Por José Carlos Calazans
Centro de Estudos em Ciência das Religiões
Acreditamos
que só a partir de um determinado número de provas e de clara mestria, se podia
considerar a passagem de iniciado a Mestre.
Julgamos
que foi o que aconteceu a Dürer quando chegou pela primeira vez a Veneza.
É
provável que nesta cidade existisse uma representação da Nova Academia ou
confraria congénere, e que nela tenha sido aceite, mas só durante a sua segunda
visita entre 1505-1507, é que lhe foi reconhecido o grau de Mestre.
Não é agindo muito, mas acreditando n’Ele que o
glorificamos. A fé (a fé do íntimo do coração, essência de toda a nossa
justiça) é, portanto, a única justiça do cristão e o cumprimento dos preceitos.
MARTIN LUTERO (1483-1546) in A justificação
pela fé
O Humanismo encerra toda a contradição do homem moderno.
Pode parecer um paradoxo
dizer-se que Dürer não conhecia as regras
das proporções, as regras de ouro
ou harmónicas, e que só depois da sua primeira viagem a Itália (1494) é que as
conheceu, aplicando-as a partir desse momento em toda a sua produção artística,
como se todo aquele manancial de conhecimento hermético, lhe tivesse sido
revelado pela primeira vez. De facto, é só a partir de 1495 que inicia os
trabalhos em gravura a cobre e em madeira; é quando surgem as gravuras As Quatro Feiticeiras (1497), O Hércules (1498-1499), A Prostituta de Babilónia (1498) e A Visão dos Sete Candelabros (1498). É
claro que nas suas pinturas a óleo, anteriores àquele período e as que vieram
depois, essas regras eram respeitadas, mas não se mostravam visíveis ao mundo
profano, entre aqueles que não entendiam da Arte. Parece que Dürer escolheu a
madeira e principalmente o cobre, para transmitir uma determinada mensagem
desocultada.
Os conceitos de geometria
sagrada (pitagórica e platónica) eram já conhecidos e praticados desde a Alta Idade
média no mundo gótico e latino, quer nas construções de catedrais quer em
desenhos e iluminuras. Como se pode explicar então que Dürer, antes de 1514,
nunca tivesse ensaiado se quer um esboço de simbolismo geométrico sagrado, como
passou a ser a partir daquela data, com as gravuras em chapa de cobre: São Jerónimo na sua Célula, O Cavaleiro, a Morte e o Diabo e principalmente com a Melancolia? Porque esperou Dürer vinte e um anos, desde a primeira
viagem a Veneza (1494)? Ou, se preferirmos (o que não nos parece menos
verosímil), sete anos após a sua segunda viagem (1505-1507)?
Não temos grandes dúvidas
que as duas viagens a Itália tenham sido decisivas para aquela mudança estética
e ideológica. O problema que se deve pôr, é saber até que ponto os mestres que
conheceu foram o elo e a razão directa da sua atitude, e o que se entendia
naquela época por iniciação à Arte. Repare-se
que de 1494 a 1514 perfazem-se três ciclos de sete anos e que no final do
primeiro ciclo (1500), Dürer retratou-se à “imagem de Cristo”, no mesmo ano em
que Joacopo Barberi chegaria a Nuremberg, dando-lhe a conhecer Vitrúvio.
Durante a primeira estada em
Veneza, conheceu Gentile Bellini e Giovanni, estudou in loco as obras de Lorenzo di Vredi, Pallaioulo e Mantegna. Com
Gentile teve a oportunidade de tomar contacto com a arte de Victor Carpacio,
aprendendo a relacionar a perspectiva com a geometria. Não esqueçamos porém,
que Marsílio Ficcino (1433-1499) fundara a Nova
Academia (platónica), em cuja sede na Villa Montevecchio de Careggi
(Florença) se reuniam os maiores humanistas e filósofos italianos. Ali se cultivava
o neoplatonismo (síntese de platonismo com neopitagorismo da região de Crotona),
e foi na cidade daquela academia que o pai de Gentile, o pintor Jacopo Gentile (c.
1400-1470) recebeu o grande impulso para uma nova visão pictórica (entre 1420 e
1423), que o iria consagrar como fundador da pintura veneziana. Eis uma
coincidência que não pode deixar de ser notada. Existiria uma ligação directa
entre Veneza e Florença? Tinha a Nova
Academia membros espalhados pela Itália? Até onde a sua influência podia
chegar? Dürer levou-a para a Alemanha e um pouco para os Países Baixos
(Flandres) 1.
Tratando-se de uma Academia que pretendia ser tradicional,
no sentido clássico grego, fazendo reviver as abordagens ao conhecimento com a
revalorização do sujeito e a redescoberta de um universo simbólico, mítico e
até mesmo iniciático, cremos com uma certa convicção que, a aceitação de novos
membros nesta “irmandade”, passava por uma iniciação própria e adequada ao
indivíduo, com provas específicas ao grau a que se candidatava. Acreditamos que
só a partir de um determinado número de provas e de clara mestria, se podia
considerar a passagem de iniciado a Mestre. Julgamos que foi o que aconteceu a
Dürer quando chegou pela primeira vez a Veneza. É provável que nesta cidade
existisse uma representação da Nova
Academia ou confraria congénere, e que nela tenha sido aceite, mas só
durante a sua segunda visita entre 1505-1507, é que lhe foi reconhecido o grau
de Mestre.
A nossa convicção baseia-se
no estudo iconográfico da gravura Melancolia,
onde entre todos os objectos simbólicos ali representados, se revela um que é
indicador do grau de Mestre. Mas este é o assunto do estudo que agora se
apresenta, e por isso não pretendemos esgotar nesta introdução, aquilo que só o
rasgar do véu pode permitir.
Dürer
e os humanistas
... esta grande arte
universal e infinita da verdadeira pintura
ALBERCHT
DÜRER
Se me acontecer, com
a ajuda de Deus, encontrar o Dr. Martinho Lutero, gostaria de retratá-lo
cuidadosamente, gravando-o em cobre, para que permaneça a lembrança desse homem
cristão, que me ajudou a livrar-me de uma grande angústia.
