terça-feira, 7 de julho de 2015

A MELANCOLIA DE ALBERCHT DÜRER (1471-1528)


   
Por José Carlos Calazans
Centro de Estudos em Ciência das Religiões

Acreditamos que só a partir de um determinado número de provas e de clara mestria, se podia considerar a passagem de iniciado a Mestre.
Julgamos que foi o que aconteceu a Dürer quando chegou pela primeira vez a Veneza.
É provável que nesta cidade existisse uma representação da Nova Academia ou confraria congénere, e que nela tenha sido aceite, mas só durante a sua segunda visita entre 1505-1507, é que lhe foi reconhecido o grau de Mestre.

Não é agindo muito, mas acreditando n’Ele que o glorificamos. A fé (a fé do íntimo do coração, essência de toda a nossa justiça) é, portanto, a única justiça do cristão e o cumprimento dos preceitos.
MARTIN LUTERO (1483-1546) in A justificação pela fé

O Humanismo encerra toda a contradição do homem moderno.

Pode parecer um paradoxo dizer-se que Dürer não conhecia as regras das proporções, as regras de ouro ou harmónicas, e que só depois da sua primeira viagem a Itália (1494) é que as conheceu, aplicando-as a partir desse momento em toda a sua produção artística, como se todo aquele manancial de conhecimento hermético, lhe tivesse sido revelado pela primeira vez. De facto, é só a partir de 1495 que inicia os trabalhos em gravura a cobre e em madeira; é quando surgem as gravuras As Quatro Feiticeiras (1497), O Hércules (1498-1499), A Prostituta de Babilónia (1498) e A Visão dos Sete Candelabros (1498). É claro que nas suas pinturas a óleo, anteriores àquele período e as que vieram depois, essas regras eram respeitadas, mas não se mostravam visíveis ao mundo profano, entre aqueles que não entendiam da Arte. Parece que Dürer escolheu a madeira e principalmente o cobre, para transmitir uma determinada mensagem desocultada.

Os conceitos de geometria sagrada (pitagórica e platónica) eram já conhecidos e praticados desde a Alta Idade média no mundo gótico e latino, quer nas construções de catedrais quer em desenhos e iluminuras. Como se pode explicar então que Dürer, antes de 1514, nunca tivesse ensaiado se quer um esboço de simbolismo geométrico sagrado, como passou a ser a partir daquela data, com as gravuras em chapa de cobre: São Jerónimo na sua Célula, O Cavaleiro, a Morte e o Diabo e principalmente com a Melancolia? Porque esperou Dürer vinte e um anos, desde a primeira viagem a Veneza (1494)? Ou, se preferirmos (o que não nos parece menos verosímil), sete anos após a sua segunda viagem (1505-1507)?

Não temos grandes dúvidas que as duas viagens a Itália tenham sido decisivas para aquela mudança estética e ideológica. O problema que se deve pôr, é saber até que ponto os mestres que conheceu foram o elo e a razão directa da sua atitude, e o que se entendia naquela época por iniciação à Arte. Repare-se que de 1494 a 1514 perfazem-se três ciclos de sete anos e que no final do primeiro ciclo (1500), Dürer retratou-se à “imagem de Cristo”, no mesmo ano em que Joacopo Barberi chegaria a Nuremberg, dando-lhe a conhecer Vitrúvio.

Durante a primeira estada em Veneza, conheceu Gentile Bellini e Giovanni, estudou in loco as obras de Lorenzo di Vredi, Pallaioulo e Mantegna. Com Gentile teve a oportunidade de tomar contacto com a arte de Victor Carpacio, aprendendo a relacionar a perspectiva com a geometria. Não esqueçamos porém, que Marsílio Ficcino (1433-1499) fundara a Nova Academia (platónica), em cuja sede na Villa Montevecchio de Careggi (Florença) se reuniam os maiores humanistas e filósofos italianos. Ali se cultivava o neoplatonismo (síntese de platonismo com neopitagorismo da região de Crotona), e foi na cidade daquela academia que o pai de Gentile, o pintor Jacopo Gentile (c. 1400-1470) recebeu o grande impulso para uma nova visão pictórica (entre 1420 e 1423), que o iria consagrar como fundador da pintura veneziana. Eis uma coincidência que não pode deixar de ser notada. Existiria uma ligação directa entre Veneza e Florença? Tinha a Nova Academia membros espalhados pela Itália? Até onde a sua influência podia chegar? Dürer levou-a para a Alemanha e um pouco para os Países Baixos (Flandres) 1.

Tratando-se de uma Academia que pretendia ser tradicional, no sentido clássico grego, fazendo reviver as abordagens ao conhecimento com a revalorização do sujeito e a redescoberta de um universo simbólico, mítico e até mesmo iniciático, cremos com uma certa convicção que, a aceitação de novos membros nesta “irmandade”, passava por uma iniciação própria e adequada ao indivíduo, com provas específicas ao grau a que se candidatava. Acreditamos que só a partir de um determinado número de provas e de clara mestria, se podia considerar a passagem de iniciado a Mestre. Julgamos que foi o que aconteceu a Dürer quando chegou pela primeira vez a Veneza. É provável que nesta cidade existisse uma representação da Nova Academia ou confraria congénere, e que nela tenha sido aceite, mas só durante a sua segunda visita entre 1505-1507, é que lhe foi reconhecido o grau de Mestre.

A nossa convicção baseia-se no estudo iconográfico da gravura Melancolia, onde entre todos os objectos simbólicos ali representados, se revela um que é indicador do grau de Mestre. Mas este é o assunto do estudo que agora se apresenta, e por isso não pretendemos esgotar nesta introdução, aquilo que só o rasgar do véu pode permitir.

