sexta-feira, 29 de julho de 2022

RENÚNCIA

 

 

Por Santo Agostinho

 

Continuava [Ponticiano] a falar, e nós [Alípio e Santo Agostinho] o ouvíamos em silêncio. Contou-nos que, estando em Tréveros, não sei em que época, ele e mais três amigos, aproveitando a circunstância de o imperador ter ido assistir aos jogos vespertinos do circo, saíram a passear pelos jardins que circundavam os muros da cidade. Aconteceu que, caminhando dois a dois, um com ele no primeiro grupo, e os outros dois no segundo grupo, tomaram direções diferentes. Estes últimos entraram por acaso numa cabana, onde habitavam alguns servos teus, daqueles “pobres de espírito” aos quais “pertence o reino dos céus”. Aí encontraram um livro, onde estava escrita a vida de Antão. E começaram a lê-la. Arrebatado e impressionado por essa leitura, um deles resolveu abraçar a mesma vida e abandonar o serviço do mundo, para dedicar-se ao teu. E, no entanto, eram eles investidos de altas funções públicas. De repente, tomado de amor sobrenatural e honesta vergonha, irado consigo mesmo, fixou nos olhos o amigo e perguntou-lhe: “Diga-me, onde pretendemos chegar com todos os nossos trabalhos? O que buscamos? A que causa servimos? Podemos esperar mais, no palácio, do que figurar no rol dos amigos do imperador? E mesmo para isso, existe algo que não seja precário e perigoso? E há necessidade de passarmos tantos perigos para chegarmos a um perigo ainda maior? E quando lá chegarmos? Mas, se quiser ser amigo de Deus, eu posso ser imediatamente”. Disse essas palavras e, exaltado, como se estivesse a gerar uma nova vida, lançou de novo os olhos ao livro. Lia, e no seu íntimo realizava-se uma transformação que só tu notavas; e seu espírito despojava-se deste mundo, o que desde logo se tornou evidente. Enquanto lia, e trazia no coração como que uma tempestade, teve a certo ponto um estremecimento: descobrira o melhor. E decidiu-se por tomar esse partido, e já, todo teu, disse ao amigo: “Rompi com todos aqueles nossos sonhos e decidi servir a Deus a partir deste momento, no lugar onde me encontro. Se recusas imitar-me, ao menos não te oponhas aos meus desejos”. O outro respondeu que queria ser seu companheiro em tão nobre missão, com tão grande recompensa. E ambos, agora teus, e a tudo renunciando para te servir, começaram a construir a torre de salvação com capital suficiente. Então, Ponticiano e o outro, que com ele passeava no jardim, foram procurá-los e os chamaram para voltar à casa, pois já declinava o dia. Eles, porém, relataram sua resolução e plano, e como tal desejo nascera e se enraizara neles. Pediram que, se não quisessem unir-se a eles, pelo menos não os molestassem. Ponticiano e o amigo — como ele mesmo conta — embora não mudassem de vida, lamentaram-se a si mesmos e, congratulando-se com os amigos, recomendaram-se a suas orações e, com o coração preso à terra, retornaram ao palácio, enquanto eles permaneceram na cabana com o coração voltado para o céu. Ambos eram noivos. E as noivas, ao saberem do ocorrido, também elas consagraram a ti a sua virgindade.

 

REFERÊNCIA:
AGOSTINHO, Santo. Confissões. Maria Luiza Jardim Amarante (trad.). Patrística v. 10. São Paulo: Paulus, 1997. p. 125-126.

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