ALBERCHT
DÜRER
Este testemunho foi escrito
por Dürer em 1520 e exprime um aspecto importante da sua arte e de toda a
cultura alemã da época. Reflecte o clima da Reforma, a vontade de romper com a
mediação de Roma e dos papas, envolvidos na época numa onda de acusações
desabonadoras. Dürer não aceitou representar a nova religião com as mesmas
formas utilizadas para o catolicismo, passando a liderar o movimento reformista
nas artes plásticas. Cultor da geometria sagrada e da perspectiva, Dürer
escreveu inclusive tratados sobre o assunto, editados entre 1525 e 1528.
Associou o espírito religioso com a mentalidade científica e trouxe o
Renascimento para dentro das fronteiras alemãs, tornou-se assim, o condigno
representante dos grandes artistas do Renascimento, tais como Leonardo da
Vinci, Rafael e Miguel Ângelo 2, depois da sua primeira viagem a
Veneza no Outono de 1494. Chegou ainda a contactar com Gentile e Giovanni Bellini
e observou as obras de Lorenzo di Credi, Pallaioulo e Mantegna. Foi, portanto, em
Itália que se operou a transformação em Dürer. O artífice que era, por tradição
familiar e de ambiente gótico, tornou-se num artista do Renascimento. Através
de Joacopo Barberi, que chegou a Nuremberg em 1500, conheceu as técnicas da
antiguidade e dos antigos, entre os quais Vitrúvio, que fixou a definição
matemática da beleza com a máxima: a
beleza consiste numa racional integração das proporções de todas as partes de
uma edifício numa maneira tal que cada parte tem o seu lado e forma
absolutamente fixados, nada podendo ser acrescentado ou tirado sem que se
destrua a harmonia do todo [segundo Leon Battista Alberti] 3 .
Se Dürer havia bebido os
princípios matemáticos das proporções da beleza através da obra de Cesariano, Vitruvius, editada em 1521, e sendo
Cesariano discípulo de Bramante, podemos fazer um juízo das ideias que eram
praticadas por seu mestre e por Leonardo. Não esqueçamos ainda que Luca
Pacioli, grande matemático e amigo de Leonardo, que lhe fez as ilustrações para
a obra De Divina proportione (fig. I),
apresentava Vitruvius num contexto matemático e metafísico, e esta mensagem
renascentista e clássica ao mesmo tempo, Dürer absorvera-a e aplicara na
Alemanha de forma brilhante nos seus trabalhos de gravura – Primeiro devemos falar das proporções do homem,
porque do corpo humano derivam todas as medias e suas designações e nele devem
ser encontrados todos os índices e proporções pelas quais Deus revela os mais
escondidos segredos da natureza 4. De facto, as antigas medidas
praticadas na Europa (e que ainda hoje se mantêm no sistema métrico
anglo-saxónico) indicam essas mesmas partes do corpo humano. A adesão de Dürer
ao renascimento italiano, inseria-se na sua caminhada pessoal para a humanização (no sentido humanístico); no
renascimento das artes o artista identificava-se como homem, assim como através
de Lutero.
Em Nuremberg, o seu
sentimento de insatisfação religiosa, manifestou-se primeiramente através das
gravuras em madeira das Cenas da paixão
e principalmente as quinze gravuras da série Apocalipse, editadas em livro no ano de 1498. Nelas, Dürer deu às
suas visões uma empolgante agitação e paixão interior, que reflectem os
sentimentos de inquietude para com a Roma papal, e a sua discórdia escatológica
segundo a atitude da Reforma.
A preocupação de Dürer seria
agora voltada para uma busca da forma clássica do conhecimento; a tradição
cristã medieval centrara-se no problema do conhecimento do homem e de Deus, com
a alternativa humanística, surgiria a forma clássica do conhecimento, que
passaria a concentrar-se no sujeito em si, com predominância da lógica e do
método, constituídos como ciência. O Conhecimento passaria a apresentar-se
segundo uma perspectiva e uma amplitude simbólica e hermenêutica. Para esse
conhecimento concorreram as traduções feitas do grego para o latim por
Francesco Maurolico e Frederico Comandino e as respectivas edições de
Arquimedes, Apolónio, Diofeuto, Aristarco de Samos e Euclides. Também os
avanços na matemática e na álgebra que se deram a lume por Luca Paciolli, Suma de Aritmética (1494), Ludovico
Ferrari e as Equações Quárticas
(1522-1565) e Francesco Vieta com a introdução de letras do alfabeto grego
melhorando o simbolismo algébrico para representar constantes e incógnitas.
Se Leonardo da Vinci foi
mais exuberante e prolixo, Dürer seria mais interveniente através das suas
obras sobre problemas teóricos, com o tratado das medidas Unterweisung der Messung (1525), e os quatro livros sobre as
proporções humanas Vier Bucher von
menschlichen Proportion (1528) 5.
Para Dürer e a sua época a
profecia relativa ao fim do mundo era uma tétrica visãocom actualidade.
Naqueles tempos calamitosos, de guerras e distúrbios, até os mais negros
presságios pareciam realizar-se: a derrocada da autoridade do imperador, a desvalorização
do dinheiro e de outros valores, a insegurança geral, a rebelião dos camponeses,
o alastramento da sífilis, as fomes, as secas e os intensos invernos gelados. Havia
a convicção de uma castigo universal. Data deste período o Apocalipse, pois para o artista de Nuremberg, uma das principais
missões da arte deveria ser a narração da História
Sagrada. Os painéis de Os Quatro
Apóstolos parecem uma advertência serena naqueles tempos tão agitados.
Dürer, como muitos alemães seus contemporâneos, depositou todas as esperanças
em Martinho Lutero. Aproximadamente a partir de 1500 e até ao fim dos seus
dias, interessou-se profundamente pelos problemas relacionados coma teoria da
arte, e especialmente com o estudo das proporções, tema de grande actualidade
para os humanistas da época.
Foi provavelmente através de
Konrad Celtis que Frederico o Sábio aceitou ser o mecenas fiel e generoso de
Dürer a partir de 1496. Por aquele grande humanista terá sido também
introduzido no grupo da plêiade maravilhosa dos humanistas de Nuremberg, a Herrentrinkstube, onde conheceu Willibal
Pirkheimer (o mais erudito humanista laico da sua época que seguramente
aconselhou e influenciou o artista), por quem a amizade se manteve toda a vida.
