ANTIGA
SABEDORIA ERGUE-SE DAS CINZAS
Por Steven Armstrong,
FRC Bibliotecário de Pesquisa, Parque Rosacruz
No campo da filosofia grega
e da religião grega, uma das mais importantes descobertas dos tempos modernos
foi o achado do Papiro Derveni em 1962. A história do uso de notáveis
tecnologias modernas para decifrar o manuscrito não só é fascinante em si mesmo.
E como também revela os meios pelos quais os mundos moderno e antigo estão se
aproximando um do outro em muitos aspectos.
Em algum momento durante a
segunda metade do século quinto a.C., um filósofo e teólogo grego
desconhecido,possivelmente da escola do mestre de Sócrates, Anaxágoras,
escreveu um substancial comentário sobre urna das Teogonias Órficas. Uma
Teogonia descreve em termos mitológicos a evolução do cosmo de uma unidade
original para a grande multiplicidade que vivenciamos, e o comentário se
estendeu muito em discutir interpretações do texto, Isto foi em si mesmo surpreendente
para estudiosos modernos aprenderem, urna vez Que este tipo de comentário
interpretativo erudito era tido como tendo se originado mais tarde, nas
academias de Atenas e Alexandria, quando o neoplatonismo surgiu no século III
d.C.
O trabalho desse thelogos órfico deve ter sido popular,
pois uma cópia encontrou seu caminho para a biblioteca de um nobre macedônio
durante o reinado de Filipe II, Rei da Macedônia (pai de Alexandre, o Grande).
Quando esse nobre desconhecido faleceu, mais ou menos em 340 a.C., seus ritos
fúnebres foram celebrados numa necrópole grega do norte, próxima ao atual
Derveni. Os ritos incluíam a tradicional pira e, entre os itens caros ao nobre
que foram queimados com ele, havia um rolo de papiro contendo o comentário
teológico órfico.
Orfismo
ligado à vida imortal
Não era incomum o material
órfico estar ligado a tumbas e sepultamentos. Começando na década de 1830,
trinta e nove folhas ou placas de ouro foram encontradas em terrenos de
sepultamento na Itália e em Creta, com inscrições órficas nelas contidas1.
As datas dos artefatos se estendem de fins do século V a.C. até o século II
d.C. Eles contêm aforismos, instruções para o falecido e dizeres místicos como
“Mediante ser um mortal você se tornou um Deus. Como um filhote de carneiro,
você caiu em leite. Salve! Salve!”2
Mais recentemente, na década
de 1970, fragmentos de ossos, com inscrições órficas do século V a.C., foram
descobertos em Olbia (Ucrânia), no Mar Negro, com invocações como “Vida morte vida
verdade Oráculo Dionisíaco”3. É claro que o orfismo havia mais cedo
se tornado associado à morte que transcendia o temporal. Como o sacerdote e
estudioso dominicano Marie-Joseph Lagrange, fundador da Escola Prática de
Estudos Bíblicos de Jerusalém, observou: “Podemos resumir o que temos a dizer
sobre este assunto: o centro do orfismo pode ser encontrado nas placas de ouro
encontradas nas tumbas”4.
O papiro
subsiste mediante a pira
Comumente, o clima da Grécia
não é favorável à preservação de papiros. Contudo, neste caso, as chamas
carbonizaram e preservaram o delicado papiro. Não se sabe de nenhum outro
papiro grego desse período ou anterior que tenha subsistido. Por mais de 2.300
anos o papiro chamuscado ficou enterrado no alto da tumba do nobre corno parte
dos restos da pira.
Um dia, em 1962, operários
estavam trabalhando numa construção para a Estrada Nacional de Thessaloniki
para Kavala quando desenterraram a antiga necrópole onde estava o nobre
macedônio. Arqueólogos foram chamados e o papiro foi retirado de sua antiquíssima
pira. Até hoje é o mais velho papiro encontrado na Europa5,
induzindo jornalistas a se referirem a ele como “o mais velho livro da Europa”6.
A importância desta descoberta dificilmente poderia ser superestimada:
“Ao dizer que o papiro
Derveni é o mais importante texto do século quinto que apareceu desde a
Renascença, não estou sendo hiperbólico, mas perfeitamente sério. Ele é mais
significativo do que as Bacchylides, as novas Simonides, dramas perdidos, ou o
Empédocles de Estrasburgo, uma vez que já tínhamos quantidades de coral lírico,
elegia, drama e Empédocles. Uma peça de um autor pré-socrático desconhecido,
que usa alegoria e etimologia para explicar rituais e um texto órfico de uma
data muito anterior à época em que estudiosos pensavam que existissem textos
órficos, é um achado realmente extraordinário, mesmo que fosse demonstrado que
não proviesse dos acervos de Anaxágoras e Sócrates”7.