Dürer e os humanistas

... esta grande arte universal e infinita da verdadeira pintura
ALBERCHT DÜRER

Se me acontecer, com a ajuda de Deus, encontrar o Dr. Martinho Lutero, gostaria de retratá-lo cuidadosamente, gravando-o em cobre, para que permaneça a lembrança desse homem cristão, que me ajudou a livrar-me de uma grande angústia.
ALBERCHT DÜRER

Este testemunho foi escrito por Dürer em 1520 e exprime um aspecto importante da sua arte e de toda a cultura alemã da época. Reflecte o clima da Reforma, a vontade de romper com a mediação de Roma e dos papas, envolvidos na época numa onda de acusações desabonadoras. Dürer não aceitou representar a nova religião com as mesmas formas utilizadas para o catolicismo, passando a liderar o movimento reformista nas artes plásticas. Cultor da geometria sagrada e da perspectiva, Dürer escreveu inclusive tratados sobre o assunto, editados entre 1525 e 1528. Associou o espírito religioso com a mentalidade científica e trouxe o Renascimento para dentro das fronteiras alemãs, tornou-se assim, o condigno representante dos grandes artistas do Renascimento, tais como Leonardo da Vinci, Rafael e Miguel Ângelo 2, depois da sua primeira viagem a Veneza no Outono de 1494. Chegou ainda a contactar com Gentile e Giovanni Bellini e observou as obras de Lorenzo di Credi, Pallaioulo e Mantegna. Foi, portanto, em Itália que se operou a transformação em Dürer. O artífice que era, por tradição familiar e de ambiente gótico, tornou-se num artista do Renascimento. Através de Joacopo Barberi, que chegou a Nuremberg em 1500, conheceu as técnicas da antiguidade e dos antigos, entre os quais Vitrúvio, que fixou a definição matemática da beleza com a máxima: a beleza consiste numa racional integração das proporções de todas as partes de uma edifício numa maneira tal que cada parte tem o seu lado e forma absolutamente fixados, nada podendo ser acrescentado ou tirado sem que se destrua a harmonia do todo [segundo Leon Battista Alberti] 3 .

Se Dürer havia bebido os princípios matemáticos das proporções da beleza através da obra de Cesariano, Vitruvius, editada em 1521, e sendo Cesariano discípulo de Bramante, podemos fazer um juízo das ideias que eram praticadas por seu mestre e por Leonardo. Não esqueçamos ainda que Luca Pacioli, grande matemático e amigo de Leonardo, que lhe fez as ilustrações para a obra De Divina proportione (fig. I), apresentava Vitruvius num contexto matemático e metafísico, e esta mensagem renascentista e clássica ao mesmo tempo, Dürer absorvera-a e aplicara na Alemanha de forma brilhante nos seus trabalhos de gravura – Primeiro devemos falar das proporções do homem, porque do corpo humano derivam todas as medias e suas designações e nele devem ser encontrados todos os índices e proporções pelas quais Deus revela os mais escondidos segredos da natureza 4. De facto, as antigas medidas praticadas na Europa (e que ainda hoje se mantêm no sistema métrico anglo-saxónico) indicam essas mesmas partes do corpo humano. A adesão de Dürer ao renascimento italiano, inseria-se na sua caminhada pessoal para a humanização (no sentido humanístico); no renascimento das artes o artista identificava-se como homem, assim como através de Lutero.

Em Nuremberg, o seu sentimento de insatisfação religiosa, manifestou-se primeiramente através das gravuras em madeira das Cenas da paixão e principalmente as quinze gravuras da série Apocalipse, editadas em livro no ano de 1498. Nelas, Dürer deu às suas visões uma empolgante agitação e paixão interior, que reflectem os sentimentos de inquietude para com a Roma papal, e a sua discórdia escatológica segundo a atitude da Reforma.

A preocupação de Dürer seria agora voltada para uma busca da forma clássica do conhecimento; a tradição cristã medieval centrara-se no problema do conhecimento do homem e de Deus, com a alternativa humanística, surgiria a forma clássica do conhecimento, que passaria a concentrar-se no sujeito em si, com predominância da lógica e do método, constituídos como ciência. O Conhecimento passaria a apresentar-se segundo uma perspectiva e uma amplitude simbólica e hermenêutica. Para esse conhecimento concorreram as traduções feitas do grego para o latim por Francesco Maurolico e Frederico Comandino e as respectivas edições de Arquimedes, Apolónio, Diofeuto, Aristarco de Samos e Euclides. Também os avanços na matemática e na álgebra que se deram a lume por Luca Paciolli, Suma de Aritmética (1494), Ludovico Ferrari e as Equações Quárticas (1522-1565) e Francesco Vieta com a introdução de letras do alfabeto grego melhorando o simbolismo algébrico para representar constantes e incógnitas.

Se Leonardo da Vinci foi mais exuberante e prolixo, Dürer seria mais interveniente através das suas obras sobre problemas teóricos, com o tratado das medidas Unterweisung der Messung (1525), e os quatro livros sobre as proporções humanas Vier Bucher von menschlichen Proportion (1528) 5.

Para Dürer e a sua época a profecia relativa ao fim do mundo era uma tétrica visãocom actualidade. Naqueles tempos calamitosos, de guerras e distúrbios, até os mais negros presságios pareciam realizar-se: a derrocada da autoridade do imperador, a desvalorização do dinheiro e de outros valores, a insegurança geral, a rebelião dos camponeses, o alastramento da sífilis, as fomes, as secas e os intensos invernos gelados. Havia a convicção de uma castigo universal. Data deste período o Apocalipse, pois para o artista de Nuremberg, uma das principais missões da arte deveria ser a narração da História Sagrada. Os painéis de Os Quatro Apóstolos parecem uma advertência serena naqueles tempos tão agitados. Dürer, como muitos alemães seus contemporâneos, depositou todas as esperanças em Martinho Lutero. Aproximadamente a partir de 1500 e até ao fim dos seus dias, interessou-se profundamente pelos problemas relacionados coma teoria da arte, e especialmente com o estudo das proporções, tema de grande actualidade para os humanistas da época.

