Por
Didier Lafargue
O homem sempre foi tentado
pelo demônio da guerra santa. Sejam elas religiosas ou não, as ideias que as
sustêm sempre exprimem uma renúncia à sua liberdade pessoal.
A essa expressão “guerra
santa”, não se pode senão ficar chocado inicial-mente pela antinomia aparente
existente entre os dois termos, na medida em que pode parecer inconcebível que
uma guerra possa ser santa. Que caiba ao homem a necessidade de às vezes fazer
a guerra para se defender, não há dúvidas. Deificar a guerra, contudo, e
colocá-la num pedestal afirmando fazê-lo em nome de um princípio sagrado, é
legitimá-la de maneira excessiva, tornando difícil sua limitação. Todavia, em
sua fraqueza, o homem cedeu a essa tentação, independentemente da natureza de
suas ideias.
Guerra
Santa e Religião
A existência da guerra santa
parece naturalmente ligada ao fenômeno religioso. Ela é favorecida por uma
crença do tipo monoteísta. O culto do Deus único, o princípio superior que ele
representa e a ideia de absoluto que ele sustenta tornam possível a expansão de
todas as energias a fim de que triunfe a causa em questão. Sobretudo a
liberdade que ela traz ao homem, revelando-se a ele, no caso do Antigo
Testamento e se encarnando no caso do NovoTestamento, dá à criatura o
livre-arbítrio que lhe permite escolher tanto bem quanto mal todos os seus
atos.
De início, ignora-se que é
uma inferioridade psicológica que motiva esse élan. As guerras santas nascem geralmente de situações onde reina
certa apatia moral, que exige compensação pela afirmação de uma vontade
coletiva sob o império de uma aura divina. Foi esse o caso na península arábica
povoada por tribos divididas umas contra as outras, objeto de desdém por parte
das civilizações circunvizinhas. Um profeta de nome Maomé tentou unificá-las em
nome do todo-poderoso Alá e impulsioná-las à conquista do mundo. Essa jihad suscita naturalmente, por reação,
a existência de uma outra guerra santa a que chamamos “cruzada”. O nascimento
desta nos deixa perplexos: como uma religião de caridade e de amor pode gerar
um tal desejo de violência? As condições particulares que viram sua emergência
no mundo ocidental permitem responder a essa questão. O medo do Islã, por muito
tempo contido, havia provocado uma reação geral. As mazelas do tempo, a
penúria, as epidemias e as inundações precisavam ser esquecidas, então, em uma
violenta onda de expansão.
Contudo, trabalhando para o
triunfo da Cruz, o cruzado apenas obedecia a um princípio deixado no exterior
de si próprio, segregando-o do mundo sensível. “Eu via Santo Agostinho
transmitindo aos Anglo-Saxões, da ponta das lanças romanas, o credo cristão e
Carlos Magno impondo gloriosamente aos pagãos conversões tristemente célebres.
Em seguida as hordas saqueadoras e mortíferas das armadas de cruzados e, dessa
forma, como um golpe de misericórdia, a empáfia do romantismo tradicional das
cruzadas me saltou aos olhos”1, afirmava o psicólogo Carl Gustav
Jung. Entre essa luta comum empreendida em nome de um ideal religioso afirmado
e uma autêntica vida espiritual do indivíduo em sua intimidade consigo, a
relação permanece bastante frágil. Assim, vemos que Deus é uma realidade muito
difícil de se perceber. Além disso, por muito tempo o homem hesitou em querer
encontrá-Lo.
Aí nos é dada a oportunidade
de nos interrogarmos sobre a fé, sobre o que ela representa realmente na
compleição da personalidade humana e sobre toda a distância que a separa da
noção de crença.
Se as crenças nos vêm do
fundo da alma e se impõem à nossa consciência, a fé vai mais longe naquilo que
se refere à nossa vontade e nos incita a fazer uma escolha. Ao homem ela
fornece a força e a unidade que apenas o sentimento de Deus lhe permite obter.