Recuperando
o texto chamuscado mediante moderna tecnologia
De início, o papiro foi
meticulosamente desenrolado. A dificuldade para manusear esses antigos e
delicados manuscritos incomodou pesquisadores em projetos como The Gospel of Judas8 e a
Villa dos Papiri em Herculaneum9. Estudos preliminares e traduções
foram publicados em 1997 e 200410. Depois, em 2005, Apostolos L.
Pierris, do Patras Institute for Philosophical Studies e Dirk Obbink, diretor
do projeto papiro Oxyrhynchus na Universidade de Oxford, organizaram uma equipe
para estudar o Papiro Dervini com o auxílio de modernas técnicas
multi-espectrais de visualização. Eles chamaram Roger Macfarlane (Clássicos) e
Gene Ware (Ciências de Engenharia e Computação e o Papyrological Imaging Lab)
da Universidade Brigham Young, para se juntarem a eles nesse ultramoderno
sistema a fim de verem o que antes não podia ser visto. Em maio de 2006, a
equipe começou a fazer suas varreduras.
A visualização
multi-espectral teve origem no mundo da ciência espacial, quando os astrônomos
captam luz acima das frequências comuns que o olho humano pode ver. Essas
frequências incluem o infravermelho, por exemplo. Assim fazendo, os
pesquisadores podem recuperar muito mais informação do que é disponível na luz
visível. Uma vez que o infravermelho inclui vibrações com um comprimento de
1.000 nm (nanômetros = um bilionésimo do metro), isto é particularmente útil
para recuperar documentos queimados ou estragados de outro modo.
A olho nu, o texto do Papiro
Derveni parece ser tinta preta em papel preto e é, em manchas, praticamente
ilegível. Visto a 1.000 nm, há uma marcante diferença entre a reflexividade da
tinta e do papel, o que torna o texto legível. Esta técnica foi recentemente
usada em pelo menos três achados arqueológicos de alto perfil oriundos do mundo
antigo: o Papiro Derveni11, The
Gospel of Judas12, e a biblioteca da Villa dos Papiros em
Herculaneum13. Paralelamente, outras tecnologias modernas, como o
processamento digital de varredura ultravioleta, raios-x e luz visível,
levaram à plena leitura de antigos documentos como várias obras perdidas de
Arquimedes no “Archimedes Pallimpsest”, uma cópia es-crita do décimo século
descoberta em 1906, que havia sido sobrescrita como um texto litúrgico no
décimo segundo século14, e outros documentos.
A
Villa dos Papiros divulga seus segredos
A biblioteca da Villa em
Herculaneum pode enfim se demonstrar o mais excitante de todos os atuais
projetos multi-espectrais de visualização. Entre 1750 e 1765, o arquiteto e
engenheiro suíço Karl Weber escavou o subsolo em Herculaneum para descobrir a
antiga biblioteca no prédio, com 1.785 rolos de papiro carbonizado hoje
mantidos no Museu Arqueológico Nacional de Nápoles.
Os pergaminhos foram
chamuscados quando o Vesúvio entrou em erupção em 79 d.C. Consta que o prédio pertencera
ao sogro de Júlio Cesar, Lucius Calpurnius Piso15. Como ainda
existem 30.000 pés quadrados da villa que ainda não foram escavados, muito
provavelmente devem haver outros manuscritos, uma vez que as escavações
começaram novamente no outono de 2007, depois que o governo italiano assegurou
que o local estava adequadamente conservado16. Usando visualização
multi-espectral, as obras já recuperadas são principalmente de Epicuro e
Philodemus17.
Mistérios
Órficos combinam Ciência e Misticismo
No trabalho que continua
sendo feito no Papiro Derveni, está ficando claro que as linhas que o Ocidente
moderno gosta de traçar entre ciência, filosofia e misticismo estão
frequentemente ausentes nesse antigo texto18. Estudos mais recentes sobre
filósofos como Empédocles – ligados aos pitagóricos que têm muito em comum com
o orfismo – também confirmam esse antigo parecer manifesto na linhagem
rosacruz:
“... está ficando mais claro,
especialmente desde a descoberta dos fragmentos de Estrasburgo [Ed: das obras
de Empédocles], que, contrariamente a muitas interpretações anteriores,
Empédocles não fez uma distinção clara entre sua filosofia da natureza e os
aspectos mais místicos, mais teológicos, da sua filosofia, e assim bem pode não
ter vis-to grande diferença em espécie entre curar doentes mediante compreensão
empírica da fisiognomonia humana e curar por meio de encantamentos sagrados e
purificações ritualísticas. Seu público pode também não ter feito grande
distinção entre medicina 'científica' e medicina sacra, como é sugerido no
relato de Empédocles curando uma praga ao restaurar um suprimento de água
fresca, depois do quê ele foi venerado como um deus”19.