Foi provavelmente através de Konrad Celtis que Frederico o Sábio aceitou ser o mecenas fiel e generoso de Dürer a partir de 1496. Por aquele grande humanista terá sido também introduzido no grupo da plêiade maravilhosa dos humanistas de Nuremberg, a Herrentrinkstube, onde conheceu Willibal Pirkheimer (o mais erudito humanista laico da sua época que seguramente aconselhou e influenciou o artista), por quem a amizade se manteve toda a vida. Neste círculo de gente tão especial, não havia outro artista senão Dürer, a sua aceitação deveu-se a mérito próprio e ao destaque social que já tinha. Foi também a queda natural pela ciência e o gosto pela música e a mitologia, que fez ganhar a simpatia daqueles humanistas, os quais cultivavam entre si a geometria, a astrologia, a astronomia, a cosmografia e as ciências naturais. Amigo íntimo do artista, Pirkheimer estava relacionado com sábios e letrados, acompanhando sempre com vivo interesse o apaixonado debate de ideias que levou à eclosão da Reforma e fez alguns desses seus amigos intransigentes defensores de Lutero.

Partindo directamente do Evangelho, Martinho Lutero impugnou o valor de toda a tradição eclesiástica e chegou à negação da obra da Igreja e da sua fundação. Na doutrina e nos resultados históricos que dela derivaram torna-se evidente o valor revolucionário daquele retorno aos princípios que o Renascimento procurara realizar em todas as manifestações da vida. No domínio religioso, este princípio levava a negar o valor da tradição e, portanto, da Igreja, que durante séculos acumulara o patrimônio das verdades fundamentais do catolicismo.

O retorno aos princípios significava, portanto, o retorno ao ensinamento fundamental de Cristo, à palavra do Evangelho, e daí o repúdio por tudo o que a tradição eclesiástica acrescentara a esta palavra. Lutero defendia a justificação por meio da fé, pretendia recuperar a fé e devolvê-la como Evangelho. A “Fé”, era para ele a confiança pela qual o homem deveria crer que os pecados lhe seriam remidos gratuitamente por Cristo — esta seria a própria justificação por parte de Deus.

O homem que tem fé é o homem cujos pecados foram remidos, o homem justificado, o homem salvo. A negação da tradição eclesiástica, operada mercê de retorno ao Evangelho, torna-se assim a negação da fundação sacerdotal e por isso a negação da distinção entre casta sacerdotal e mundo laico. Esta consequência é tratada no escrito de Lutero À nobreza cristã da nação alemã (1520), que iniciou a rebelião da Alemanha contra a igreja de Roma. Este foi o mesmo ano em que Dürer fez aquela declaração, e a angústia a que ele se referia era a de qualquer cristão nunca poder atingir a salvação, e estar eternamente condenado pelos seus pecados, ou até por pecados que ele nunca tivesse cometido.


Dos princípios pitagóricos e platônicos

Dürer trazia já em si a tradição gótica religiosa e mística das formas perfeitas. Trabalhara-as na oficina de seu pai como aprendiz de ourives, submetera-se ao revigor movimento renascentista italiano, e tentou tocar a harmonia das esferas através das artes plásticas que dominava como verdadeiro mestre que era. Se Lutero mostrara ao homem do norte (o alemão e o dos Países Baixos) um mundo melhor e mais celestial, um regresso à pureza cristã primitiva, apontando-lhe os Evangelhos, qual Platão, e se Pitágoras desvendara a divindade pela pureza simbólica e mística dos números, da geometria e da música, Dürer, por seu lado, sintetizou a ciência do Renascimento e a mensagem da Reforma, revelando-se claramente como um crítico do aristotelismo.

Pitágoras cultivara com esmero a matemática e a música, mas foram aos seus discípulos Filolau de Tebas e a Arquites de Tarento que se deu o desenvolvimento e difusão da aritmética e da geometria, como a criação da teoria das proporções e do Teorema de Pitágoras. Foi porém através da música (figs. IIa e IIb) e da descoberta da relação directa da altura dos sons com o comprimento da corda vibrante, que Pitágoras chegou à teoria das proporções. Surgiu daqui a ideia de que a realidade inteira se encontra estruturada por uma regularidade, por uma sequência numérica com equivalência no real, fazendo-se equivaler aqueles números a conceitos aritméticos e geométricos: o ponto era equivalente a 1; a linha ao 2; a superfície ao 3; os corpos ao 4. A essência das figuras aparecia assim igual à dos números que designavam o conjunto dos elementos espaciais nelas contidos.

O espaço cósmico é o substracto geral de todas as coisas, e cada uma das coisas particulares consiste em formas geométricas regulares, distribuídas no espaço. Este princípio aplicava-se não só e numericamente à natureza exterior, como às relações sociais e espirituais, assim como aos seus elementos e suas leis: as propriedades da matéria, a relação entre a altura dos sons, a dimensão da corda e a distância entre os planetas.


O problema das proporções harmónicas

As proporções harmónicas foram reveladas por Pitágoras e Platão, cujas ideias, que estiveram sempre vivas durante a Idade média, tomaram novo folgo a partir do séc. XV com o Renascimento. No conceito pitagórico dos números, o 3 é o primeiro número real porque tem princípio meio e fim 6 , porque é o símbolo da Trindade, e claro está que tem uma equivalência musical. Este princípio do número e da harmonia (musical / arquitectónica), foi mais tarde aplicado na tradição cristã europeia à construção das catedrais, tomando como medidas base as que Deus entregou a Moisés para a construção do Tabernáculo e que Salomão também utilizou para o seu templo.

