Por Santo Agostinho
Continuava [Ponticiano] a falar, e nós [Alípio
e Santo Agostinho] o ouvíamos em silêncio. Contou-nos que, estando em Tréveros,
não sei em que época, ele e mais três amigos, aproveitando a circunstância de o
imperador ter ido assistir aos jogos vespertinos do circo, saíram a passear
pelos jardins que circundavam os muros da cidade. Aconteceu que, caminhando
dois a dois, um com ele no primeiro grupo, e os outros dois no segundo grupo,
tomaram direções diferentes. Estes últimos entraram por acaso numa cabana, onde
habitavam alguns servos teus, daqueles “pobres de espírito” aos quais “pertence
o reino dos céus”. Aí encontraram um livro, onde estava escrita a vida de
Antão. E começaram a lê-la. Arrebatado e impressionado por essa leitura, um
deles resolveu abraçar a mesma vida e abandonar o serviço do mundo, para
dedicar-se ao teu. E, no entanto, eram eles investidos de altas funções
públicas. De repente, tomado de amor sobrenatural e honesta vergonha, irado
consigo mesmo, fixou nos olhos o amigo e perguntou-lhe: “Diga-me, onde
pretendemos chegar com todos os nossos trabalhos? O que buscamos? A que causa
servimos? Podemos esperar mais, no palácio, do que figurar no rol dos amigos do
imperador? E mesmo para isso, existe algo que não seja precário e perigoso? E
há necessidade de passarmos tantos perigos para chegarmos a um perigo ainda
maior? E quando lá chegarmos? Mas, se quiser ser amigo de Deus, eu posso ser
imediatamente”. Disse essas palavras e, exaltado, como se estivesse a gerar uma
nova vida, lançou de novo os olhos ao livro. Lia, e no seu íntimo realizava-se
uma transformação que só tu notavas; e seu espírito despojava-se deste mundo, o
que desde logo se tornou evidente. Enquanto lia, e trazia no coração como que
uma tempestade, teve a certo ponto um estremecimento: descobrira o melhor. E
decidiu-se por tomar esse partido, e já, todo teu, disse ao amigo: “Rompi com
todos aqueles nossos sonhos e decidi servir a Deus a partir deste momento, no
lugar onde me encontro. Se recusas imitar-me, ao menos não te oponhas aos meus
desejos”. O outro respondeu que queria ser seu companheiro em tão nobre missão,
com tão grande recompensa. E ambos, agora teus, e a tudo renunciando para te
servir, começaram a construir a torre de salvação com capital suficiente.
Então, Ponticiano e o outro, que com ele passeava no jardim, foram procurá-los
e os chamaram para voltar à casa, pois já declinava o dia. Eles, porém,
relataram sua resolução e plano, e como tal desejo nascera e se enraizara
neles. Pediram que, se não quisessem unir-se a eles, pelo menos não os
molestassem. Ponticiano e o amigo — como ele mesmo conta — embora não mudassem
de vida, lamentaram-se a si mesmos e, congratulando-se com os amigos,
recomendaram-se a suas orações e, com o coração preso à terra, retornaram ao
palácio, enquanto eles permaneceram na cabana com o coração voltado para o céu.
Ambos eram noivos. E as noivas, ao saberem do ocorrido, também elas consagraram
a ti a sua virgindade.
REFERÊNCIA:
AGOSTINHO, Santo. Confissões. Maria Luiza Jardim Amarante (trad.). Patrística v. 10. São Paulo: Paulus, 1997. p. 125-126.
AGOSTINHO, Santo. Confissões. Maria Luiza Jardim Amarante (trad.). Patrística v. 10. São Paulo: Paulus, 1997. p. 125-126.
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