fundamental que se compõe dos sentimentos próprios de uma cultura, assim como de toda a experiência individual e coletiva. Este eixo (orientação) básico corresponde ao schéme. Assim, por exemplo, temos uma imagem mítica (presente na mitologia) que é a do cangaceiro (afetividade e experiência regionais), ligada ao arquétipo do herói (universal), ligado ao schéme da divisão (entre o bem e o mal, por exemplo).

Pois Gilbert Durand percebe no material que estuda duas intenções fundamentalmente diversas na base da organização das imagens: uma dividindo o universo em opostos (alto/baixo, esquerda/direita, feio/bonito, bem/mal etc.), outra unindo os opostos, complementando, pela luz que permite as distinções, pelo debate. O segundo é o regime noturno, caracterizado pela noite que unifica pela conciliação.

Estes dois regimes da imagem recobrem três estruturas do imaginário. Estruturas estas que dão respostas à questão fundamental do homem que é a sua mortalidade.

Morte e angústia existencial se expressam através das imagens relativas ao tempo.

1.5.1 O Regime Diurno
1.5.1.1 As faces do tempo

Para falar da dimensão simbólica é necessário ter em mente que o símbolo se caracteriza pela sua ambigüidade e pelo sem fim de seus significados. De maneira que, a seguir, serão vistos somente os aspectos angustiantes dos elementos citados, os aspectos positivos fazendo parte de outras constelações de imagens.
Ligados por uma lógica própria, os símbolos expressando a angústia se dividem em três grandes temas:

A) Símbolos teriomórficos:

São aqueles ligados à animalidade angustiante sob várias formas. É necessário distinguir o animal físico do animal simbólico. Assim são encontrados:

- O formigamento (grouillement), que diz respeito a larvas amontoadas visguentas e agitadas, a insetos em geral, e que expressam a repugnância primitiva diante da agitação incontrolável que é o arquétipo do caos. São baratas correndo em todos os sentidos, a “bicheira” que se desenvolve nos animais, uma casa de cupim, por exemplo.

- A animação, o movimento em si, incontrolável, dos grandes animais. Aí se encontram principalmente o cavalo e o touro que, em diversas mitologias, representam a morte. “O folclore e as tradições populares germânicas e anglo-saxônicas conservam este significado negativo e macabro do cavalo: sonhar com um cavalo é sinal de morte próxima”. O tropel do animal, relacionado ao trovão, já é mau agouro (os cineastas bem o sabem). O touro desempenha o mesmo papel imaginário do que o cavalo: “todas as culturas paleo-orientais simbolizam o poder meteorológico e destruidor pelo touro”. A sua força bruta é mortal (não é a toa o sucesso das touradas: vencer o touro é vencer a morte). É a mesma angústia que motiva os dois simbolismos: a angústia diante da mudança, da fuga do tempo, do “mau” tempo.

- A “mordicância” ou ato de morder, de devorar, é outro aspecto angustiante da animalidade. Aqui, a imagem significativa primeira da animalidade não está mais centrada no movimento, seja ele formigamento ou tropel, mas na boca aberta e cheia de dentes. Nesta ordem de pensamento vão ser encontrados os lobos (principalmente para o Ocidente), os leões (para os trópicos e o Equador), as onças pintadas (para o Brasil) que em diversas mitologias e contos infantis devoram seja as pessoas, seja a lua (que representa o tempo), e também os “ogros” (comedores de criancinhas), e o próprio Kronos, o tempo, devorando seus próprios filhos. “Terror diante da mudança e diante da morte devorante, tais parecem ser os dois primeiros temas negativos inspirados pelo simbolismo animal”.

B) Símbolos nictomórficos

Dizem respeito à escuridão. Eles se subdividem em:

- Situação de trevas, seja provocada como é o caso do “choque negro” do Rorschach (teste projetivo em psicologia), seja natural como a cegueira. No folclore, a hora final do dia, ou a meia-noite, são consideradas muito perigosas: “é a hora em que os animais meléficos e os monstros infernais se apossam dos corpos e das almas”. Os psicólogos notam por sua vez que a manha negra (Rorchach), induzindo a situação de trevas, provoca imagens de caos, agitação desordenada. Já a cegueira se encontra freqüentemente, nas diversas mitologias sob os traços do “rei cego”, símbolo do inconsciente, que aqui se torna decadência; mas deve-se levar em conta que o velho rei cego muitas vezes tem por parceiro o jovem herói (muitos folhetos de literatura de cordel retraçam esta situação).