Francesco Giorgi explicaria estas proporções partindo de termos musicais na sua obra De Harmonia Mundi totius (1525, fig. III), na mesma altura em que Dürer publicava os seus trabalhos sobre perspectiva e geometria aplicados à sua arte. Dizia Giorgi, que seguiu muito de perto Ficcino, que a medida da nave principal (9:27) correspondia em termos musicais a um diapasão (uma oitava) e a um diapenta (uma quinta, figs. IV e V). Giorgi partia assim da tradição pitagórica (ou neo-pitagórica), e do aproveitamento da progressão da escala musical grega (uma oitava, uma quinta e uma quarta), que se podia representar numericamente por 1:2:3:4, com as variantes 1:2:3 (oitava + quinta) e 1:2:4 (duas oitavas). Nisto estavam de acordo Platão e todos os construtores de catedrais do gótico (fig. VI) e assim continuou pelo Renascimento com a recuperação dos clássicos.

A harmonia do mundo era expressa pelos sete números 1, 2, 3, 4, 8, 9 e 27 que revelavam o ritmo secreto no macrocosmos e no microcosmos. Os artistas medievais tendiam para projectar uma norma geométrica preestabelecida no seu imaginário, enquanto os do Renascimento extraíam uma norma métrica do fenómeno natural que os rodeava. No entanto, a regra de ouro (aplicada através do rectângulo mágico), seguia inalterável na arquitectura do renascimento, com a recuperação do clássico greco-latino (figs. VII e VIII).

Dürer plasmou-se nesta dimensão da geometria e da medida humana microcósmica, na norma métrica de tradição italiana (de influência pitagórica e de fundo ético-religioso platónico).

Saía assim, aquela métrica, e de forma directa, dos intervalos musicais da escala pentatónica grega, aplicada às formas do real que se pretendiam tomar, quer na arquitectura quer nas artes plásticas. Segundo a tradição judaica, árabe e cristã, a origem da música e do fabrico dos instrumentos de metal, era atribuído a Tubaalcaim (fig. IX). Concedia-se assim a origem à tradição fenícia, que trabalhara o bronze e o comerciara pelo Mediterrâneo. A Pitágoras, a identificação por forma empírica e científica dos sons, através de uma sistemática forma de múltiplas divisões e subdivisões de vários corpos vibrantes (cordas, metais e sopros) continuada por Filolau. A construção das catedrais e dos instrumentos musicais estava submetida a uma “ciência pitagórica”, que se pautava por determinadas medidas ditas de ouro, traduzindo uma harmonia natural, um equilíbrio e uma sintonia com o macrocosmos.


Para uma leitura iconográfica da Melancolia de Albercht Dürer

Em 1514, Dürer representava na gravura Melancolia (fig. X) esse drama, essa imensa tristeza, essa negra compulsão do sentimento de culpa. Mas o que torna esta gravura verdadeiramente extraordinária, é o autor representar-se por símbolos.

Toda a sua natureza humana (religiosa, mística, mágica e científica), ele retratou nesta gravura. Exprimiu o problema da apatia e do desalento pelos enigmas que as suas especulações não conseguiam resolver; como disse Rüdiger H.: a paz triste da sabedoria profunda 7 . O seu estado de melancolia ali ficou retratado, imagem da sua angústia religiosa, reforçada pela morte da mãe que nesse mesmo ano falecera (1514); só em 1520 viria a libertar-se daquela angústia quando encontrou Lutero, e se identificou com o conteúdo do texto À nobreza cristã da nação alemã.

Para compreendermos a multifacetada mensagem que Dürer gravou daquela maneira, é importante termos em conta vários elementos que uma leitura iconográfica exige. Serão elementos que a própria época forneceu (a Cabala, a Astrologia, a Geometria Sagrada de Pitágoras e de Platão e o simbolismo cristão), que criou e construiu sobre o homem medieval, mas elementos que também partiram dos aspectos mais profundos da psicologia düreriana, um composto alquímico de lugares familiares, de sentimentos expressos simbolicamente, e de uma ideologia humanística afirmada pelo Renascimento italiano, simbiose de cujo grande impulso recebeu pela via do neoplatonismo, reforçada pela presença de Lutero. Com esses contributos vislumbrou o equilíbrio harmónico das formas e das ideias; a perspectiva, em que foi inovador, surgiria nessa via.

Neste sentido, e para que se possa seguir com alguma segurança a descodificação, que nos permitirá conhecer o pensamento expresso por Dürer nesta gravura, será necessário explicarmos de forma sucinta os princípios da Cabala e da Geometria Sagrada, mesmo sabendo que esta tentativa pode deixar de fora elementos caracterizantes das duas filosofias. Tenhamos ainda em mente que, durante o Renascimento, a teosofia cabalística exerceu notável influência na igreja cristã e que já anteriormente cabalistas notáveis haviam produzido discípulos e alimentado escolas no Mediterrâneo, como Philon, Avicena, Raimundo Lulio, Pico de la Mirandola, Paracelso, Reuchlin e Schikard.

Cabala (kabbala) significa em hebraico, ensino oculto e também tradição (Kabbalah), dividindo-se em especulativa e prática. Para todo o ensino iniciático deve haver sempre um conjunto de chaves adequadas à abertura dos enigmas, é por isso que também se atribui o significado de Chave à Cabala.

É, porém, a Cabala prática que nos interessa, pois foi esta que mais se difundiu na Europa medieval e do renascimento, entre os homens cristãos de letras e de ciências. Esta Cabala rege-se por regras de hermenêutica, dispostas em três variedades: a gematria (corruptela de geometria; com afinidades à numerologia pitagórica), considera o valor numérico da palavra ou palavras do texto cuja significação se quer indagar e cuja significação será determinada pelo sentido de outra palavra estranha cujas letras somam o mesmo valor numérico que aquela ou aquelas extraídas do texto; o notáricon, trata da junção à maneira acrostica, das letras iniciais ou finais das palavras da frase cujo significado se pretende investigar, e sendo o acrostico achado, têm-se a palavra que permite descobrir o sentido da frase; e a themurah, pela qual o novo significado tirado de uma palavra aparece na transposição das letras de que aquela se compõem, ou separando-as de modo a formarem palavras diferentes por um processo anagramático.