Neste círculo de gente tão especial, não havia outro artista senão Dürer, a sua
aceitação deveu-se a mérito próprio e ao destaque social que já tinha. Foi
também a queda natural pela ciência e o gosto pela música e a mitologia, que
fez ganhar a simpatia daqueles humanistas, os quais cultivavam entre si a geometria,
a astrologia, a astronomia, a cosmografia e as ciências naturais. Amigo íntimo do
artista, Pirkheimer estava relacionado com sábios e letrados, acompanhando
sempre com vivo interesse o apaixonado debate de ideias que levou à eclosão da
Reforma e fez alguns desses seus amigos intransigentes defensores de Lutero.
Partindo directamente do
Evangelho, Martinho Lutero impugnou o valor de toda a tradição eclesiástica e
chegou à negação da obra da Igreja e da sua fundação. Na doutrina e nos
resultados históricos que dela derivaram torna-se evidente o valor
revolucionário daquele retorno aos princípios que o Renascimento procurara
realizar em todas as manifestações da vida. No domínio religioso, este
princípio levava a negar o valor da tradição e, portanto, da Igreja, que durante
séculos acumulara o patrimônio das verdades fundamentais do catolicismo.
O retorno aos princípios
significava, portanto, o retorno ao ensinamento fundamental de Cristo, à
palavra do Evangelho, e daí o repúdio por tudo o que a tradição eclesiástica acrescentara
a esta palavra. Lutero defendia a justificação
por meio da fé, pretendia recuperar a fé e devolvê-la como Evangelho. A
“Fé”, era para ele a confiança pela qual
o homem deveria crer que os pecados lhe seriam remidos gratuitamente por Cristo
— esta seria a própria justificação por parte de Deus.
O homem que tem fé é o homem
cujos pecados foram remidos, o homem justificado, o homem salvo. A negação da
tradição eclesiástica, operada mercê de retorno ao Evangelho, torna-se assim a
negação da fundação sacerdotal e por isso a negação da distinção entre casta
sacerdotal e mundo laico. Esta consequência é tratada no escrito de Lutero À nobreza cristã da nação alemã (1520),
que iniciou a rebelião da Alemanha contra a igreja de Roma. Este foi o mesmo
ano em que Dürer fez aquela declaração, e a angústia a que ele se referia era a
de qualquer cristão nunca poder atingir a salvação, e estar eternamente
condenado pelos seus pecados, ou até por pecados que ele nunca tivesse
cometido.
Dos
princípios pitagóricos e platônicos
Dürer trazia já em si a
tradição gótica religiosa e mística das formas perfeitas. Trabalhara-as na
oficina de seu pai como aprendiz de ourives, submetera-se ao revigor movimento
renascentista italiano, e tentou tocar a harmonia
das esferas através das artes plásticas que dominava como verdadeiro mestre
que era. Se Lutero mostrara ao homem do norte (o alemão e o dos Países Baixos)
um mundo melhor e mais celestial, um regresso à pureza cristã primitiva,
apontando-lhe os Evangelhos, qual Platão, e se Pitágoras desvendara a divindade
pela pureza simbólica e mística dos números, da geometria e da música, Dürer,
por seu lado, sintetizou a ciência do Renascimento e a mensagem da Reforma,
revelando-se claramente como um crítico do aristotelismo.
Pitágoras cultivara com
esmero a matemática e a música, mas foram aos seus discípulos
Filolau de Tebas e a Arquites de Tarento que se deu o desenvolvimento e difusão
da aritmética e da geometria, como a criação da teoria das proporções e do Teorema de Pitágoras. Foi porém através
da música (figs. IIa e IIb) e da descoberta da relação directa da altura dos
sons com o comprimento da corda vibrante, que Pitágoras chegou à teoria das
proporções. Surgiu daqui a ideia de que a realidade
inteira se encontra estruturada por uma regularidade, por uma sequência
numérica com equivalência no real, fazendo-se equivaler aqueles números a
conceitos aritméticos e geométricos: o ponto era equivalente a 1; a linha ao 2;
a superfície ao 3; os corpos ao 4. A essência das figuras aparecia assim igual
à dos números que designavam o conjunto dos elementos espaciais nelas contidos.
O espaço cósmico é o
substracto geral de todas as coisas, e cada uma das coisas particulares
consiste em formas geométricas regulares, distribuídas no espaço. Este
princípio aplicava-se não só e numericamente à natureza exterior, como às
relações sociais e espirituais, assim como aos seus elementos e suas leis: as
propriedades da matéria, a relação entre a altura dos sons, a dimensão da corda
e a distância entre os planetas.
O
problema das proporções harmónicas
As proporções harmónicas
foram reveladas por Pitágoras e Platão, cujas ideias, que estiveram sempre
vivas durante a Idade média, tomaram novo folgo a partir do séc. XV com o
Renascimento. No conceito pitagórico dos números, o 3 é o primeiro número real
porque tem princípio meio e fim 6 , porque é o símbolo da Trindade, e claro está
que tem uma equivalência musical. Este princípio do número e da harmonia (musical
/ arquitectónica), foi mais tarde aplicado na tradição cristã europeia à
construção das catedrais, tomando como medidas base as que Deus entregou a
Moisés para a construção do Tabernáculo e que Salomão também utilizou para o
seu templo.
Francesco Giorgi explicaria
estas proporções partindo de termos musicais na sua obra De Harmonia Mundi totius (1525, fig. III), na mesma altura em que
Dürer publicava os seus trabalhos sobre perspectiva e geometria aplicados à sua
arte. Dizia Giorgi, que seguiu muito de perto
Ficcino, que a medida da nave principal (9:27) correspondia em termos musicais
a um diapasão (uma oitava) e a um diapenta (uma quinta, figs. IV e V).
Giorgi partia assim da tradição pitagórica (ou neo-pitagórica), e do aproveitamento
da progressão da escala musical grega (uma oitava, uma quinta e uma quarta),
que se podia representar numericamente por 1:2:3:4, com as variantes 1:2:3 (oitava
+ quinta) e 1:2:4 (duas oitavas). Nisto estavam de acordo Platão e todos os
construtores de catedrais do gótico (fig. VI) e assim continuou pelo Renascimento
com a recuperação dos clássicos.
A harmonia do mundo era expressa
pelos sete números 1, 2, 3, 4, 8, 9 e 27 que revelavam o ritmo secreto no
macrocosmos e no microcosmos. Os artistas medievais tendiam para projectar uma
norma geométrica preestabelecida no seu imaginário, enquanto os do Renascimento
extraíam uma norma métrica do fenómeno natural que os rodeava. No entanto, a regra de ouro (aplicada através do rectângulo mágico), seguia inalterável na
arquitectura do renascimento, com a recuperação do clássico greco-latino (figs.