- Água escura, triste: aquela do rio que passa para nunca mais voltar; água estagnada, convite ao suicídio, cujo fundo esconde entidades maléficas (como tão bem observou Bachelard) presentes em todos os folclores e mitologias (no Brasil, por exemplo, Iemanjá leva seus amantes para o fundo do mar); o espelho, réplica da água estagnada, convite a passar para o “outro lado” (como nos filmes de Cocteau em se locomover “do outro lado”e tem grande dificuldade em se locomover “do outro lado”- tema aliás aproveitado na publicidade da Rede Globo de Televisão); a cabeleira, que “vai insensivelmente inclinar os símbolos negativos... para uma feminização...”(pelo menos no Ocidente onde é a mulher que tem – ou tinha – cabelos longos) por suas ondulações, réplica da água corrente que implica a feminização da água, mas num feminino noturno de mulher fatal que por sua vez estabelece a relação água/lua (marés), lua (mês)/menstruação, lua (tempo/morte, o que traz a imagem da mãe terrível, devoradora, e a “vamp”, o que leva a uma feminilidade animalizada que leva à aranha, à mulher aranha, que leva ao liame (instrumento que liga: linhas cordões, etc.) que sufoca, e por ai vai...

C) Símbolos catamorfos:

São aqueles relativos à experiência dolorosa da infância. A queda tem a ver com o medo, a dor, a vertigem, o castigo (Ícaro). Mas a queda freqüentemente é uma queda moral (pelo menos no Ocidente) e tem então a ver com a carne, o ventre digestivo e o ventre sexual e daí, com o intestino, o esgoto, o labirinto. Cai-se no abismo, e o abismo pode ser tentação.

Aí estão as imagens do tempo negativo, do tempo de morte. Foi visto que um isomorfismo contínuo re-liga uma série de imagens díspares à primeira vista, mas cuja constelação permite induzir um regime multiforme da angústia diante do tempo”.

Existe também um tempo positivo que será visto adiante. Mas diante deste, o negativo, segundo Gilbert Durand, só existem três soluções possíveis para sobreviver: pegar as armas e destruir o monstro (a morte), criar um universo harmonioso no qual ela não possa entrar, ter uma visão cíclica do tempo no qual toda morte é renascimento. Diz o antropólogo: “Aos schémes, aos arquétipos, aos símbolos valorizados negativamente e aos semblantes imaginários do tempo, poder-se-ia opor, ponto por ponto, o simbolismo simétrico da fuga diante do tempo ou da vitória sobre o destino e sobre a morte”.

Ligado à verticalidade do ser humano, este regime é o das “matérias luminosas, visuais e das técnicas de separação, de purificação, das quais as armas, flecha ou gládio, são símbolos freqüentes”. Trata-se aqui de dividir, de separar e de lutar. Aqui, “os símbolos constelam em torno da noção de Potência”: as armas são os arquétipos correspondentes, a espada e o gládio os símbolos culturalmente determinados.

1.5.1.2 O cetro e o gládio
  
Correspondendo ao regime diurno das imagens, a estrutura heróica representa “uma vitória sobre o destino e sobre a morte”. Vitória pelas armas, pela luta aberta.Esta estrutura corresponde a três grandes constelações de imagens:

A) Os símbolos de ascensão

São os símbolos ligados ao schéme da elevação. Para Bachelard, “é a mesma operação do espírito humano que nos leva para a luz e para o alto”. Estes símbolos se dividem em:

- Verticalidade: práticas ascensionais nas religiões, o monte sagrado (os locais de espiritualidade se encontram na maioria das vezes em elevações).As práticas ascensionais são freqüentes nas mais diversas religiões: no Brasil, por exemplo, existem diversas festas de santos em que os fiéis sobem escadas de joelhos ou com outras formas de sofrimento, para atingir uma graça, um perdão, em direção à igreja.