A perspectiva de continuação
do trabalho sobre o Papiro Derveni e da conseqüente expansão do nosso conhecimento
sobre o orfismo, são boas. Polyxeni Veleni, diretor do Museu Arqueológico de
Thessaloniki, está muito esperançoso. “Eu acredito que 10-20 por cento de novo
texto serão acrescentados, mas que, no entanto serão de crucial importância.
Isto vai preencher muitas lacunas, conseguiremos uma compreensão melhor da
sequência e o texto existente se tornará mais completo”20.
Parece muito apropriado que
nossa compreensão desses antigos mistérios esteja sendo gradativamente
aumentada pelo uso da natureza vibratória da luz em visualização
multi-espectral e técnicas associadas. Podemos visualizar nossos antigos
antecessores em misticismo - e não menos os praticantes do orfismo –
sentindo-se muito felizes em ver a ciência e a espiritualidade mais uma vez em
harmonia, para o crescimento de conhecimento e serviço.
Nota
do editor: Os Mistérios Órficos - Para que possamos entender
melhor a importância e a influência de Orfeu na história esotérica e no
pensamento grego, no contexto das artes e da literatura, nossa revista O Rosacruz oferece aos rosacruzes uma série de artigos sobre o assunto. Os textos
são interessantes por si mesmos, mas, o buscador atento perceberá sua ligação com
a história e o pensamento rosacruz, cujas origens vêm de eras imemoriais.
Certamente será uma leitura esclarecedora.
Notas: 1. Para um estudo em larga escala sobre
os Tabletes de Ouro e materiais associados a eles, com uma excelente discussão
de pareceres modernos sobre o orfismo, ver Ritual
Texts for the Afterlife. Orpheus and the Bacchic Gold Tablets, de Fritz
Graf e Sarah Iles Johnston (Londres: Routledge, 2007); 2. Vera texto grego de Tablete 3, de Thurii, em Graf e Johnston, 8;
3. Ritual Texts, de Graf e Jonhston,
185; 4. Les Mystères: Orphisme Introduction à l'étude du Nouveau Testament,
de Marie-Joseph Lagrange, 4:1 (Paris. Lecoffre, 1937)136 ; citado em Graf e
Johnston, 61 e 194, n. 39; 5. Há um
pergaminho encontrado numa tumba em Atenas que data do quinto século, porém,
até bole ele não pôde ser lido. Ver The
Derveni Papyrus. Cosmology, Theology and Interpretation, de Gábor Betegh
(Cambridge, UK: Cambridge University Press, 2004), n. 10, citado em “Review of
Gábor Betegh, The Derveni Papyru”, Notre
Dame Philosophical Reviews, de Patricia Curd, Setembro 16, 2006,
http.findpr.nd.edu/review.cfm?id=7703#_ednl; 6. “Europe’s Didest ‘Book’, de Brian Handwerk, lido com visualização
de alta tecnologia”. National Geographic News, Junho 6, 2006,
http://news.nationalgeographic.com/news/pf/18239914.html; 7. “Janko on l(ouremenos, Parássoglou, and Tsantsanogiou on Janko
on Kouremenos, Parássogiou, and Tsantsanoglou, The Derveni Poluis”, Bryn Mawr Classical Review, de Richard
Janko, Novembro 20, 2006, em http://ccat.sas.upennt.edu/bmcr/2006/2006-11-20.html;
8. “The Gospel Saved”, The Lost Gospel of Judas (Washington, DG
National Geographic Society website, 2006),
http://www.nationalgeoghraphic.com/lostgospel/conservation_saved.htm; 9. O processo às vezes horripilante de
lidar com esses tipos de manuscritos é detalhado em The Library of the Villa dei Papiri at Herculaneum, de David Sider
(Los Angeles, CA: The J Paul Getty Museum, 2015, citado em Curd, n 2; 10. Studies
on the Derveni Papyrus, de André Laks e Glenn W Most, editores, (Oxford
University Press, 1997); The Derveni
Papyrus Cosmology, Theology and Interpretation, de Gábor Betegh (Cambridge,
UK. Cambridge University Press, 2004); além disto, uma edição posterior foi
publicada antes que fossem completados todos os resultados da análise
multi-espectral: The Derveni Papyrus
(Florença: Leu S. Olschki Editore, 2006) Vol 13 da Série Studi e testi per il Carpas dei papiri filofici greci e latini, de
K. Tsantsanoglou, G.M. Parássoglou, T. Kouremenos (editores); 11. Ver “Derveni Papyrus”, http://en.wikipedia.org/wiki/Derveni_Papyrus,
para uma introdução geral e referências web; 12. Ver “The Gospel of Judas” http://en.wikipedia.org/wiki/Gospel_of_judas;
The Lost Gospel of Judas (Washington,
OC: website da National Geographic Society, 2006), http://nationalgeographic.com/lostgospel/;
e “Review of The Gospel of Judas”
Rose-Croix Journal3 (2006), 157-163, de Steven Armstrong, http://www.rosecroixjournal.org/issues/2006/boolcseviews/vol3_157_163review_armstrong.pdf;