VII e VIII).
Dürer plasmou-se nesta
dimensão da geometria e da medida humana microcósmica, na norma métrica de
tradição italiana (de influência pitagórica e de fundo ético-religioso
platónico).
Saía assim, aquela métrica,
e de forma directa, dos intervalos musicais da escala pentatónica grega,
aplicada às formas do real que se pretendiam tomar, quer na arquitectura quer
nas artes plásticas. Segundo a tradição judaica, árabe e cristã, a origem da
música e do fabrico dos instrumentos de metal, era atribuído a Tubaalcaim (fig.
IX). Concedia-se assim a origem à tradição fenícia, que trabalhara o bronze e o
comerciara pelo Mediterrâneo. A Pitágoras, a identificação por forma empírica e
científica dos sons, através de uma sistemática forma de múltiplas divisões e
subdivisões de vários corpos vibrantes (cordas, metais e sopros) continuada por
Filolau. A construção das catedrais e dos instrumentos musicais estava
submetida a uma “ciência pitagórica”, que se pautava por determinadas medidas
ditas de ouro, traduzindo uma harmonia natural, um equilíbrio e uma sintonia
com o macrocosmos.
Para
uma leitura iconográfica da Melancolia
de Albercht Dürer
Em 1514, Dürer representava
na gravura Melancolia (fig. X) esse
drama, essa imensa tristeza, essa negra compulsão do sentimento de culpa. Mas o
que torna esta gravura verdadeiramente extraordinária, é o autor representar-se
por símbolos.
Toda a sua natureza humana
(religiosa, mística, mágica e científica), ele retratou nesta gravura. Exprimiu
o problema da apatia e do desalento pelos enigmas que as suas especulações não
conseguiam resolver; como disse Rüdiger H.: a
paz triste da sabedoria profunda 7 . O seu estado de melancolia ali ficou
retratado, imagem da sua angústia religiosa, reforçada pela morte da mãe que
nesse mesmo ano falecera (1514); só em 1520 viria a libertar-se daquela
angústia quando encontrou Lutero, e se identificou com o conteúdo do texto À nobreza cristã da nação alemã.
Para compreendermos a
multifacetada mensagem que Dürer gravou daquela maneira, é importante termos em
conta vários elementos que uma leitura iconográfica exige. Serão elementos que
a própria época forneceu (a Cabala, a Astrologia, a Geometria Sagrada de
Pitágoras e de Platão e o simbolismo cristão), que criou e construiu sobre o
homem medieval, mas elementos que também partiram dos aspectos mais profundos da
psicologia düreriana, um composto alquímico de lugares familiares, de sentimentos
expressos simbolicamente, e de uma ideologia humanística afirmada pelo
Renascimento italiano, simbiose de cujo grande impulso recebeu pela via do
neoplatonismo, reforçada pela presença de Lutero. Com esses contributos
vislumbrou o equilíbrio harmónico das formas e das ideias; a perspectiva, em
que foi inovador, surgiria nessa via.
Neste sentido, e para que se
possa seguir com alguma segurança a descodificação, que nos permitirá conhecer
o pensamento expresso por Dürer nesta gravura, será necessário explicarmos de
forma sucinta os princípios da Cabala e da Geometria Sagrada, mesmo sabendo que
esta tentativa pode deixar de fora elementos caracterizantes das duas
filosofias. Tenhamos ainda em mente que, durante o Renascimento, a teosofia cabalística
exerceu notável influência na igreja cristã e que já anteriormente cabalistas notáveis
haviam produzido discípulos e alimentado escolas no Mediterrâneo, como Philon,
Avicena, Raimundo Lulio, Pico de la Mirandola, Paracelso, Reuchlin e Schikard.
Cabala (kabbala) significa em hebraico, ensino
oculto e também tradição (Kabbalah), dividindo-se em especulativa e prática.
Para todo o ensino iniciático deve haver sempre um conjunto de chaves adequadas à abertura dos enigmas, é por isso que também se atribui o
significado de Chave à Cabala.
É, porém, a Cabala prática que nos interessa, pois
foi esta que mais se difundiu na Europa medieval e do renascimento, entre os
homens cristãos de letras e de ciências. Esta Cabala rege-se por regras de hermenêutica, dispostas em três
variedades: a gematria (corruptela de
geometria; com afinidades à numerologia pitagórica), considera o
valor numérico da palavra ou palavras do texto cuja significação se quer
indagar e cuja significação será determinada pelo sentido de outra palavra
estranha cujas letras somam o mesmo valor numérico que aquela ou aquelas
extraídas do texto; o notáricon, trata
da junção à maneira acrostica, das letras iniciais ou finais das palavras da
frase cujo significado se pretende investigar, e sendo o acrostico achado,
têm-se a palavra que permite descobrir o sentido da frase; e a themurah, pela qual o novo significado
tirado de uma palavra aparece na transposição das letras de que aquela se
compõem, ou separando-as de modo a formarem palavras diferentes por um processo
anagramático.
É doutrina principal da
verdadeira Cabala, entender a
natureza da divindade pelo reconhecimento do microcosmo e do macrocosmos, das
divinas emanações e da cosmogonia, da criação dos anjos e do homem, dos seus destinos
e do significado da verdadeira lei. Esta doutrina está contida em dois livros,
o Sepher Ietsirah (Livro da Criação) e o Sepher-ha-Zohar (Livro do Esplendor). E neste último que se encontra a árvore
Sephiroth com as suas dez manifestações, forma representativa do homem arquétipo, filho de deus, Adam Kadmon: 1.° Kether (Coroa, Potência Suprema); 2.° Chokmah (Sabedoria Infinita); 3.° Binah (Inteligência Divina); 4.° Gedulah (Magestade ou Misericórdia); 5.° Geburah (Força ou Temor a deus); 6.° Thiphereth (Beleza); 7.° Netsach
(Vitória sibre a morte); 8.° Hod
(Glória e Repouso); 9.° Iesod
(Fecundação); 10.° Malkhuth (Reino).
