COMO FUNCIONA O FASCISMO – A POLÍTICA DO
“NÓS” E “ELES”
Por Fernando Camilo Ramalho*
Fiz esse artigo em forma de
resumo baseado no livro “Como Funciona o Fascismo”, do autor Jason Stanley
(professor de filosofia da Universidade de Yale), para uma compreensão da
sociedade e do meio em que vivemos, a fim de que possamos refletir nossas vidas
e evitar rumos autoritários em nossa sociedade. O autor pontua “requisitos” para
que uma sociedade seja considerada ou tendente ao fascismo, sendo eles:
01 O PASSADO MÍTICO – A
política fascista invoca um passado mítico da nação, seja religiosamente puro,
racialmente puro, culturalmente puro ou todos os itens juntos. Os políticos fascistas
dizem “naquele tempo não existia isso”, ou, “tudo era diferente, era melhor”. O
passado mítico é criado para que haja um vínculo de nostalgia entre ele e a
política fascista. Como se nos tempos antigos, seja qual for, não existissem
vários dos problemas que existem ainda hoje, ou problemas até mesmo piores. É a
criação de um passado “glorioso”. É preciso criar um passado “mítico”, mesmo
que esse passado nunca tenha existido de fato.
02 PROPAGANDA – É
difícil promover um tipo de política que irá prejudicar um grande número de
pessoas diretamente. O papel da propaganda política é ocultar os objetivos
problemáticos de políticos/movimentos políticos, mascarando-os com ideais
amplamente aceitos. Corrupção para o fascista consiste na corrupção da pureza e
não da lei. Divulgar falsas acusações de corrupção enquanto se envolve em
práticas corruptas é típico da política fascista, bem como as campanhas
anticorrupção estão no centro de movimentos políticos fascistas. Políticos
fascistas geralmente condenam a corrupção do Estado que querem assumir; os
nazistas utilizaram muito essa estratégia. A política fascista ataca o Estado
de Direito em nome do combate à corrupção, mas ela também quer proteger a
liberdade individual, mas essas liberdades dependem da opressão de determinados
grupos. Também descredibilizam a mídia tradicional para dizerem que “eles”
estão escondendo “a verdade”.
03 ANTIINTELECTUALISMO – A
política fascista procura minar o discurso público, atacando e desvalorizando a
educação, a especialização e a linguagem. É impossível um debate inteligente
sem uma educação que dê acesso a diferentes perspectivas, sem respeito pela
especialização, quando se esgota o próprio conhecimento e sem uma linguagem
rica o suficiente para descrever com precisão a realidade. As universidades
constituem um papel importante nos protestos contra a injustiça e o excesso de
autoridade, onde o discurso é um direito. Os propagandistas não podem atacar a
dissidência de frente: eles precisam então representá-la como algo violento e
opressivo. A política fascista visa minar a credibilidade das universidades
para negar o confronto no discurso. Os representantes da política fascista
denunciam as universidades e escolas como fonte de “doutrinação marxista”, nas
palavras do autor, “o bicho papão clássico da política fascista”, normalmente
usadas sem qualquer conexão com Marx. Na política fascista, as universidades
são degradadas em discursos públicos, os acadêmicos são ignorados como fontes legitimas
de conhecimento e expertise, sendo representados como “marxistas” ou “feministas”
radicais que estariam espalhando um plano ideológico esquerdista sob o disfarce
de pesquisa. Ao enfraquecer as instituições e empobrecer o vocabulário comum
para discutir políticas, a política fascista reduz o debate a um conflito
ideológico. Ao longo do Mein Kampf, Hitler deixa claro que o objetivo da
propaganda é substituir o argumento fundamentado na espera pública por medos e
paixões irracionais. A realidade social é tão complexa quanto a física; é
ingenuidade acreditar que vamos conseguir explicá-la através de simplismos ou
com discursos rasos.
04 IRREALIDADE – A
política fascista substitui o debate fundamentado, por medo e raiva. Distorcem
a realidade através da propaganda política, fazendo com que ideais se voltem
contra si mesmos, minam a credibilidade das instituições; assim, a própria
realidade é colocada em dúvida. Mentiras óbvias e repetidas fazem parte do
processo pelo qual a política fascista destrói o espaço da informação. A
política fascista troca a realidade pelo pronunciamento de um único indivíduo
ou partido político. As teorias conspiratórias são largamente utilizadas e são
um mecanismo utilizado para deslegitimar a grande mídia, que os políticos fascistas
acusam de parcialidade por não cobrir falsas conspirações. A teoria
conspiratória mais famosa do mundo talvez seja “Os protocolos de Sião”, criado
pela ideologia nazista para dizer que os judeus estão no comando dos meios de
comunicação e do sistema econômico global; em todos os escritos nazistas
existiam denúncias à “imprensa judaica” por não denunciar e mencionar a
conspiração judaica internacional. A extrema desigualdade econômica é tóxica
para a democracia liberal porque gera ilusões que mascaram a realidade.
