sábado, 11 de julho de 2015

MONTE ABIEGNO












Por Fernando Pessoa

’Stou só. Do alto supremo do ermo monte
Vejo o que há em baixo, onde já estive e fui.
É, até ao calmo e pálido horizonte,
Um verdejar de campos e arvoredo,
Um rio de aqui parado, e que ali flui,
E os casais onde o fumo acorda cedo.

É toda a vida humana e natural
Extensa a meus olhos que estou longe e acima.
Vai em socalcos íntimos, que anima
O arvoredo vário, até ao val.
No vale forma aldeia e como espuma.
Depois, qual rio, de novo abre o curso,
E do vale ao horizonte, sem percurso,
As casas tornam a ser uma a uma.

É tudo quanto já não sou que doura
O sol universal longe de mim.
Há ainda em mim um hálito que implora
Que volte aonde há casas e arvoredo,
Que deixe o alto, que é o ermo e o fim.
Mas aqui a saudade acaba cedo.
E eu quero não querer, sozinho assim.

Com grandes mágoas e saudades tantas
Até este ermo altíssimo subi.
Subi porque lá baixo homens e plantas
(Que são a mesma coisa, como eu vi)
Fecham a vista, fazem sono e gozo,
E eu queria aquilo que não consegui –
O monte no alto e o seu cruel repouso.

Por isso, embora me prendesse, como
Um braço à cinta de quem se ama, o lar
Em que tudo que o vale tem consiste,
Tomei por bom o meu incerto assomo,
E vim subindo ate onde ousei estar –
Esta alta solidão, sublime e triste.

Aqui ninguém solícito me chama,
Aqui ninguém anónimo me odeia,
Aqui ninguém me prende, porque me ama,
Ou, porque me não ama, me procura.
Aqui, sem árvores, não tece teia
A aranha da ventura e desventura.

Aqui farei meu lar, onde estou só.
Aqui, enquanto vive o que em mim vive
Do que eu sou que é igual ao sol e ao pó,
Terei não ter aquilo que ontem tive.
Serei rico de quanto eu abdiquei,
E nem com saudades amarei
Esse vale visível onde estive.

Lá em baixo vejo – o sol lhe doura a quinta,
E há um brilho vago, que é o do tanque ao sol –
O lar onde morei a vida extinta
De que subindo me desapeguei.
Outrora a sombra fresca ante o arrebol
Vinha pelo pomar quasi indistinta.
Tantas vezes, desperto, a vi e amei!

Também, o um pouco à esquerda, onde há a ponte,
(Vejo de aqui o rio um pouco além,
Mas não a ponte) me recorda o quando
Meditei, jovem, meu destino insonte,
Como o queria e via meditando...
Amar, vencer, ser tudo – era o horizonte.
Melhor é o nada que este monte tem.

Tudo me lembra qualquer coisa... Tudo
Tem qualquer cousa minha ou eu de ali.
Não ha nada visível, neste estudo
Do meu passado, feito já de aqui,
Que não tenha de meu uma saudade,
Que não tenha de seu a realidade
Invisível do que eu ali vivi.

Mas mais que o gozo, certo ou só sonhado,
Da vida nesse vale e campos vastos,
Valeu o gesso de deixar o prado
E os campos que são plácidos e pastos,
E tomar o caminho da montanha,
Que o sol que nasce e o sol que morre banha,
E a eterna neve enche de mau agrado.

Aqui estou, e contento-me de ver
Sem saudades o que abandonei
Com saudades que não julguei ter,
Com prantos e amarguras que sequei.
Aqui, na alta e solene soledade,
Sozinho com a neve e a verdade,
Tenho-me a mim, porque tudo abdiquei.

Nada me tira a mim neste degredo
A que os astros não faltam.Nada aqui
Floresce ou lama sombra. Nem a medo
Um passo se aproxima ou se recua.
As nuvens, vivas rente ao meu segredo,
Fecham-me aos que do vale onde vivi
Vivem a vida natural e sua.

Aqui sem lar nem casa morarei.
Nesta caverna altíssima, que fita
Entre o poente e o sul, descansarei.
Sobre a própria alma, , reinarei,
Liberto da ventura e da desdita.

Meu corpo mirrará de solidão.
Minha alma secará de estar sozinha.
Minha voz perderei de não ouvida.
Mas serei dos que, na órbita mesquinha
Da vida, por ser altos, nada são;
Dos que preferem a Montanha à vida.


26-9-1932

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