Os cabalistas cristãos juntaram a estes dois livros o Apocalípse de S. João, que desvenda as realizações da Ciência no
campo do Amor e da Caridade. Dürer revela ter conhecido muito bem a
interpretação cabalística do Apocalípse,
nas gravuras A prostituta da Babilónia
(1498) e A visão dos sete candelabros
(1498).
Como já se disse, a Cabala é uma chave para abrir as portas
dos mistérios divinos, e esta imagem da chave esta relacionada com o duplo
sentido de abrir e fechar qualquer coisa. É por sua vez o símbolo da iniciação e da discriminação: quando se entregam as chaves do conhecimento a
alguém, isso significa que essa pessoa passou a entender a realidade de uma
forma diferente, num outro nível de leitura e de sensibilidade. É o mesmo
significado da atribuição das chaves do
Reino dos Céus a S. Pedro. É o poder das chaves que permite ligar e desligar, abrir e fechar o céu, desvendar os segredos
ocultos ao comum dos mortais. As chaves que figuram no armorial papal (uma de
ouro e outra de prata), têm esse mesmo significado, e no período do império
romano, estavam associadas a Janus, pois era ele que abria e fechava as duas
portas do ano, os dois solstícios, as fases ascendente e descendente do Sol, ao
mesmo tempo que representava a autoridade espiritual e as funções reais. A chave simboliza o chefe, o mestre, o
iniciador, aquele que detém o poder de decisão e a responsabilidade. É por isso
que, esotericamente, possuir a chave
significa ter sido iniciado, ter entrado num meio restrito, numa casa, numa
irmandade ou confraria, ou num grau iniciático.
Ora, o que se observa na
gravura Melancolia, pendente da cintura
do anjo em primeiro plano, não é apenas uma chave, mas seis (fig. XI). Segundo
a tradição cristã (seguindo o Pseudo-Denys o Aéropagita, na sua Jerarquia
celeste), há três ordens de anjos subdivididos em nove coros 8 : Primeira
Ordem < 1.° Serafins (heb. Haioth
Hakodesh – Inteligências providenciais); 2.° Querubins (heb. Ophanim – Formas ou Rodas, efusão de
sabedoria); 3.° Tronos (heb. Aralim –
Poderosos que mantêm a estrutura da matéria); Segunda Ordem < 4.° Dominações
(heb. Hashemalim – Lúcidos que dão
forma física); 5.° Virtudes (heb. Sheraphim
– Ardentes de zelo, que produzem os elementos); 6.° Potências (heb. Malakhim – Reis que produzem os
minerais); Terceira ordem < 7.° Principalidades (heb. Alhim/Eloim – Deuses ou
Enviados de deus, que produzem os vegetais); 8.° Arcanjos (heb. Beni alhim – Filhos de Eloim, que
produzem os animais); 9.° Anjos (heb. Kherubim
– Anjos da guarda).
A tradição judaica considera
ainda mais um grupo, o 10.° ou Aishim
que é constituído pelos heróis ou almas glorificadas, que comunicam à
humanidade a inteligência, a indústria e o reconhecimento das coisas divinas.
Dos Arcanjos, reconhece o cristianismo sete, desde os concílios de Laodiceia
(c. 360), de Roma (745) e de Aachem (789): Miguel (Vitorioso), Rafael (Médico)
e Gabriel (Núncio); os outros estão proibidos de serem mencionados desde essa
altura, mas os seus nomes existem e provêm da tradição judaica e são: Baracael
(Ajuda), Uriel (Companheiro do forte), Ieadiel (Remunerador) e Sealtiel
(Orador).
Ora, para identificar este
anjo tão especial, deve-se atender ao número de chaves, pois é através delas
que chegamos de forma indirecta à sua identidade, utilizando para isso o método
da themurah. Tratando-se de um anjo,
verificamos que o 6° grupo da segunda categoria (o detentor da sexta chave) é
designado por Malakhim (Reis, Malakhah no singular), mas como parece
óbvio, no contexto da imagem em geral, não faz sentido que Dürer quisesse
representar um Malakhah, significando
que ele recorreu a um processo cabalístico elaborado para querer significar um
determinado anjo sem recorrer às formas tradicionais de representação católica
apostólica e romana – Dürer encontrava-se profundamente dividido e angustiado
em relação á Roma papal.
Aplicando a themurah e tirando o exemplo da própria
Bíblia, onde Deus diz no Êxodo: Enviarei diante de ti o meu anjo. Ora, o
meu anjo é, em hebraico, Melakhi. Transpondo
as letras dessa palavra, obtemos o nome do anjo de que se fala nesta passagem
bíblica, e que é Mikhael (Miguel), o
protector do povo hebreu e o da própria Igreja católica romana; este exemplo de
aplicação da themurah no caso em
questão, em que Miguel é invocado, é conhecido na tradição judaica, e mais uma
vez é a prova de que Dürer não só teve acesso directo à tradição, como a
aprendeu. Como se sabe, Dürer nunca deixou de ser cristão, o seu problema,
assim como o de milhares de crentes na Europa renascentista, era o de se
encontrarem em grave crise existencial em relação a Roma, só resolvida com a
intervenção de Erasmo e de Lutero.
Ao lado de Mikhael está outro anjo mais pequeno (um
Querubim) sentado sobre uma Roda
(mó), escrevendo numa ardósia. É ao 2.° grupo da primeira hierarquia que pertencem
os Ophanim (Formas ou Rodas), que
segundo a tradição foram responsáveis por terem posto em movimento as rodas estreladas. No Génesis (III, 24) surgem como os guardiões
do Eden: E havendo lançado fora o homem,
pôs querubins ao oriente do jardim do Éden, e uma espada inflamada que andava
ao redor, para guardar o caminho da árvore da vida. No Êxodo (XXV, 18-21) é evocada a sua presença no momento da construção
da Arca da Aliança quando IAHVE prescreve a Moisés: Farás, também dois querubins de ouro: de ouro os farás, nas duas
extremidades do propiciatório. Farás um querubim na extremidade de uma parte, o
outro querubim na extremidade da outra parte: de uma só peça com o
propiciatório fareis os querubins nas duas extremidades. Parece evidente
tratar-se de um Ophani, a sua dimensão e o facto de se encontrar sentado sob
uma Roda (mó), não deixam dúvidas.