- Asa e angelismo: a desanimalização do pássaro pela asa: o animal biológico é totalmente esquecido para se transformar fundamentalmente na sua função, voar.Neste contexto a pomba significando a paz, a águia a soberania pelo poder do vôo; a asa é vontade de transcendência (que se eleva para uma superioridade);existe pois um isomorfismo entre asa, elevação, flecha, luz...

- A soberania uraniana: gigantismo e potência: elevação e poder são sinônimos no campo simbólico, o rei é alteza; ora, o que está mais alto é o que está no céu e principalmente, o sol; de onde a universalidade do Grande Deus uraniano; o rei e o pai (pai-virilidade-potência); o soberano guerreiro e o jurista (o poder de quem julga o certo e o errado), incluindo as guerras justiceiras; orei religioso e orei jurista (dualidade funcional da soberania – executiva e judiciária).
- O chefe: participa dos mesmos significados (em francês ‘Le chef’ é também a cabeça) com o culto universal dos crânios (centro e princípio de vida); os cornos e o troféu que são maneiras de aumentar o crânio, sitio do poder.

O simbolismo ascensional se coloca como a reconquista de uma potência perdida. Reconquista pela ascensão para um além do tempo pela rapidez do vôo, pela virilidade monárquica.

B) Símbolos espetaculares:

- Luz e sol: isomorfismo entre céu e luminoso; pureza celeste e brancura; o dourado e o azulado; o sol nascente (adoração do sol); as divindades solares (o Oriente); coroa e auréola (solaridade da espiritualidade). “Na tradição medieval, o Cristo é constantemente comparado ao sol, ele é chamado ‘sol salutis’, ‘sol invictus’, ou ainda, em nítida alusão a Josué, ‘sol ocasum nesciens’ e, segundo santo Eusébio de Alexandria, os cristãos, até o século V, adoravam o sal nascente”.

- O olho e o verbo: parte do isomorfismo luz-visão; visão e distância (o olho vence o espaço), o olho do pai (de Deus), olho solar e uraniano; divindades com “mil olhos”, valor simbólico intelectual e moral do olho. Ver é saber. Luz e palavra andam juntas, por exemplo, nos textos bíblicos e nas mitologias de culturas totalmente diversas. Existem diversas dimensões do isomorfismo da luz e da palavra: assim como a visão, a palavra (o verbo) traz o conhecimento à distância. Gilbert Durand diz que toda transcendência se acompanha de métodos de distinção e de purificação.

A) Símbolos diairéticos

Trata-se da separação “cortante” entre o bem e o mal, “a transcendência está sempre armada”. Separação e polêmica exigem um herói, um guerreiro. E o guerreiro tem armas. E o herói solar é sempre um guerreiro violento.

- As armas do herói: são símbolos de poder e pureza, pois todo combate é espiritualizado (existência de sociedades guerreiras);

- As armas espirituais: batismos e purificações: são maneiras de distinguir o profano (estranho à religião) do sagrado, o pertencer (a uma comunidade) do não pertencer, uma situação social de outra. Para distinguir vão ser usadas escarificações (incisões superficiais da pele), a circuncisão (excisão ritual do prepúcio); para purificar, a água e o fogo. Assim praticam-se rituais de separação (de corte): “tais nos parecem ser as práticas como a depilação, a ablação (raspagem) dos cabelos, as mutilações dentárias. Essas últimas, por exemplo, praticadas pelo Bagobo, são explicitamente feitas “pra não ter os dentes como os dos animais”. A circuncisão, por sua vez, vai permitir a distinção entre os opostos sexuais. Mas para tantos atos de divisão, as armas são necessárias: o arsenal simbólico compreende pois: a espada, o fogo, a tocha, a água e o ar, os detergentes, que têm por função cortar, purificar, limpar, salvar, separar, “distinguir as trevas do luminoso valor”.

O Regime Diurno da imagem se apresenta pois como caracterizado por uma lógica da antítese(de oposições), onde prevalecem as intenções de distinção e análise.

1.5.2 O Regime Noturno da Imagem

Oposto ao Regime anterior preocupado em dividir e reinar, o Regime Noturno vai se empenhar em fundir e harmonizar. Fará isto de duas maneiras distintas, correspondendo a duas estruturas do imaginário: a estrutura mística e a sintética. Neste regime, a queda se trata mais de ascensão em busca do poder, mas de descida interior em busca do conhecimento.        