É doutrina principal da verdadeira Cabala, entender a natureza da divindade pelo reconhecimento do microcosmo e do macrocosmos, das divinas emanações e da cosmogonia, da criação dos anjos e do homem, dos seus destinos e do significado da verdadeira lei. Esta doutrina está contida em dois livros, o Sepher Ietsirah (Livro da Criação) e o Sepher-ha-Zohar (Livro do Esplendor). E neste último que se encontra a árvore Sephiroth com as suas dez manifestações, forma representativa do homem arquétipo, filho de deus, Adam Kadmon: 1.° Kether (Coroa, Potência Suprema); 2.° Chokmah (Sabedoria Infinita); 3.° Binah (Inteligência Divina); 4.° Gedulah (Magestade ou Misericórdia); 5.° Geburah (Força ou Temor a deus); 6.° Thiphereth (Beleza); 7.° Netsach (Vitória sibre a morte); 8.° Hod (Glória e Repouso); 9.° Iesod (Fecundação); 10.° Malkhuth (Reino). Os cabalistas cristãos juntaram a estes dois livros o Apocalípse de S. João, que desvenda as realizações da Ciência no campo do Amor e da Caridade. Dürer revela ter conhecido muito bem a interpretação cabalística do Apocalípse, nas gravuras A prostituta da Babilónia (1498) e A visão dos sete candelabros (1498).

Como já se disse, a Cabala é uma chave para abrir as portas dos mistérios divinos, e esta imagem da chave esta relacionada com o duplo sentido de abrir e fechar qualquer coisa. É por sua vez o símbolo da iniciação e da discriminação: quando se entregam as chaves do conhecimento a alguém, isso significa que essa pessoa passou a entender a realidade de uma forma diferente, num outro nível de leitura e de sensibilidade. É o mesmo significado da atribuição das chaves do Reino dos Céus a S. Pedro. É o poder das chaves que permite ligar e desligar, abrir e fechar o céu, desvendar os segredos ocultos ao comum dos mortais. As chaves que figuram no armorial papal (uma de ouro e outra de prata), têm esse mesmo significado, e no período do império romano, estavam associadas a Janus, pois era ele que abria e fechava as duas portas do ano, os dois solstícios, as fases ascendente e descendente do Sol, ao mesmo tempo que representava a autoridade espiritual e as funções reais. A chave simboliza o chefe, o mestre, o iniciador, aquele que detém o poder de decisão e a responsabilidade. É por isso que, esotericamente, possuir a chave significa ter sido iniciado, ter entrado num meio restrito, numa casa, numa irmandade ou confraria, ou num grau iniciático.

Ora, o que se observa na gravura Melancolia, pendente da cintura do anjo em primeiro plano, não é apenas uma chave, mas seis (fig. XI). Segundo a tradição cristã (seguindo o Pseudo-Denys o Aéropagita, na sua Jerarquia celeste), há três ordens de anjos subdivididos em nove coros 8 : Primeira Ordem < 1.° Serafins (heb. Haioth Hakodesh – Inteligências providenciais); 2.° Querubins (heb. Ophanim – Formas ou Rodas, efusão de sabedoria); 3.° Tronos (heb. Aralim – Poderosos que mantêm a estrutura da matéria); Segunda Ordem < 4.° Dominações (heb. Hashemalim – Lúcidos que dão forma física); 5.° Virtudes (heb. Sheraphim – Ardentes de zelo, que produzem os elementos); 6.° Potências (heb. Malakhim – Reis que produzem os minerais); Terceira ordem < 7.° Principalidades (heb. Alhim/Eloim – Deuses ou Enviados de deus, que produzem os vegetais); 8.° Arcanjos (heb. Beni alhim – Filhos de Eloim, que produzem os animais); 9.° Anjos (heb. Kherubim – Anjos da guarda).

A tradição judaica considera ainda mais um grupo, o 10.° ou Aishim que é constituído pelos heróis ou almas glorificadas, que comunicam à humanidade a inteligência, a indústria e o reconhecimento das coisas divinas. Dos Arcanjos, reconhece o cristianismo sete, desde os concílios de Laodiceia (c. 360), de Roma (745) e de Aachem (789): Miguel (Vitorioso), Rafael (Médico) e Gabriel (Núncio); os outros estão proibidos de serem mencionados desde essa altura, mas os seus nomes existem e provêm da tradição judaica e são: Baracael (Ajuda), Uriel (Companheiro do forte), Ieadiel (Remunerador) e Sealtiel (Orador).

Ora, para identificar este anjo tão especial, deve-se atender ao número de chaves, pois é através delas que chegamos de forma indirecta à sua identidade, utilizando para isso o método da themurah. Tratando-se de um anjo, verificamos que o 6° grupo da segunda categoria (o detentor da sexta chave) é designado por Malakhim (Reis, Malakhah no singular), mas como parece óbvio, no contexto da imagem em geral, não faz sentido que Dürer quisesse representar um Malakhah, significando que ele recorreu a um processo cabalístico elaborado para querer significar um determinado anjo sem recorrer às formas tradicionais de representação católica apostólica e romana – Dürer encontrava-se profundamente dividido e angustiado em relação á Roma papal.

Aplicando a themurah e tirando o exemplo da própria Bíblia, onde Deus diz no Êxodo: Enviarei diante de ti o meu anjo. Ora, o meu anjo é, em hebraico, Melakhi. Transpondo as letras dessa palavra, obtemos o nome do anjo de que se fala nesta passagem bíblica, e que é Mikhael (Miguel), o protector do povo hebreu e o da própria Igreja católica romana; este exemplo de aplicação da themurah no caso em questão, em que Miguel é invocado, é conhecido na tradição judaica, e mais uma vez é a prova de que Dürer não só teve acesso directo à tradição, como a aprendeu. Como se sabe, Dürer nunca deixou de ser cristão, o seu problema, assim como o de milhares de crentes na Europa renascentista, era o de se encontrarem em grave crise existencial em relação a Roma, só resolvida com a intervenção de Erasmo e de Lutero.