É notável a forma como Dürer
insiste em não representar de forma tradicional os símbolos e as figuras do
Velho Testamento preceituadas por Roma, o seu distanciamento religioso e
ideológico é evidente, assim como a sua opção por outra tradição simbólica e
iniciática, que em tudo chocava e contradizia o dogma católico apostólico romano
e que dava respostas para um regresso à pureza do cristianismo primitivo e para
uma vida segundo os Evangelhos: a Cabala
cristã.
O pequeno Ophani que se observa na gravura
encontra-se ainda encostado a um edifício, que ao contrário da interpretação
feita por Rüdiger H. (…) figura alada,
sentada junto de um edifício inacabado (…) 9 , cremos
encontrar-se acabadíssimo, pois deve representar o Templo que IAHVE ordenou a
Moisés que construísse, e em cujo tabernáculo se encontrava a Arca da Aliança. Lembremos que a dita
Arca se encontrava encimada por dois Querubins de ouro, que ao mesmo tempo
guardavam as tábuas da lei, e serviam a Deus como “suporte” para “comunicar” a
sua vontade no Tabernáculo. O Ophani
que observamos encontra-se encostado a parede do Templo e segura nas mãos uma
das “tábuas” (Deus entregou duas a Moisés), onde escreve metade das leis (cinco),
pois não devemos obliterar que Deus, quando transmitiu as mesmas leis no monte
Sinai, Ele o fez de forma indirecta. Deus nunca se dá a ver nem a falar aos homens
de forma directa.
Também encostado ao edifício
do Templo, está uma escada com sete degraus, símbolo da progressão para a
sabedoria, da ascensão para o conhecimento e da transfiguração de Cristo. Faz
sentido encontrar-se apoiada no Templo, pois não é através dele que o homem tem
a oportunidade de chegar a Deus, de entrar no seu habitáculo? E de, através da
oração, pelo sacrifício e pela fé se elevar até Ele? A escada aparece assim, como símbolo do axis mundi e da verticalidade espiritual; com ela teria sonhado
Jacob.
No Antigo testamento o
número sete é utilizado 77 vezes, mas na representação da escada é evocado o
esforço que todo aquele que busca deve fazer para se elevar mais alto, sempre
em humildade e por tempo estipulado pela tradição, em ciclos não menores de
sete anos. É curioso, e não nos parece que Dürer tenha esquecido esse pormenor,
ou que tenha sido mera coincidência, que desde a primeira vez que esteve em Veneza
(1494) até que fez o seu auto-retrato (1500), qual “Cristo” (!), vão sete anos,
que desde a sua “cristificação” até que voltou a Itália pela segunda vez (até
ao final da sua estada em 1507) vão mais sete anos, e que finalmente desde esta
última data até que burilou a Melancolia,
vão novamente sete anos. Terá sido mera coincidência, ou Dürer quis de facto
retratar-se simbolicamente?
Segundo a arte do Tarot
(outra das artes praticadas por certos cabalistas cristãos 10), as
vinte e uma principais cartas do baralho, que formam os arcanos maiores, estão agrupadas em ternários de sete cartas, e cada um dos três grupos é identificado
com um período do caminho que o iniciado na tradição irá percorrer. Assim, o
primeiro ternário vai do Saltimbanco
(I) até ao Carro (VII) e está
relacionado com os valores do espírito, num sentido ontológico e ético; o
segundo ternário, da carta da Justiça
(VIII) à Temperança (XIII), com os
valores da alma; e da carta do Diabo
(XV) à do Mundo (XXI) com os mistérios
que o corpo físico encerra, como templo que guarda em si a própria alma.
Ora, dos quatro elementos
clássicos, que quer Platão, Pitágoras e a tradição cabalística incluem nos seus
ensinamentos (Fogo, Água, Ar e Terra) e que Dürer fez representar nesta
gravura, um há que se relaciona com este período da vida do artista, no final
do terceiro ciclo de sete anos (1514), e que corresponde exactamente à última
carta do Tarot e ao que ela representa (o Mundo, a Terra), assim como ao estado
de melancolia. Platão diz-nos no Timeu, sobre as doenças relacionadas com
o organismo humano e com a sua alma que, a cada elemento se relaciona um estado
de alma e as partes líquidas (sangue e bílis): Fogo < quente, bílis amarela
e febre; Água < húmido, sangue e terço; Ar < frio, fleuma e quotidiano;
Terra < seco, bílis negra e quarto.
O estado de melancolia era atribuído a uma disfunção
da alma com o elemento Terra. Outra designação latina para melancolia era atra bilis
ou bilis negra, e no quadro platónico
lá se encontra esta relação: a da bilis
negra com a Terra. O mundo do Tarot exprime a recompensa, ou
coroamento da obra (alquímica, mágica
ou iniciática), o seu sucesso e a iluminação,
o reconhecimento público pelas obras feitas, em fim, a boa fortuna ou boa sorte.
De facto, vemos um morcego
esvoaçante segurando a legenda Melancolia, que como já observamos se relaciona
com uma disfunção do elemento Terra; no pé da gravura, encontra-se a
representação da esfera, símbolo
perfeito de Terra / Mundo. O que podemos inferir daqui é
que, apesar de Dürer ter atingido o final das provas a que foi submetido
durante vinte e um anos, e ter sido reconhecido como Mestre, o que iremos ver brevemente, ele viu-se confrontado naquele
momento da sua vida (1514), com dois acontecimentos que o angustiaram
profundamente: a crise existencial com a igreja de Roma e a morte de sua mãe no
mesmo ano. Encostado à esfera, lá se encontra o cão, fiel amigo do homem, psicopompo na noite da morte.
Regressando ao edifício. Os
elementos que o identificam como Templo
não são apenas a escada, o Querubim a balança e o sino. Algo
mais define aquele espaço como sagrado; dedicado ao pai celeste, e essa outra
indicação é o rectângulo numerado que se encontra gravado na parede
frontespícia do mesmo edifício (fig. XII). Kameas
é a designação que se atribuía aos “selos mágicos” cabalísticos e numerológicos
bem conhecidos daqueles que praticavam as artes divinatórias.