13. See “Villa of the Papyri”, http://en.wikipedia.
org/wiki/Villa_of_the_Papyri para uma visão gerai do projeto; 14. “Archimedes Pallimpsest”, http://en.wikipedia.org/wiki/Archimedes_
Pallimpsest; 15. “Millionaire to Fund
Dig for Lost Roman Library”, de Nick Fielding, Times Online (London: The Sunday Times website, February 13, 2005),
http://timesonline.co.uk/article/0,2087-1482342,00.html; 16. “Diggers Begin Herculaneum Task of Finding Masterpieces Lost to
Volcano”, de Richard Owen, Times Online
(London. The Times website, October 24, 2007), http://enternainment.timesonline.coukitoVarts_and_entertainment/books/article2726757.ece; 17. David Sider forneceu uma excelente
visão geral do progresso do projeto em Library
of the Villa dei Papyri at Herculaneum, 2005. Ver a revisão de Jan P.
Stronk em Bryn Mawr Classical Review,
janeiro 14, 2006, em http://ccat sas.upenn.edu/bmcr/2006/2006-01-41.html; 18. Dirk Obbink, Ph.D., da Birgham
Voung University, citado em Handwerk, 2; 19.
“Empedocles”, de Gordon Campbeti, Internet
Encyclopedia of Philosophy, 2006, http://www.iep.utm.edu/e/empedocl.htm.
Esta harmonia de ciência e espiritualidade entre os filósofos pré-socráticos é
confirmada nas obras de Peter Kingsley, Ancient
Philosophy, Mystery, and Magic: Empedocles and Pythagorean Tradition (Oxford,
UK. Ciarendon Press of Oxford University Press, 1995); In the Dark Places of Wisdom (Inverness, CA: Golden Sufi Center,
1999); Reality (Inverness, CA: Golden
Sufi Center, 2003); 20. “Ancient Scroll
May Vield Retigious Secrets”, Associated Press, June 1, 2006, disponível em
http://www.msnbc.msn.com/id/13081639/.
Para
as Estrelas a partir dos Hinos Órficos
Os escritos que chegaram a
nós como os Hinos órficos são uma coletânea de oitenta e sete poemas temáticos
escritos em hexâmetros, dirigidos a Deuses, Deusas e forças cósmicas. A
inscrição indica que certos incensos podem ter sido usados para acompanhar a
declamação de cada peça, relativamente a cada poder em particular. A tradução aqui é do eminente neoplatonista
do século dezoito, Thomas Taylor, adaptada para leitores modernos.
PARA
AS ESTRELAS
A
defumação por odoríferos
Com voz sagrada no alto as estrelas chamo,
Puras luzes sacras e gênios do céu.
Estrelas celestes, a prole da Noite,
Em círculos a rodopiarem, longe a tua luz
irradiando,
Refulgentes raios pelo céu tu lanças,
Fogos eternos, a fonte de tudo em baixo.
Com chamas que significam Destino tu brilhas,
E de pronto um divino caminho fazes para nós.
Em sete zonas brilhantes com errantes chamas
corres,
E o céu e a terra teus radiosos sistemas compõem:
Com incansável trajetória, ígneo e puro
fulgor
Para sempre através do véu da Noite luzindo.
Com força tremulando, jubilosos, sempre
acesos fogos!
Propícios a todos os meus justos desejos
brilham;
Estes sagrados ritos com raios conscientes
contemplam,
E nossas obras ao teu louvor dedicadas se
concluem.*
*De
The Orphic Hymns. Traduzido por
Thomas Taylor (Londres: impresso para o autor, 1792). Disponível em: http://www.sacred-texts
com/cla/hoo/index.htm
FONTE: ARMSTRONG, Steven. Antiga Sabedoria ergue-se das cinzas.
In O Rosacruz. n. 277. Inverno 2011. Curitiba: AMORC, 2011. P. 30-35.
Fragmentos do Papiro Derveni.
Tablete de ouro órfico encontrado perto de
Petelia, Itália. Do século III ou II a.C. Atualmente no Museu Britânico, em Londres.
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