1.5.2.1 A estrutura mística do imaginário

A palavra mística não deve ser entendida aqui com um sentido religioso, mas no seu sentido mais comum que significa “construção de uma harmonia”, na qual “se conjugam uma vontade de união e um certo gosto pela secreta intimidade”. Aqui não se trata mais de polêmica, mas de quietude e gozo. Para atingir tal objetivo, o procedimento vai ser o da eufemização (modo de minimizar uma expressão muito “crua”, chocante) e a inversão dos significados simbólicos.

A) Símbolos de inversão

- Expressão do eufemismo: Trata-se de desdramatizar o conteúdo angustiante de uma expressão simbólica, invertendo o seu significado: o abismo não é mais o buraco sem fundo onde se perde a vida, mas o receptáculo (aquilo que contém), a taça. A linguagem do eufemismo é obrigatoriamente ambígua, já que ela procede por inversões. O isomorfismo dos símbolos do eufemismo leva das figuras femininas para a profundeza aquática, para o alimento, o plural, a riqueza, a fecundidade.

Se, para o regime diurno, o “puro” significava ruptura a separação, para o regime noturno ele vai significar ingenuidade, origem. O corpo, com sua interioridade morna e obscura, passa a ser tomado em consideração, enquanto, no regime anterior reinava a espiritualidade clara.

- Encaixamento e redobramento: É uma maneira de assimilar, “engolir”, o outro para se apropriar da sua essência: nas diversas mitologias se encontram peixes grandes que engolem os menores; é também o caso das bonecas russas em que a maior contém as menores; e das cantilenas universais de “encaixe” como por exemplo “a velha a fiar”.

- Hino à noite: Ao contrário da “noite diurna” onde predomina o simbolismo da angústia, noite onde se escondem todos os perigos, a noite do regime noturno (ao contrário das trevas) vai ser a noite de paz. Neste caso a noite é o avesso do dia, local de grande repouso. A noite se torna divina. Ela é local de reunião, de comunhão. É “o dia das fadas”. Nesta noite existe a presença e valorização das cores: “a pedra filosofal, símbolo da intimidade das substâncias, tem todas as cores, entenda-se, todas as potências”. Cores também dos reflexos da água ao luar, ligadas à valorização da mulher, da natureza, do centro, da fecundidade.

- Mater e matéria: São muito freqüentes, nas diversas mitologias, as Grandes Mães aquáticas (no panteon afro-brasileiro: Oshum e Iemanjá), presentes nas cavidades da terra e fontes. De onde decorre o isomorfismo mãe, matéria, terra, mãe terra, pátria, pátria mãe. As grandes Mães usam, nas diversas culturas, grandes cabeleiras, e a análise dois cultos que lhes são dedicados mostra a sua relação com a matéria prima, cujo simbolismo oscila entre o aquático e o telúrico (da terra), confundindo as virtudes aquáticas e as qualidades terrestres. “As águas seriam pois as mães do mundo, enquanto a terra seria a mãe dos vivos e dos homens”.

B) Símbolos da intimidade

- O túmulo e o repouso: Com a sua capacidade de eufemização, a estrutura mística vai transformar o túmulo em local de repouso desejado justa recompensa de uma vida agitada. Assim a morte não é mais destruição definitiva do ser mais um retorno ao berço, local de calma e felicidade. A morte se torna um retorno ao lar. “Em numerosas culturas, na Escandinávia, por exemplo, o doente ou o moribundo é revigorado pelo sepultamento ou pela simples passagem por uma fenda rochosa. Enfim, vários povos sepultam seus mortos em posição do aconchego fetal, marcando assim nitidamente sua vontade em ver na morte uma inversão do terror naturalmente experimentado e um símbolo do repouso primordial” (primeiro, essencial).

- A moradia e a taça: As duas contêm, são continentes, donde decorre o isomorfismo (significado próximo) entre: a caverna, a casa antropomorfa (aquela descrita por Bachelard cujo sótão é a cabeça e o porão as raízes ou pés). Espontaneamente a criança reconhece nas janelas os olhos da casa e imagina as entranhas no porão e nos corredores. E essa casa tem cantos onde a intimidade se concentra: o canto (do quarto, do jardim...), onde gosta de se esconder á infância. Outro “espaço feliz” é aquele que diz respeito ao centro, em geral paradisíaco: mandala (que tem também outros sentidos) das culturas orientais, “A mandala tântrica, jogo de figuras fechadas circulares e quadradas, no interior das quais reinam imagens de divindades, parece constituir um resumo do local sagrado...”.