Este “quadrado mágico” é o selo de Júpiter, companheiro de outros
planetas, e cujo preceito indica dever ser desenhado em folha de estanho. —
Inscrito pelo lado interior, um quadrado num círculo, e do outro a quadrícula numerada
relativa ao planeta (neste caso Júpiter). A soma dos números horizontais,
verticais ou em diagonal, será sempre 34 (3+4=7). Sobre a parte reversa deste
selo será desenhada a figura de Júpiter: um rei vestido de arminho e coroado, a
sua cabeça será encimada pelo tetragrama. O selo será conservado na penumbra 11
, e envolvido num tecido de seda azul, assegurando aos que o portam, a
afeição e a amizade de todos, permitindo a quem, ou àquilo que o porta, conhecer
uma doce velhice. Evitará conhecer as angústias da loucura e protegelo-à em
todos os negócios que empreender. — Esta relação de Júpiter / Deus Pai com o
número 34 e com as tábuas da lei
(vid. sup.) aparece também no Êxodo 34: Então
disse o senhor a Moisés: Lavra-te duas tábuas de pedra, como as primeiras; e eu
escreverei nas tábuas as mesmas palavras que estavam nas primeiras tábuas, que
tu quebraste.
De facto, todos os elementos
simbólicos representados nesta gravura estão ligados à personalidade de Dürer,
expressando o seu pensamento religiosos e místico mais íntimo, a sua situação
face ao mundo que conhecia, o sentimento de dúvida e de angústia, a experiência
da vida e da morte, mas também a preocupação de deixar uma marca muito pessoal,
incontornável e inequívoca da sua identidade e do grau iniciático que tinha
atingido. Esta preocupação extremamente pormenorizada, levou-o a registar a sua
hora de nascimento, o que nos leva a reflectir sobre a importância que Dürer dava
também a astrologia, “ciência” tida como tal na época do Renascimento, apesar das
críticas contra a astrologia judiciária
feitas por Pico de la Mirandola.
Seu pai, Antoine Koberger,
anotou na crónica de família o nascimento em 1471, a uma terça-feira de 21 de
Maio, dia de S. Prudêncio, às seis horas da tarde 12 , tempo marcado por um
pequeníssimo relógio de sol, que se encontra pendurado no exterior do templo
sobre a ampulheta. Com numeração romana (de I a XII) e vendo-se o gnomon que marca as horas solares, a sua
sombra indica um ponto próximo da hora III excedendo-a, que julgamos serem as
18:00. É de notar que a alusão a construção do templo, assim como às divindades
que ali estão representadas, significa também a construção simbólica do próprio
Dürer enquanto homem, é por isso que a sua hora de nascimento esta ali
representada (conotação óbvia com a astrologia 13), assim como a
escada de sete degraus, o arcanjo Miguel (como seu protector) e o Querubim,
etc.
O incensório, pode ser
tomado como um dos símbolos de Cristo, pois o incenso é constituído por resinas
incorruptíveis que, ao serem queimadas, têm como função elevar a oração “pelo
fumo” (per fume) ao céu; é elemento
purificador do ritual de aproximação à divindade, purificador do lugar onde se
está e por extensão, purificador da terra – e a esfera ali se encontra bem
próxima, junto dos instrumentos de construção do Templo.
O objecto que mais se
salienta entre todos os outros, por ser solitário e perfeitamente geométrico,
pertence à categoria dos poliedros (regulares, compostos ou irregulares). Os
mais importantes são os regulares: tetraedro, cubo, octaedro, dodecaedro e
icosaedro. Estes sólidos são designados sólidos
platónicos por terem já sido estudados por Platão. Pitágoras, porém, já
lhes tinha atribuído significados mágicos: o tetraedro assinalava o fogo; o
cubo a terra; o octaedro o ar; o icosaedro a água; e o dodecaedro o universo.
O poliedro que Dürer quis aqui representar é irregular, por ser um composto de
dois elementos: o fogo (tetraedro) e
o éter (correspondente ao universo).
O martelo que se vê à sua esquerda é nítida alusão à Obra, ao trabalho de “talhar” a pedra bruta transformando-a em
geometria perfeita, e não erraríamos nem cometeríamos nenhuma heresia se
dissermos, da “pedra branca”, que surge no final da Grande Obra alquímica. A pedra
que Dürer quis representar foi a “sua” pedra, o resultado da sua alquimia pessoal
e da sua obra espiritual, que o consagrou como Mestre 14 . O símbolo
final e identificador do grau de Mestre, ali se encontra também, mas na mão do
seu protector, o arcanjjo Miguel.
O compasso aberto a 45°
sempre foi emblema dos mestres pedreiros e não dos aprendizes. Seria adoptado
por ordens místicas e iniciáticas para significar o mesmo. Do Latim compassare (medir) desde o início que
significou o espírito, assim como as possibilidades do pensamento nas diversas
formas de raciocínio e, também, da medida, do relativo (círculo) dependente do
ponto inicial (absoluto). O afastamento dos seus braços indica a maior ou menor
acção do espírito sobre a matéria. No grau de mestre, o ângulo do compasso é
fixado em 45°, ou seja, metade do ângulo recto do esquadro, permitindo
estabilidade em qualquer trabalho. Quanto mais aberto for o ângulo (até ao
limite de 180°) tanto maior será o círculo, o que simbolicamente indica a
extensão possível do pensamento a partir de um espírito cada vez mais forte 15 . Eis, pois, o símbolo final e
primeiro, que identifica Dürer e que anuncia o término de várias provas, de um
processo longo (como todos os percursos iniciáticos) de vinte e um anos.
Esta gravura é, talvez, a
mais completa síntese da identidade de Dürer, aquela que melhor traduz o seu
espírito, o seu profundo pensamento, típico do renascimento, mas ao mesmo tempo
humanístico. Vislumbra-se a inquietação de um homem que, ao ter atingido tão
alto grau na evolução intelectual e espiritual do seu tempo, se viu
incapacitado para resolver a sua maior crise existencial. Que apesar de ser um
Mestre, entendeu quão limitado se encontrava para se libertar das fronteiras da
existência terrena. Nesta gravura, o homem do Renascimento expressa o seu
profundo humanismo através do vasto conhecimento clássico grego, da tradição
hebraica e cristã não ortodoxa, emergindo qual ilha utópica querendo viver em
pureza original.
Figuras
Fig.
I – Leonardo da Vinci, ilustração da De
Divina Proporcione de Luca Pacioli.
Fig.
IIa e IIb – Escala pitagórica.
Detalhe da Escola de Athenas, Rafael.
Fig.
III – De Harmonia Mundi totius de
Francesco Giorgi.
Fig.