05 HIERARQUIA – A
ideologia fascista impõe hierarquias de poder e dominância que contrariam
categoricamente a igualdade de respeito pressuposta pela teoria democrática
liberal. Os políticos fascistas representam os mitos que legitimam suas
hierarquias como fatos imutáveis. Para o fascista, a igualdade é uma negação da
lei natural, que estabelece certas tradições, das mais poderosas, sobre as
outras. O projeto fascista combina a ansiedade sobre a perda de status por
parte dos membros da “verdadeira nação”, com o medo do reconhecimento
igualitário de grupos menos privilegiados. Aqueles que se beneficiam da
hierarquia adotarão um mito sobre sua própria superioridade, que ocultará fatos
básicos sobre a realidade social. Impérios em declínio são suscetíveis à
política fascista por conta do sentimento de perda.
06 VITIMIZAÇÃO –
Na política fascista, os grupos dominantes possuem medo de perder os
privilégios inerentes a sua posição social ou cor de pele e enxergam políticas
compensatórias inconscientemente como uma “perda de poder” e como “privilégios”
de quem está sendo oprimido. Se eu cresci em um país em que minhas festas
religiosas eram feriados nacionais, sentir-me-ia marginalizado se meus filhos
crescessem em um país mais igualitário, em que meus feriados e tradições
religiosas são um de muitos. Se eu cresci em um país em que os protagonistas de
filmes e séries se parecessem comigo, sentir-me-ia marginalizado caso tivesse
um protagonista ocasional que não se parecesse. A propaganda fascista
normalmente apresenta hinos pungentes diante do sentimento de angústia que
acompanha a perda do status dominante. Para um homem branco da classe
trabalhadora que não é mais empregado por razões econômicas estruturais,
pedir-lhe que “verifique seus privilégios” pode aumentar a probabilidade de que
ele enxergue condições igualitárias no programa da supremacia branca. A
política fascista encobre a desigualdade estrutural, tentando inverter,
deturpar e subverter o longo e difícil esforço para enfrentá-la. Embora o homem
branco ainda tenha a maior parte do controle do mundo, eles se sentem vítimas
devido à perpetuação do passado mítico patriarcal. Entender a dinâmica do poder
numa sociedade é crucial para avaliar as alegações de vitimização.
07 LEI E ORDEM – Um
Estado democrático saudável é governado por leis que tratam os cidadãos de
forma igual e justa, apoiados por laços de respeito mútuo entre as pessoas, incluindo
aqueles responsáveis por policiá-los. A retórica fascista consiste em dividir
os cidadãos em duas classes: aqueles que fazem parte da nação escolhida e
aqueles que não fazem parte. Ao descrever os americanos negros como uma ameaça
à Lei e à Ordem, os demagogos nos EUA conseguiram criar uma forte noção de
identidade nacional branca que requer proteção contra a “ameaça” não-branca.
Fato similar é utilizado intencionalmente para criar distinções entre “amigo” e
“inimigo” com base no medo, a fim de unir as populações contra os imigrantes. O
Nazismo utilizou o método mais comum de semear o medo sobre um grupo
minoritário: a ameaça à lei e à ordem. Assim, começaram a se livrar dos judeus
que “ameaçavam” a lei e utilizaram até multas de trânsito como
antecedente criminal. A princípio, os próprios judeus alemães não acreditavam
que isso estava ocorrendo, porque eles próprios não se consideravam criminosos.
A palavra “criminoso” possui um significado paralelo: pessoas propensas a
violar a lei por interesse próprio ou maldade. Psicólogos estudaram a prática
que chamam de viés linguístico intergrupal: tendemos a descrever as ações
daqueles que consideramos “um de nós” bem diferente daqueles que consideramos “eles”.
Se um amigo roubar uma barra de chocolate, temos a tendência de descrever como
algo banal, leviano, mas se quem roubou não pertence a nosso grupo, a nossa tendência
é descrever de forma mais abstrata, atribuindo laços de caráter ruim à pessoa
que realizou. A linguagem é uma importante ferramenta para a política fascista:
eles utilizam a propaganda para semear ideias de medo e que se nada for feito,
o outro grupo vai contaminar a nossa raça, por exemplo, através do estupro de
nossas mulheres, ou de nossa sociedade de diferentes maneiras.