“O recinto quadrado é aquele da cidade, é a fortaleza, a cidadela. O espaço circular é mais aquele do jardim, do fruto, do ovo ou do ventre, e desloca o acento simbólico para as volúpcias secretas da intimidade”. Com este sentido de centro de espiritualidade íntima, ainda vão ser encontradas as imagens de nave (da igreja) e nave (do navio), a arca. A “guliverização” (de Gulliver, herói de J. Swift, sobre o poder do pequeno – miniaturização) do continente (aquilo que contém) participa da mesma constelação na medida em que a redução do tamanho concentra a essência: assim se encontram a casca (casca de nozes, por exemplo, em que vivem personagens poderosos dos contos infantis), o ovo cósmico (como aqueles dos quadros de J. Bosch), o vaso (vaisseau significa vasilha, vaso, nave), as taças litúrgicas (destinadas a rituais religiosos: o Santo Graal, por exemplo), o estômago, todos contendo a intimidade secreta e preciosa. Mas a imagem do estômago vai levar a outra série de imagens ligadas à interiorização.

- Alimentos e substâncias: A substância é a intimidade da matéria e “toda alimentação é transubstanciação” já que transforma o alimento em substância modificando sua essência. Os alimentos arquétipos são: o leite (primeiro alimento afetivamente significativo já que normalmente relacionado à amamentação), o mel (precioso por estar escondido, pela cor de ouro, pelo poder nutritivo), as bebidas sagradas, as “águas de vida” (em francês cachaça é “eau de vie”), e finalmente o “ouro alimentar”: o sal, como o ouro princípio substancial das coisas, ele e inalterável e serve para a conservação do alimento.

A estrutura mística do imaginário, diante da angústia existencial e da morte, vai pois negar suas existências e vai criar um mundo em harmonia baseado no aconchego e na intimidade (de si, e das coisas). Trajeto interior mais lento na descida do que o do herói na subida.
                                             
1.5.2.2 A estrutura sintética do imaginário
           
Nesta estrutura o tempo se torna positivo: trata-se do movimento cíclico do destino e da tendência ascendente do progresso do tempo.“Os arquétipos e os schémes que polarizam esta ambição fundamental são tão poderosos que conseguem, nas mitologias do progresso, nos messianismos (crença em um messias) e filosofias da história, ser tomados por realidade objetiva, por moeda válida do absoluto e não mais como resíduo concretizado de simples estruturas singulares, de simples trajetos da imaginação”.

Vários estudiosos do imaginário dizem que o homem não faz senão repetir o ato de criação; o calendário religioso comemora no espaço de um ano todas as fases que ocorreram desde as origens. Neste caso o destino não é mais uma fatalidade, mas conseqüência dos atos dos homens. No entanto para conseguir assegurar o ciclo de vida são necessários rituais e sacrifícios.

A) Símbolos cíclicos:

O tempo cíclico não tem começo nem fim, já que são as fases (uma que desce e outra que sobe) do círculo que o formam. Deste modo a morte não é mais fim mais recomeço, renascimento. Os símbolos se reagrupam de forma a dominar o tempo: o recomeço dos períodos temporais, a regeneração, a repetição do Sato criador presente em tosas as mitologias (no Ocidente, apesar da predominância de um tempo linear, várias festas correspondem a rituais de regeneração: por exemplo, o Ano Novo, as festas juninas e o carnaval); é neste contexto que se equilibram os contrários.

Grande número de culturas expressa nos seus mitos a preocupação em equilibrar os contrários: para os índios Fulni-ô (Estado de Pernambuco), por exemplo, o mundo foi criado por dois irmãos rivais, Falêdato (o calor) e Walêdato (o frio), que devastavam tudo nas suas passagens, um queimando e o outro gelando; é do acordo entre os dois, em ficarem juntos, que nasce o equilíbrio dando origem à vida.

Por outro lado o tempo pode se tornar positivo a partir do mito do progresso. Neste caso, as imagens convergem de maneira a integrar, em uma seqüência contínua, todas as outras intenções do imaginário.