IV-V – Os intervalos de oitava e de quinta correspondiam à medida da nave
principal, segundo Francesco Giorgi. Diagrama musical da obra Explicações de Ezechiel, de H. Prado e
G. B. Villalpando, 1596-1604.
Fig.
VI – Página do livro de Villard de Honnecourt.
Fig.
VII – Página da obra Vitruvius de Cesariano, 1521.
Fig.
VIII – Construção de uma porta, do Regole
generali di architettura de Sebastião Serlio, 1584.
Fig.
IX – Tubalcain, Pitágoras e Filolau. Da
Theorica musice de F. Gaufurio, 1492.
Fig.
X – As chaves da Cabala.
Fig.
XI – O Kameas de Júpiter.
Notas
1 - O movimento do Humanismo desocultou a
mensagem do Evangelho que permanecia obscurecida pela inércia vaticana.
2 - Vid. Armando
Vieira Santos, “Dürer”, in Dicionário da
Pintura Universal, Lisboa Estúdios Cor, 1962, pp. 229-232.
3 - In Rudolf Wittkower, Architectural principles in the age of Humanism, London, Academy
Editions, 1988,p. 18.
4 - Luca Pacioli, in
Rudolf Wittkower, op. cit., p. 25.
5 - Robert Mandrou, Des humanistes aux hommes de science (XVIe et XVIIe siècles),
Paris, Éditions du Seuil, 1973, p. 37.140
6 - Aristóteles no seu
De Coelo I, e Plutarco no Sympos, fazem referência a esta
definição. Também Marsilio Ficino, no seu comentário ao Timeu de Platão, segue a mesma definição.
7 - Rüdiger an der
Heiden, “Dürer”, in História da Arte,
vol. I, Mem Martins, 1972, pp. 285-308.
8 - As três ordens de
anjos no cristianismo, vieram pela tradição judaica e correspondem às três
tríades que formam a árvore Sephiroth.
9 - Rüdiger an der
Heiden, op. cit., p. 306.
10 - Platão, Timeu, Paris, Flammarion, 1992, pp.
208-209 e 276.
11 - O espaço interior
do Templo é reservado a Deus, onde se manifesta de forma especial, ocultado dos
olhares profanos e comunicando através do hierofante por forma mùagica. O nome Júpiter deriva do vocábulo latino Deos Pater, e este do grego Dyaus Pitar, do qual mais se aproxima. A
identificação deste edifício como sendo o Templo dedicado ao Pai celeste, é
algo que não deixa dúvidas. A forma como Dürer o faz e notória de contrariedade
perante o dogma católico da catequese e da praxis
geral.
12 - Ludwig Grote, Dürer, Genève, Albert Skira, 1990, p.
12.
13 - Dürer nasceu a 21
de mês de Maio e segundo a astrologia seria do signo Gémeos com ascendente em
Escorpião.
14 - Pedra bruta e pedra cúbica significam dois momentos da vida do Aprendiz, e embora esta simbologia tenha
sido divulgada durante o séc. XVIII a partir da maçonaria inglesa e francesa,
ela já era conhecida desde a Idade Média entre os pedreiros livres,
construtores de catedrais. Significa a primeira expressão, o estado de
imperfeição do espírito profano antes de ser iniciado na Ordem, imperfeição que
deve ser corrigida, assim como as paixões e os impulsos. A fase seguinte é
desbastar a pedra com o martelo de
iniciado, para tornar o que é tosco na obra-prima.
Cf. A. H. Marques, Dicionario de
Maçonaria Portuguesa, Lisboa, Editorial Delta, 1986, cols. 1098-1099. Cf.
Jean Chevalier et Alain Gheerbrant, Dictionnaire
des Symboles, Paris, Robert Laffont/Jupiter, 1982.
15 - A. H. Marques, op. cit., cols. 371-372.
Fontes e bibliografia
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Nicola História da Filosofia, vol. V. Lisboa: Editorial Presença, 1984.
BRUNO,
Giordano. Acerca do Infinito, do
Universo e dos Mundos. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1984.
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Jean; GHEERBRANT, Alain. Dictionnaire des Symboles. Paris: Robert
Laffont/Jupiter, 1982.
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António Borges. Portugal na Espanha
Árabe, vol. IV. Lisboa: Seara Nova, 1975.
COHN,
Werner. Albrecht Dürer. Lisboa:
Livraria Bertrand, 1953.
COLOMER,
Eusebio. Nicolau de Cusa
(1401-1464). De Deo abscondito. Braga: Faculdade de Filosofia, 1964.
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Giovanni; DONATI, Maria. Museus do
Vaticano. Lisboa: Editorial Verbo, 1973.
DUNSTAN,
J. Leslie. Protestantismo. Lisboa:
Editorial Verbo, 1980.
GROTE,
Ludwig. Dürer. Genève: Editions
d’Art Albert Skira, 1990.
HEIDEN,
Rüdiger van der. Dürer. História da
Arte, vol. VI. Mem Martins: Edições Alfa, 1972.
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Robert. Des humanistes aux hommes de
science (XVIe et XVIIe siècles). Paris: Éditions du
Seuil, 1973.
MARQUES,
A. H. de Oliveira. Dicionário de
maçonaria Portuguesa. Lisboa: Editorial Delta, 1986.
PEFEIFFER,
Wolfgang. Dürer, in Génios da
Pintura, vol. I, fsc. 21. São Paulo: Abril Cultural, 1973.
PLATON.
Timée / Critias. Paris: Flammarion, 1992.
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Bertrand. História da Filosofia.
Viseu: Livros Horizonte, [s. d.].
TOUCHARD,
Jean. História das ideias políticas.
vol. III. Lisboa: Publicações Europa-America, 1970.
WITTKOWER,
Rudolf. Architectural Principles in the
age of humanism. London: Academy Editions, 1988.
FONTE: CALAZANS,
José Carlos. A Melancolia de Albercht
Dürer (1471-1528). Revista Lusófona de Ciência das Religiões. ano XI, 2012
/ n. 16/17. p. 135-152. Disponível em: <http://recil.grupolusofona.pt/bitstream/handle/10437/4136/A%20Melancolia%20de%20Albercht%20D%C3%BCrer%20(1471-1528).pdf?sequence=1>.
Acesso em: 07 jul. 2015.
Adorei ler o texto, grata !!!!!
ResponderExcluirObrigado pela presença! Espero que aprecie as demais postagens do blog!
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