08 ANSIEDADE SEXUAL –
Se o demagogo é o pai da nação, então qualquer ameaça à masculinidade
patriarcal e à família tradicional enfraquece a visão fascista de força. Como a
política fascista tem por base a família patriarcal, ela é naturalmente
acompanhada de pânico sobre os desvios da família patriarcal; transgêneros e
homossexuais são usados para aumentar a ansiedade e o pânico sobre a ameaça aos
papeis masculinos tradicionais. Vários exemplos na história foram utilizados
com essa retórica: Hitler, por exemplo, dizia que os judeus estavam por trás de
uma grande conspiração que usaria soldados negros para violar mulheres arianas
puras como um meio de destruir a “raça branca”. Nos EUA, essa política também é
utilizada sistematicamente. Na Índia idem, com o nacionalismo hindu, ou em
Bangladesh, com os rohingyas. A política da ansiedade sexual também
enfraquece a igualdade de gêneros: quando essa é concedida as mulheres, o papel
do homem como único provedor de sua família é ameaçado. A política de ansiedade
sexual é uma forma poderosa de apresentar a liberdade e a igualdade como
ameaças fundamentais, sem aparentar explicitamente rejeitá-las. A expressão de
identidade de gênero ou preferência sexual é um exercício de liberdade. Ao
apresentar homossexuais ou mulheres transexuais como uma ameaça a mulheres e
crianças e por consequência, o poder dos homens de protegê-las, a política
fascista impugna o ideal liberal de liberdade. O aborto idem.
09 SODOMA E GOMORRA – Hitler
em seu livro Mein Kampf e a ideologia nazista tinham uma visão
romântica, assim como a Alemanha naquela época, de que as cidades eram a causa
dos males sociais e o campo como um elemento purificador. A indústria do cinema
e cultural, muitas vezes controladas pelos judeus, em sua visão, vive
destruindo os valores tradicionais e a cultura, ao produzir arte “pervertida”.
Hitler denunciava a falta de “orgulho alemão” em Viena, por seu cosmopolitismo,
sua mistura de diferentes grupos culturais e raciais. Uma pesquisa do
Washington Post, em 2017, revelou que 42% dos habitantes de áreas rurais dos
EUA concordam com a afirmação “Os imigrantes são um fardo para o nosso país
porque tomam nossos empregos, nossa moradia e nossa assistência médica”; dos
residentes urbanos, apenas 16% concordam com tal afirmação. A política fascista
dirige sua mensagem à população fora das grandes cidades, pois esses locais
passam longe do poder em tempos de globalização, ocasionando mais danos a esses
lugares. Há uma sensação generalizada de que os habitantes dos centros urbanos
vivem às custas dos impostos da população rural, de acordo com os ensaios e
bibliografias indicados no livro. Grandes centros urbanos tendem a ser mais
plurais, não apenas de diversidade étnica e religiosa, mas também maior
diversidade de vida e de costumes. Na ideologia fascista, a vida rural é guiada
através de um ethos de autossuficiência, o que gera força nas
comunidades rurais e não é preciso depender do Estado, ao contrário dos “parasitas”
das cidades. No fascismo, o Estado é um inimigo e deve ser substituído pela
nação, que consiste em indivíduos autossuficientes que, coletivamente optam por
se sacrificar por um objetivo comum de glorificação étnica ou religiosa. Os
moradores da cidade não caçam ou plantam sua comida, como na mitologia
fascista; eles a compram nas lojas. Isso contraria o ideal fascista de autossuficiência
agrária rural. Na política fascista, a preguiça das minorias das cidades só
pode ser curada se elas forem forçadas ao trabalho duro. O trabalho duro, na
ideologia nazista, tinha um poder notável: poderia purificar uma raça
inerentemente preguiçosa.
10 ARBEIT MACHT FREI –
Na ideologia fascista, em tempos de crise e necessidade, o Estado reserva apoio
para os membros da nação escolhida; para “nós” e não para “eles”. A
justificativa é porque “eles” são preguiçosos, criminosos e querem viver
somente da generosidade do Estado; na política fascista, “eles” podem ser
curados da preguiça através de trabalho duro; por isso os portões de Auschwitz
e Buchenwald exibiam o slogan ARBEIT MACHT FREI – “o trabalho liberta”.
Na ideologia fascista, o ideal de trabalho duro é utilizado como arma contra
populações minoritárias. Há uma ignorância sobre quem seriam os beneficiários
de políticas compensatórias. No caso de refugiados, por exemplo, eles
necessitam de ajuda e apoio do Estado antes de se inserirem no mercado de
trabalho; isso causa na política fascista a impressão de que essas pessoas são
preguiçosas ou dependentes de auxilio estatal e propensas a praticarem pequenos
crimes. A irrealidade fascista estereotipa “o outro” para dizer que esses não
são dignos ou não possuem méritos para receberem algum tipo de ajuda. Um
obstáculo para o tipo de divisões entre nós/eles são os sindicatos. Nos
sindicatos não pelegos em funcionamento, os cidadãos da classe branca
trabalhadora se identificam com os cidadãos negros da classe trabalhadora, em
vez de se ressentirem. A política fascista procura então desarticular os
sindicatos. Ao mesmo tempo que condenam as “elites”, procuram minimizar a
importância da luta de classes. Os sindicatos são fontes de cooperação e de
comunidade de igualdade salarial, vinculam diferentes tipos de pessoas em
vários aspectos. Na política fascista, os sindicatos devem ser esmagados para
que os trabalhadores individuais tenham que se virar sozinhos no mar do
capitalismo global e passem a depender de um partido ou líder. A política
fascista é mais efetiva sob condições de acentuada desigualdade econômica.