Estes dois aspectos da temporalidade, ligados ao ritmo (das estações, da copulação – ato sexual), dizem respeito às seguintes constelações:

- O ciclo lunar: a lua, como já foi visto, pela regularidade das suas fases, serve de base em grande número de culturas para a organização do tempo; ela tem uma ligação estreita também com a vegetação já que ao tempo correspondem as estações. Neste contexto vai ser encontrada a figura do andrógino (que tem os dois sexos): “a maioria das divindades da lua ou da vegetação possuem dupla sexualidade”, o que equivale à mesma valorização das duas fases do ciclo. No entanto para que o ciclo não seja interrompido, os homens acreditam que devem se sacrificar. Este sacrifício pode ser o do próprio homem, o de um animal que tome o seu lugar, ou de objetos quando o sacrifício é simbólico. O sangue do homem é que fertiliza a terra e assegura o reinício do ciclo.
A lua vem associada a imagens de animais, a um “bestiário”: qualquer animal, como qualquer planta, é capaz de simbolizar o drama ou simplesmente a marcha do tempo; “o schéme cíclico eufemiza a animalidade, a animação e o movimento, pois integra-os em um conjunto mítico onde desempenham um papel positivo, já que em tal perspectiva, a negatividade, fosse ela animal, é necessária à vinda da plena positividade”.

- A espiral: Simbolismo freqüentemente ligado à permanência e ao movimento. Representação importante para as culturas cuja mitologia se baseia no equilíbrio dos contrários. O caracol participa do mesmo significado, já que carrega uma espiral, ao qual somam o aspecto aquático (da concha) e o feminino.

- O simbolismo ofidiano (da serpente): A serpente carrega consigo grade número   de significados; a sua relação com o tempo cíclico passa por três dimensões: a da transformação temporal na medida em que, periodicamente muda de pele abandonando a antiga; a da representação do ciclo através do “uroboros”( a serpente mordendo o próprio rabo); e o aspecto fálico que o torna “mestre das águas e da fecundidade”.

- A tecnologia do ciclo: são os objetos representativos do tempo e do destino como o fuso e a roca, o tecido, a corrente, a trama; e os arquétipos da roda: como a carruagem, “engrenagem arquetipal essencial na imaginação humana”.

- Do “schéme rítmico ao mito do pregresso”: O ritmo da natureza, principalmente nos climas temperados, ensina que a morte é necessária para que haja nascimento. O fogo, proporcionando a morte total é o elemento mais propício ao renascimento (renascer das próprias cinzas). Várias fogueiras juntas implicam em lembrança de sacrifício, trazendo a regeneração da vegetação (festas de São João no Brasil).

- O sentido da árvore: pela sua verticalidade, idêntica à do homem, além das suas características cíclicas (floração, frutificação), a árvore permite passar “do devaneio cíclico para o devaneio progressista”. Associada à água fertilizante, ela é símbolo de vida. E pelas suas transformações sucessivas, pela sua humanização (assim como o homem ela é resumo cósmico e verticalidade), sugere o devir, a progressão no tempo.

A estrutura sintética do imaginário tanto harmoniza os contrários, mantendo entre eles uma dialética e salvaguardando as distinções e oposições, quanto propõe um caminhar histórico e progressista.

1.6  AS FUNÇÕES DA IMAGINAÇÃO SIMBÓLICA

Para abordar o simbolismo, deve-se ter sempre em mente a dimensão da ambigüidade, que é fundamental. E essa ambigüidade faz com que “a essência dialética do símbolo” se estenda sobre diversos planos, exercendo uma constante reequilibração.

Gilbert Durand destaca quatro setores em que esta reequilibração se exerce:

O primeiro diz respeito ao plano biológico: é o equilíbrio vital a constante atividade de criação do ser humano, nas artes, nas ciências, nas ocupações do cotidiano, são maneiras de ultrapassar o destino mortal: “... a arte inteira da máscara sagrada à opera cômica, é antes de tudo empreendimento eufêmico para se insurgir contra o apodrecimento da morte”. Essa eufemização é feita através das estruturas do imaginário.

