Por Fernando Pessoa
’Stou
só. Do alto supremo do ermo monte
Vejo o
que há em baixo, onde já estive e fui.
É, até
ao calmo e pálido horizonte,
Um
verdejar de campos e arvoredo,
Um rio
de aqui parado, e que ali flui,
E os
casais onde o fumo acorda cedo.
É toda
a vida humana e natural
Extensa
a meus olhos que estou longe e acima.
Vai em
socalcos íntimos, que anima
O
arvoredo vário, até ao val.
No vale
forma aldeia e como espuma.
Depois,
qual rio, de novo abre o curso,
E do
vale ao horizonte, sem percurso,
As
casas tornam a ser uma a uma.
É tudo
quanto já não sou que doura
O sol
universal longe de mim.
Há
ainda em mim um hálito que implora
Que
volte aonde há casas e arvoredo,
Que
deixe o alto, que é o ermo e o fim.
Mas
aqui a saudade acaba cedo.
E eu
quero não querer, sozinho assim.
Com
grandes mágoas e saudades tantas
Até
este ermo altíssimo subi.
Subi
porque lá baixo homens e plantas
(Que são
a mesma coisa, como eu vi)
Fecham
a vista, fazem sono e gozo,
E eu
queria aquilo que não consegui –
O monte
no alto e o seu cruel repouso.
Por
isso, embora me prendesse, como
Um
braço à cinta de quem se ama, o lar
Em que
tudo que o vale tem consiste,
Tomei
por bom o meu incerto assomo,
E vim
subindo ate onde ousei estar –
Esta
alta solidão, sublime e triste.
Aqui
ninguém solícito me chama,
Aqui
ninguém anónimo me odeia,
Aqui
ninguém me prende, porque me ama,
Ou,
porque me não ama, me procura.
Aqui,
sem árvores, não tece teia
A
aranha da ventura e desventura.
Aqui
farei meu lar, onde estou só.
Aqui,
enquanto vive o que em mim vive
Do que
eu sou que é igual ao sol e ao pó,
Terei
não ter aquilo que ontem tive.
Serei
rico de quanto eu abdiquei,
E nem
com saudades amarei
Esse
vale visível onde estive.
Lá em
baixo vejo – o sol lhe doura a quinta,
E há um
brilho vago, que é o do tanque ao sol –
O lar
onde morei a vida extinta
De que
subindo me desapeguei.
Outrora
a sombra fresca ante o arrebol
Vinha
pelo pomar quasi indistinta.
Tantas
vezes, desperto, a vi e amei!
Também,
o um pouco à esquerda, onde há a ponte,
(Vejo
de aqui o rio um pouco além,
Mas não
a ponte) me recorda o quando
Meditei,
jovem, meu destino insonte,
Como o
queria e via meditando...
Amar,
vencer, ser tudo – era o horizonte.
Melhor
é o nada que este monte tem.
Tudo me
lembra qualquer coisa... Tudo
Tem
qualquer cousa minha ou eu de ali.
Não ha
nada visível, neste estudo
Do meu
passado, feito já de aqui,
Que não
tenha de meu uma saudade,
Que não
tenha de seu a realidade
Invisível
do que eu ali vivi.
Mas
mais que o gozo, certo ou só sonhado,
Da vida
nesse vale e campos vastos,
Valeu o
gesto de deixar o prado
E os
campos que são plácidos e pastos,
E tomar
o caminho da montanha,
Que o
sol que nasce e o sol que morre banha,
E a eterna
neve enche de mau agrado.
Aqui
estou, e contento-me de ver
Sem saudades
o que abandonei
Com
saudades que não julguei ter,
Com
prantos e amarguras que sequei.
Aqui,
na alta e solene soledade,
Sozinho
com a neve e a verdade,
Tenho-me
a mim, porque tudo abdiquei.
Nada me
tira a mim neste degredo
A que
os astros não faltam.Nada aqui
Floresce
ou lama sombra. Nem a medo
Um
passo se aproxima ou se recua.
As
nuvens, vivas rente ao meu segredo,
Fecham-me
aos que do vale onde vivi
Vivem a
vida natural e sua.
Aqui
sem lar nem casa morarei.
Nesta
caverna altíssima, que fita
Entre o
poente e o sul, descansarei.
Sobre a
própria alma, ❑, reinarei,
Liberto
da ventura e da desdita.
Meu corpo
mirrará de solidão.
Minha
alma secará de estar sozinha.
Minha
voz perderei de não ouvida.
Mas
serei dos que, na órbita mesquinha
Da
vida, por ser altos, nada são;
Dos que
preferem a Montanha à vida.
26-9-1932
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