Ao lado de Mikhael está outro anjo mais pequeno (um Querubim) sentado sobre uma Roda (mó), escrevendo numa ardósia. É ao 2.° grupo da primeira hierarquia que pertencem os Ophanim (Formas ou Rodas), que segundo a tradição foram responsáveis por terem posto em movimento as rodas estreladas. No Génesis (III, 24) surgem como os guardiões do Eden: E havendo lançado fora o homem, pôs querubins ao oriente do jardim do Éden, e uma espada inflamada que andava ao redor, para guardar o caminho da árvore da vida. No Êxodo (XXV, 18-21) é evocada a sua presença no momento da construção da Arca da Aliança quando IAHVE prescreve a Moisés: Farás, também dois querubins de ouro: de ouro os farás, nas duas extremidades do propiciatório. Farás um querubim na extremidade de uma parte, o outro querubim na extremidade da outra parte: de uma só peça com o propiciatório fareis os querubins nas duas extremidades. Parece evidente tratar-se de um Ophani, a sua dimensão e o facto de se encontrar sentado sob uma Roda (mó), não deixam dúvidas.

É notável a forma como Dürer insiste em não representar de forma tradicional os símbolos e as figuras do Velho Testamento preceituadas por Roma, o seu distanciamento religioso e ideológico é evidente, assim como a sua opção por outra tradição simbólica e iniciática, que em tudo chocava e contradizia o dogma católico apostólico romano e que dava respostas para um regresso à pureza do cristianismo primitivo e para uma vida segundo os Evangelhos: a Cabala cristã.

O pequeno Ophani que se observa na gravura encontra-se ainda encostado a um edifício, que ao contrário da interpretação feita por Rüdiger H. (…) figura alada, sentada junto de um edifício inacabado (…) 9 , cremos encontrar-se acabadíssimo, pois deve representar o Templo que IAHVE ordenou a Moisés que construísse, e em cujo tabernáculo se encontrava a Arca da Aliança. Lembremos que a dita Arca se encontrava encimada por dois Querubins de ouro, que ao mesmo tempo guardavam as tábuas da lei, e serviam a Deus como “suporte” para “comunicar” a sua vontade no Tabernáculo. O Ophani que observamos encontra-se encostado a parede do Templo e segura nas mãos uma das “tábuas” (Deus entregou duas a Moisés), onde escreve metade das leis (cinco), pois não devemos obliterar que Deus, quando transmitiu as mesmas leis no monte Sinai, Ele o fez de forma indirecta. Deus nunca se dá a ver nem a falar aos homens de forma directa.

Também encostado ao edifício do Templo, está uma escada com sete degraus, símbolo da progressão para a sabedoria, da ascensão para o conhecimento e da transfiguração de Cristo. Faz sentido encontrar-se apoiada no Templo, pois não é através dele que o homem tem a oportunidade de chegar a Deus, de entrar no seu habitáculo? E de, através da oração, pelo sacrifício e pela fé se elevar até Ele? A escada aparece assim, como símbolo do axis mundi e da verticalidade espiritual; com ela teria sonhado Jacob.

No Antigo testamento o número sete é utilizado 77 vezes, mas na representação da escada é evocado o esforço que todo aquele que busca deve fazer para se elevar mais alto, sempre em humildade e por tempo estipulado pela tradição, em ciclos não menores de sete anos. É curioso, e não nos parece que Dürer tenha esquecido esse pormenor, ou que tenha sido mera coincidência, que desde a primeira vez que esteve em Veneza (1494) até que fez o seu auto-retrato (1500), qual “Cristo” (!), vão sete anos, que desde a sua “cristificação” até que voltou a Itália pela segunda vez (até ao final da sua estada em 1507) vão mais sete anos, e que finalmente desde esta última data até que burilou a Melancolia, vão novamente sete anos. Terá sido mera coincidência, ou Dürer quis de facto retratar-se simbolicamente?

Segundo a arte do Tarot (outra das artes praticadas por certos cabalistas cristãos 10), as vinte e uma principais cartas do baralho, que formam os arcanos maiores, estão agrupadas em ternários de sete cartas, e cada um dos três grupos é identificado com um período do caminho que o iniciado na tradição irá percorrer. Assim, o primeiro ternário vai do Saltimbanco (I) até ao Carro (VII) e está relacionado com os valores do espírito, num sentido ontológico e ético; o segundo ternário, da carta da Justiça (VIII) à Temperança (XIII), com os valores da alma; e da carta do Diabo (XV) à do Mundo (XXI) com os mistérios que o corpo físico encerra, como templo que guarda em si a própria alma.

Ora, dos quatro elementos clássicos, que quer Platão, Pitágoras e a tradição cabalística incluem nos seus ensinamentos (Fogo, Água, Ar e Terra) e que Dürer fez representar nesta gravura, um há que se relaciona com este período da vida do artista, no final do terceiro ciclo de sete anos (1514), e que corresponde exactamente à última carta do Tarot e ao que ela representa (o Mundo, a Terra), assim como ao estado de melancolia. Platão diz-nos no Timeu, sobre as doenças relacionadas com o organismo humano e com a sua alma que, a cada elemento se relaciona um estado de alma e as partes líquidas (sangue e bílis): Fogo < quente, bílis amarela e febre; Água < húmido, sangue e terço; Ar < frio, fleuma e quotidiano; Terra < seco, bílis negra e quarto.

O estado de melancolia era atribuído a uma disfunção da alma com o elemento Terra. Outra designação latina para melancolia era atra bilis ou bilis negra, e no quadro platónico lá se encontra esta relação: a da bilis negra com a Terra. O mundo do Tarot exprime a recompensa, ou coroamento da obra (alquímica, mágica ou iniciática), o seu sucesso e a iluminação, o reconhecimento público pelas obras feitas, em fim, a boa fortuna ou boa sorte.