“A fé pode mover montanhas”, costuma-se dizer. É preciso ainda que ela caminhe
lado a lado com toda a humildade desejável e com uma certa dose de autocrítica
pessoal. Sem dúvida isso foi necessário a Abraão quando, deixando a
Mesopotâmia, submetido à influência daquilo que para ele não eram senão falsos
deuses, lançou-se impetuosamente a uma aventura aparentemente sem esperança, ao
cabo da qual encontrou Deus e fundou o povo hebreu. Muito justamente a fé,
quando corretamente assumida, dá uma força de alma que nos permite realizar as
coisas mais grandiosas. Ela não deixa de ser uma faca de dois gumes, pois o
homem pode usar tanto bem quanto mal a liberdade que lhe é própria. De fato, se
dispuser de abnegação suficiente para canalizar essa energia para proveito
maior de seus semelhantes, ele se torna uma admirável personalidade, como a
manifestada por grandes santos como Francisco de Assis ou Vicente de Paulo.
Porém, se não tiver nele a força moral necessária para assumir a liberdade de
que foi investido, cria-se então nele uma depressão que exige absolutamente uma
compensação. Esta se afirma com todos os excessos possíveis, nos quais caíram
seres como Savonarole ou Torquemada. “O fanatismo é o irmão sempre presente da
dúvida”2, dizia Jung.
Com efeito, revelando-se à
sua criatura, o Todo-Poderoso a munia com uma terrível responsabilidade da
qual, todavia, nem sempre se mostrou digna. Por isso o homem, durante milênios,
preferiu dirigir sua adoração para uma pluralidade de deuses com todo seu
cortejo de ritos, os quais ofereciam menos liberdade mas também mais segurança.
Laicização
da Guerra Santa
Os princípios religiosos não
são os únicos motores capazes de mobilizar as multidões. Longe disso. Valores
ditos “sagrados”, sem nenhuma relação com as religiões constituídas, podem
produzir o mesmo efeito. Foi assim que os filósofos do Iluminismo, opondo-se
aos princípios defendidos pela Igreja, criaram novos dogmas e inúmeras palavras
de ordem às quais aderiram as paixões. Em nome da Razão, da Felicidade, da
Liberdade e da Tolerância, a Revolução Francesa se materializou em guerra santa
e soube se mostrar implacável em sua luta contra "a intolerância e o
fanatismo". Jamais o poder das palavras foi tão forte e a maiúscula a elas
associada apenas traduzia o caráter frio e abstrato das ideias veiculadas – as
que se impunham a uma sociedade reprimida em suas ambições e mantida numa
situação subalterna em nome do respeito aos privilégios. Valores laicos
substituíam os valores religiosos e sempre em nome deles foi empreendida a
guerra santa!
Os regimes totalitários do
século XX não ficaram devendo à expressão desta ideia. Como desejavam se
assegurar da fidelidade das almas do interior do país, seus governantes se
dedicaram a monopolizar as energias contra um inimigo exterior, no mais das
vezes imaginário. Assim fez a Alemanha nazista engajada em sua cruzada contra o
Judaísmo e o comunismo; o bloco comunista em sua luta contra o mundo
capitalista. Todos os excessos eram então permitidos em nome de um ideal assim
afirmado. Ainda em nossos dias a religião justifica a violência, a do Islã
legitimando os atos terroristas, a do governo americano promovendo a guerra
contra o Iraque em conformidade com a “vontade do Todo Poderoso”. Aí se
evidencia o papel mantido pela ideologia no cimento das sociedades e a relação
existente entre ela e a livre expressão da personalidade.
É conhecido o sentido
revestido por esse termo depois que foi formado o grupo de ideólogos, no final
do século XVIII, sob a égide de Destutt de Tracy. Contudo, desde sempre todas
as comunidades humanas foram guiadas por princípios reconhecidos por todos,
dando a seus membros os meios de definir suas ações. Por muito tempo esse papel
foi cumprido pela religião, seja ela expressa sob a forma de ritos ou de
dogmas. A ideologia que animava a sociedade então era fonte de vida na medida
em que assegurava a coesão social e cada um podia dela extrair seus próprios
valores.
O perigo começa quando, a
pretexto do bem público, ela exige de todos uma adesão sem falhas, subordinando
toda moral à execução de seus objetivos. A Igreja conheceu um tempo assim, os
excessos da Inquisição testemunham isso. Se há muito tempo ela renunciou a tais
pretensões é o Estado que, atualmente, faz o cidadão correr esse risco.