O segundo é fator de equilíbrio psicosocial: permite ao indivíduo estabelecer a síntese entre as suas pulsões individuais e aquelas do meio em que vive. É o que ocorre, por exemplo, nas técnicas de reequilibração mental criada pelos doutores Desoille e Séchehaye, com a utilização de imagens antagônicas (contraditórias) ao regime da imagem em que se encontra o indivíduo: se o regime for o diurno, o terapeuta vai propor imagens noturnas (descida para a terra ou para o mar), se for noturno, imagens de ascensão (luz, pureza, vôo), obtendo assim a reequilibração psíquica do indivíduo. Em certos casos de doença mental, o que está em jogo é o equilíbrio entre os regimes do imaginário, visto que toda a intensificação de um regime leva ao desequilíbrio e à patologia, (seja para o indivíduo, seja para a sociedade).

A reequilibração social é aquela que ocorre de uma geração para a outra, cada “geração de trinta e seis anos”, se opondo à precedente (“uma pedagogia expulsa a outra”). Trata-se do equilíbrio sócio-histórico de uma sociedade.

Terceiro, no nível do planeta, efetua-se um equilíbrio antropológico: os atuais meios de comunicação permitem “um real ecumenismo”. O conhecimento, muitas vezes através das artes, de outras maneiras de organizar o mundo, permite “temperar” a própria. É assim que a tendência diurna do Ocidente estaria atualmente se reequilibrando através de um maior conhecimento do Oriente. “O que a antropologia do imaginário permite, e é a única a permitir, é reconhecer o mesmo espírito da espécie em ação no pensamento ‘primitivo’ como no pensamento civilizado, no pensamento normal, como no pensamento patológico”.

Quarto e último setor, por “dizer o indizível”, a imaginação simbólica tem uma função transcendental, ou seja, ela permite ir além do mundo material objetivo e criar o que Bachelard chamava de um “suplemento de alma”.

Para finalizar, três aspectos da teoria podem ser destacados:

Um diz respeito à formação do “trajeto antropológico”: deve-se ter em mente que é o contexto sociológico que modela os arquétipos e os símbolos. Os schémes, na base da dimensão cultural, orientam a ação, mas as imagens concretas presentes nas artes, nas mitologias, nos relatos diversos (orais ou escritos), adquirem contornos específicos em relação ao contexto (meio ambiente) social. Segundo, não se trata de uma teoria determinista. O fato de o imaginário ter regras não implica em relações causais, ao contrário, pelo seu poder de criação, a cada instante, imaginar é um ato de liberdade. Por último, o imaginário diz respeito a todas as ciências. Primeiro as ciências humanas, implica, para o Ocidente, em uma nova pedagogia (um modo de ensino não mais centrado unicamente na razão); em outra visão da história já que esta se coloca dentro do trajeto antropológico; em outras dimensões da economia que mostra não ser somente resultante de um calculo racional; em por outra abordagem da geografia: hoje a geografia humana já leva em conta, exemplo, a literatura a respeito da área estudada, enfim, as relações com a filosofia, a psicologia, a literatura parecem ser evidentes; quanto às ciências ditas exatas, a matemática utiliza conceitos como “limites” e “infinito” entre muitos outros e teorias como a das “catástrofes”; a física quântica, a química, a biologia já a muito tempo trabalha com conceitos que vão além de um puro raciocínio. O estudo da relação entre imaginário e mídia necessitaria de todo um livro.


Enfim, imaginar é criar o mundo, é criar o universo, seja através das artes, através das ciências, ou através dos pequenos atos, profundamente significativos, do cotidiano.

NOTAS
1 - Talvez no mesmo universo físico, ver os trabalhos da antropóloga Margaret Mead (1901-1978).

FONTE: PITTA, Danielle Perin Rocha. Inciação á teoria do imaginário de Gilbert Durand. Recife.UFPE, 1995. Disponível em: < https://www.google.com.br/search?q=PITTA,+Danielle+Perin+Rocha.+Incia%C3%A7%C3%A3o+%C3%A1+teoria+do+imagin%C3%A1rio+de+Gilbert+Durand.+Recife.UFPE,+1995.&biw=1366&bih=599&source=lnms&sa=X&ved=0CAUQ_AUoAGoVChMI9OvI-MaVxgIVsDCMCh1bXwBw&dpr=1>. Acesso em: 16 jun. 2015.

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