De facto, vemos um morcego esvoaçante segurando a legenda Melancolia, que como já observamos se relaciona com uma disfunção do elemento Terra; no pé da gravura, encontra-se a representação da esfera, símbolo perfeito de Terra / Mundo. O que podemos inferir daqui é que, apesar de Dürer ter atingido o final das provas a que foi submetido durante vinte e um anos, e ter sido reconhecido como Mestre, o que iremos ver brevemente, ele viu-se confrontado naquele momento da sua vida (1514), com dois acontecimentos que o angustiaram profundamente: a crise existencial com a igreja de Roma e a morte de sua mãe no mesmo ano. Encostado à esfera, lá se encontra o cão, fiel amigo do homem, psicopompo na noite da morte.

Regressando ao edifício. Os elementos que o identificam como Templo não são apenas a escada, o Querubim a balança e o sino. Algo mais define aquele espaço como sagrado; dedicado ao pai celeste, e essa outra indicação é o rectângulo numerado que se encontra gravado na parede frontespícia do mesmo edifício (fig. XII). Kameas é a designação que se atribuía aos “selos mágicos” cabalísticos e numerológicos bem conhecidos daqueles que praticavam as artes divinatórias.

Este “quadrado mágico” é o selo de Júpiter, companheiro de outros planetas, e cujo preceito indica dever ser desenhado em folha de estanho. — Inscrito pelo lado interior, um quadrado num círculo, e do outro a quadrícula numerada relativa ao planeta (neste caso Júpiter). A soma dos números horizontais, verticais ou em diagonal, será sempre 34 (3+4=7). Sobre a parte reversa deste selo será desenhada a figura de Júpiter: um rei vestido de arminho e coroado, a sua cabeça será encimada pelo tetragrama. O selo será conservado na penumbra 11 , e envolvido num tecido de seda azul, assegurando aos que o portam, a afeição e a amizade de todos, permitindo a quem, ou àquilo que o porta, conhecer uma doce velhice. Evitará conhecer as angústias da loucura e protegelo-à em todos os negócios que empreender. — Esta relação de Júpiter / Deus Pai com o número 34 e com as tábuas da lei (vid. sup.) aparece também no Êxodo 34: Então disse o senhor a Moisés: Lavra-te duas tábuas de pedra, como as primeiras; e eu escreverei nas tábuas as mesmas palavras que estavam nas primeiras tábuas, que tu quebraste.

De facto, todos os elementos simbólicos representados nesta gravura estão ligados à personalidade de Dürer, expressando o seu pensamento religiosos e místico mais íntimo, a sua situação face ao mundo que conhecia, o sentimento de dúvida e de angústia, a experiência da vida e da morte, mas também a preocupação de deixar uma marca muito pessoal, incontornável e inequívoca da sua identidade e do grau iniciático que tinha atingido. Esta preocupação extremamente pormenorizada, levou-o a registar a sua hora de nascimento, o que nos leva a reflectir sobre a importância que Dürer dava também a astrologia, “ciência” tida como tal na época do Renascimento, apesar das críticas contra a astrologia judiciária feitas por Pico de la Mirandola.

Seu pai, Antoine Koberger, anotou na crónica de família o nascimento em 1471, a uma terça-feira de 21 de Maio, dia de S. Prudêncio, às seis horas da tarde 12 , tempo marcado por um pequeníssimo relógio de sol, que se encontra pendurado no exterior do templo sobre a ampulheta. Com numeração romana (de I a XII) e vendo-se o gnomon que marca as horas solares, a sua sombra indica um ponto próximo da hora III excedendo-a, que julgamos serem as 18:00. É de notar que a alusão a construção do templo, assim como às divindades que ali estão representadas, significa também a construção simbólica do próprio Dürer enquanto homem, é por isso que a sua hora de nascimento esta ali representada (conotação óbvia com a astrologia 13), assim como a escada de sete degraus, o arcanjo Miguel (como seu protector) e o Querubim, etc.

O incensório, pode ser tomado como um dos símbolos de Cristo, pois o incenso é constituído por resinas incorruptíveis que, ao serem queimadas, têm como função elevar a oração “pelo fumo” (per fume) ao céu; é elemento purificador do ritual de aproximação à divindade, purificador do lugar onde se está e por extensão, purificador da terra – e a esfera ali se encontra bem próxima, junto dos instrumentos de construção do Templo.

O objecto que mais se salienta entre todos os outros, por ser solitário e perfeitamente geométrico, pertence à categoria dos poliedros (regulares, compostos ou irregulares). Os mais importantes são os regulares: tetraedro, cubo, octaedro, dodecaedro e icosaedro. Estes sólidos são designados sólidos platónicos por terem já sido estudados por Platão. Pitágoras, porém, já lhes tinha atribuído significados mágicos: o tetraedro assinalava o fogo; o cubo a terra; o octaedro o ar; o icosaedro a água; e o dodecaedro o universo. O poliedro que Dürer quis aqui representar é irregular, por ser um composto de dois elementos: o fogo (tetraedro) e o éter (correspondente ao universo). O martelo que se vê à sua esquerda é nítida alusão à Obra, ao trabalho de “talhar” a pedra bruta transformando-a em geometria perfeita, e não erraríamos nem cometeríamos nenhuma heresia se dissermos, da “pedra branca”, que surge no final da Grande Obra alquímica. A pedra que Dürer quis representar foi a “sua” pedra, o resultado da sua alquimia pessoal e da sua obra espiritual, que o consagrou como Mestre 14 . O símbolo final e identificador do grau de Mestre, ali se encontra também, mas na mão do seu protector, o arcanjjo Miguel.