“Nos primórdios da cristandade, era a Igreja que reivindicava o poder
total, tanto temporal quanto espiritual! A Igreja não tem mais, em nossos dias,
essa pretensão, que foi assimilada pelos Estados totalitários que reclamam o
poder não apenas temporal, mas também espiritual.”3
E Jung acrescenta que em
épocas diferentes e em outros contextos, os homens eram animados pela mesma
psicologia:
“O
absolutismo da ‘civitas Dei’, da cidade de Deus, personificado pelos homens, se
assemelha excessivamente à "divinização" exaltada pelos partidários
do Estado, e as consequências morais que um Ignácio de Loyola extrai da
autoridade da Igreja – qual seja, os objetivos santificam os meios – antecipam
perigosamente o uso da mentira como instrumento de alta política. De um lado
como de outro uma submissão total à Fé é exigida. A pessoa se encontra assim
amputada de sua liberdade, de sua liberdade perante Deus para uns, de sua
liberdade perante o Estado para outros, o que tanto num caso como no outro, é
cavar sua tumba .”4
Guerra
Santa e Poder
Assim observamos que, além
da vontade de lutar em nome de Deus ou no de Allah, a vontade de fazer triunfar
a Razão, a nova ordem do Grande Reich ou o princípio de uma sociedade sem
classes e sem Estado, é sempre o demônio do poder que possui e domina o homem.
Quando uma comunidade escolhe deter-minado caminho, é a sua própria identidade
que ela manifesta e que quer impor à força. É esta a relação que faz da guerra
santa a expressão do nacionalismo. O nacionalismo expressa sempre tudo o que caracteriza
uma determinada comunidade humana, sua posição geográfica, sua história, suas
tradições culturais, traços que fazem sua originalidade e sua diferença em
relação aos outros povos. Combatendo por esses valores, ela tenta se impor ao
resto do mundo, ou mesmo afirmar seu desejo de dominação de outras sociedades
humanas.
Agindo dessa forma, o homem
trai seu orgulho. Não realmente consciente, irresponsável, ele se deixa guiar
por uma força poderosa saída de seu inconsciente coletivo que, ao invés de ser
canalizada, atrofia sua liberdade. Consagrado ao ilimitado e a um idealismo
insensato, frutos de sua “semelhança com Deus”, tenta criar o paraíso na Terra.
Para além dos princípios motores suscitanto a adesão das multidões, apenas um
deus se impõe em definitivo ao indivíduo, Moloch, o deus devorador dos humanos.
Outrora, os homens sacrificavam seus filhos ao antigo deus de Canaan. Hoje em
dia Moloch desapareceu. Tirano interior, ele renasce sob a forma de ideias
abstratas sem raízes verdadeiras, às quais os homens se sacrificam,
sacrificando também sua alma, sem nenhum discernimento.
Interiorização
da Guerra Santa
Colocada no pináculo, a
guerra santa exalta as mais baixas pulsões humanas. Se os homens tivessem maior
lucidez, encarariam a guerra pelo que ela realmente é, ou seja, o maior dos
flagelos humanos. A paz e o progresso geral da humanidade não poderão nunca ser
obtidos por meio de ordem coletiva, ardores guerreiros dos quais só podem
resultar miséria e devastação, mas sim por meio de uma honesta reflexão do
indivíduo sobre si mesmo. Cultura, filosofia, educação lhe darão os valores
apropriados que lhe permitirão o bom uso de sua liberdade e recusar
doutrinamentos artificiais.
Portanto, compreende-se que
a única guerra santa que pode ser aceita é a guerra que se trava consigo mesmo.
Para isso, o Antigo Testamento oferece imagens que podem ajudar nossa busca
pessoal. Na verdade podemos ver nas vitórias e nas derrotas impostas pelo
Senhor ao povo hebreu uma correspondência com os dilaceramentos vividos pela
alma humana. Num plano unicamente metafórico, as guerras empreendidas por
Israel representam no interior do indivíduo o confronto entre o bem e o mal e
as únicas armas das quais pode dispor, são apenas de ordem espiritual.
Notas:
1 JUNG, C. G., Ma vie
[Minha vida], Paris, Gallimard, 1973, p.286.
2 JUNG, C. G., Eâme et
la vie [A alma e a vida], p.254.
3 JUNG, C.G., C.G.Jung
parte, p.103
4 JUNG, C.G., Présent
et avenir, p.65
FONTE:
LAFARGUE, Didier. La guerre sainte,
mobilisation collective au détriment de la vie de l’âime humaine. Pentacle. n.
20. Janier 2012. Le Tremblay: OMT, 2012. p. 2-11.
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