Pesquisas mostram que a proliferação dos sindicatos é o melhor antídoto contra
o desenvolvimento de tais condições. Muitas sociedades que têm baixos níveis de
desigualdade também possuem alta participação nos sindicatos de trabalhadores.
Nos Estados Unidos, a divisão racial sempre contrariou a força unificadora do
movimento trabalhista, que historicamente ameaçou os proprietários das
corporações, fábricas e investimentos grandes no país. Reprimir os sindicatos e
acusar certos grupos de preguiça cria as divisões cruciais para o sucesso da
política fascista. Os movimentos fascistas compartilham o darwinismo social, a
ideia de que a vida é uma competição pelo poder, segundo a qual divisão de
recursos devem ser deixadas para a pura concorrência do livre mercado. Os
movimentos fascistas compartilham seus ideais de trabalho duro, iniciativa
privada e autossuficiência. Todas as instituições humanas são falhas em algum
grau, mas ao criticar as falhas de qualquer instituição, é importante perguntar
o que se perderia na sua ausência. A mobilização conjunta por melhores
condições de vida econômicas nos une, independente de etnia, religião e outros
tipos de crenças. Hitler estava certo ao dizer que na sociedade democrática
existem tensões entre as diversas práticas e estruturas familiares, locais de
trabalho, sociedade civil etc... O
fascismo promete resolver isso eliminando a diferença, pois todas as
instituições seriam administradas de acordo com o Princípio do Führer. A
cidadania democrática requer um grau de empatia, discernimento e bondade que
exige muito de nós. Existem maneiras mais fáceis de se viver. Podemos reduzir
nosso engajamento político no consumo, enxergar nosso trabalho como algo que
precisamos fazer para entrar no mercado de consumo com dinheiro e nossos
bolsos, livres para escolher nossos aplicativos e moldar uma identidade baseada
no consumo. Ou podemos nos globalizar e expandir nossa compreensão de “nós”,
vagando pelo mundo e apreciando suas culturas e maravilhas, apreciando as
culturas e maravilhas locais, considerando-os nossos vizinhos, enquanto
mantemos uma conexão com nossas próprias tradições e deveres locais. Mas essas
visões são problemáticas em uma situação de desigualdade econômica, ela requer experiências
profundas com diferenças de todos os tipos. A atração da política fascista é
poderosa; ela simplifica a existência humana, ela ataca a fragilidade humana, o
que faz com que nosso sofrimento pareça suportável se soubermos que aqueles que
menosprezamos estão sofrendo mais. A grande desigualdade econômica cria condições
ricamente conducentes à demagogia fascista e é fantasia pensar que as normas
democráticas liberais possam florescer nessas condições.
*
Advogado na F. C. RAMALHO ADVOCACIA E ASSESORIA JURIDICA. - Bacharel em Direito
pela Universidade São Francisco. - Pós Graduado em Direito Constitucional
Aplicado: Empresas, Estado e Indivíduos diante da interpretação Constitucional
pela Universidade Estadual de Campinas. - Pós Graduando em Direito Tributário
pela Universidade Cândido Mendes. - Membro da Comissão de Direitos Humanos da
OAB/Campinas. - Membro Efetivo Regional da Comissão de Direito Eleitoral da OAB
- São Paulo/Capital. - Capacitação em Infância e Juventude Cível e Infracional
pelo curso da ESA/OAB. - Aprovado no XXI Exame da Ordem dos Advogados do Brasil
em Direito Constitucional.
REFERÊNCIA:
RAMALHO,
Fernando Camilo. Como Funciona o Fascismo. A política do
"nós" e "eles". 2020. Disponível em: https://ramalhofernando.jusbrasil.com.br/artigos/844629474/como-funciona-o-fascismo.
Acesso em: 21 jul. 2022.
PARA
SABER MAIS:
STANLEY,
Jason. Como funciona o fascismo: a política do ‘nós’ e ‘eles’. Bruno
Alexander (trad.). 5. ed. Porto Alegre: L&PM, 2020.
Nenhum comentário:
Postar um comentário