O compasso aberto a 45° sempre foi emblema dos mestres pedreiros e não dos aprendizes. Seria adoptado por ordens místicas e iniciáticas para significar o mesmo. Do Latim compassare (medir) desde o início que significou o espírito, assim como as possibilidades do pensamento nas diversas formas de raciocínio e, também, da medida, do relativo (círculo) dependente do ponto inicial (absoluto). O afastamento dos seus braços indica a maior ou menor acção do espírito sobre a matéria. No grau de mestre, o ângulo do compasso é fixado em 45°, ou seja, metade do ângulo recto do esquadro, permitindo estabilidade em qualquer trabalho. Quanto mais aberto for o ângulo (até ao limite de 180°) tanto maior será o círculo, o que simbolicamente indica a extensão possível do pensamento a partir de um espírito cada vez mais forte 15 . Eis, pois, o símbolo final e primeiro, que identifica Dürer e que anuncia o término de várias provas, de um processo longo (como todos os percursos iniciáticos) de vinte e um anos.

Esta gravura é, talvez, a mais completa síntese da identidade de Dürer, aquela que melhor traduz o seu espírito, o seu profundo pensamento, típico do renascimento, mas ao mesmo tempo humanístico. Vislumbra-se a inquietação de um homem que, ao ter atingido tão alto grau na evolução intelectual e espiritual do seu tempo, se viu incapacitado para resolver a sua maior crise existencial. Que apesar de ser um Mestre, entendeu quão limitado se encontrava para se libertar das fronteiras da existência terrena. Nesta gravura, o homem do Renascimento expressa o seu profundo humanismo através do vasto conhecimento clássico grego, da tradição hebraica e cristã não ortodoxa, emergindo qual ilha utópica querendo viver em pureza original.


Figuras

Fig. I – Leonardo da Vinci, ilustração da De Divina Proporcione de Luca Pacioli.



Fig. IIa e IIb – Escala pitagórica. Detalhe da Escola de Athenas, Rafael.

Fig. III – De Harmonia Mundi totius de Francesco Giorgi.


Fig. IV-V – Os intervalos de oitava e de quinta correspondiam à medida da nave principal, segundo Francesco Giorgi. Diagrama musical da obra Explicações de Ezechiel, de H. Prado e G. B. Villalpando, 1596-1604.


Fig. VI – Página do livro de Villard de Honnecourt.


Fig. VII – Página da obra Vitruvius de Cesariano, 1521.


Fig. VIII – Construção de uma porta, do Regole generali di architettura de Sebastião Serlio, 1584.


Fig. IX – Tubalcain, Pitágoras e Filolau. Da Theorica musice de F. Gaufurio, 1492.


Fig. X – As chaves da Cabala.


Fig. XI – O Kameas de Júpiter.


Notas

1 - O movimento do Humanismo desocultou a mensagem do Evangelho que permanecia obscurecida pela inércia vaticana.

2 - Vid. Armando Vieira Santos, “Dürer”, in Dicionário da Pintura Universal, Lisboa Estúdios Cor, 1962, pp. 229-232.

3 -  In Rudolf Wittkower, Architectural principles in the age of Humanism, London, Academy Editions, 1988,p. 18.

4 - Luca Pacioli, in Rudolf Wittkower, op. cit., p. 25.

5 - Robert Mandrou, Des humanistes aux hommes de science (XVIe et XVIIe siècles), Paris, Éditions du Seuil, 1973, p. 37.140

6 - Aristóteles no seu De Coelo I, e Plutarco no Sympos, fazem referência a esta definição. Também Marsilio Ficino, no seu comentário ao Timeu de Platão, segue a mesma definição.

7 - Rüdiger an der Heiden, “Dürer”, in História da Arte, vol. I, Mem Martins, 1972, pp. 285-308.

8 - As três ordens de anjos no cristianismo, vieram pela tradição judaica e correspondem às três tríades que formam a árvore Sephiroth.

9 - Rüdiger an der Heiden, op. cit., p. 306.

10 - Platão, Timeu, Paris, Flammarion, 1992, pp. 208-209 e 276.

11 - O espaço interior do Templo é reservado a Deus, onde se manifesta de forma especial, ocultado dos olhares profanos e comunicando através do hierofante por forma mùagica. O nome Júpiter deriva do vocábulo latino Deos Pater, e este do grego Dyaus Pitar, do qual mais se aproxima. A identificação deste edifício como sendo o Templo dedicado ao Pai celeste, é algo que não deixa dúvidas. A forma como Dürer o faz e notória de contrariedade perante o dogma católico da catequese e da praxis geral.

12 - Ludwig Grote, Dürer, Genève, Albert Skira, 1990, p. 12.

13 - Dürer nasceu a 21 de mês de Maio e segundo a astrologia seria do signo Gémeos com ascendente em Escorpião.

14 - Pedra bruta e pedra cúbica significam dois momentos da vida do Aprendiz, e embora esta simbologia tenha sido divulgada durante o séc. XVIII a partir da maçonaria inglesa e francesa, ela já era conhecida desde a Idade Média entre os pedreiros livres, construtores de catedrais. Significa a primeira expressão, o estado de imperfeição do espírito profano antes de ser iniciado na Ordem, imperfeição que deve ser corrigida, assim como as paixões e os impulsos. A fase seguinte é desbastar a pedra com o martelo de iniciado, para tornar o que é tosco na obra-prima. Cf. A. H. Marques, Dicionario de Maçonaria Portuguesa, Lisboa, Editorial Delta, 1986, cols. 1098-1099. Cf. Jean Chevalier et Alain Gheerbrant, Dictionnaire des Symboles, Paris, Robert Laffont/Jupiter, 1982.

15 - A. H. Marques, op. cit., cols. 371-372.


 Fontes e bibliografia

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FONTE: CALAZANS, José Carlos. A Melancolia de Albercht Dürer (1471-1528). Revista Lusófona de Ciência das Religiões. ano XI, 2012 / n. 16/17. p. 135-152. Disponível em: <http://recil.grupolusofona.pt/bitstream/handle/10437/4136/A%20Melancolia%20de%20Albercht%20D%C3%BCrer%20(1471-1528).pdf?sequence=1>. Acesso em: 07 jul. 2015.

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