sexta-feira, 17 de julho de 2015

ORFEU - 3





A REDESCOBERTA DE ORFEU DURANTE A RENASCENÇA

Por Alexander J. Broquet, FRC

“O poeta genuíno é sempre um sacerdote”

Novalis



Durante o período da história ocidental conhecida como Renascença, filósofos, poetas, músicos e intelectuais revigoraram as tradições da Grécia Antiga. Esse período de renascimento intelectual e artístico foi enriquecido pela profusão de textos antigos que vieram a tona apos o colapso de Constantinopla em 1453. Textos gregos que estavam perdidos ou incompletos foram redescobertos e traduzidos, tornando-se disponíveis na Europa pela primeira vez em quase mil anos.  O impacto desses textos no Ocidente repercute profundamente ate hoje.

A redescoberta da figura mítica de Orfeu durante a Renascença é um claro exemplo de como a arqueologia intelectual e artística da época deu origem a novas formas de expressão nas artes, a novas percepções dos ensinamentos de antigos filósofos e a novas maneiras de integrar a sabedoria antiga com as religiões da época.

Orfeu nascido: Grécia Antiga

As fontes gregas antigas do mito focalizam--se em Orfeu como um cantor místico e teólogo que falou das origens do universo e dos deuses através de hinos e de música. Juntamente com Homero, Hesíodo e Pindar, ele foi venerado como o maior poeta grego. Como teólogo, dizia-se que ele havia sido iniciado as escolas de mistério do Egito Antigo e levara estas sagradas tradições para a Grécia. As descobertas pitagóricas do caráter sagrado do número, a base da escala musical e de praticas como o vegetarianismo, teriam sido levadas por Orfeu para a Grécia, onde foram adotadas e enriquecidas por Pitágoras e seus seguidores.

Segundo o neoplatônico Proclo, Orfeu forneceu a fonte de toda a religião grega – “a teologia de ‘Todos os Gregos’ é o fruto da doutrina mística órfica”. Na religião e na filosofia da Grécia, a música estava intima-mente associada a criação do cosmo, bem como a essência da alma. Isto é mais bem ilustrado no diálogo de Platão Timaeus, que pode ter tido origens pitagórica e órfica. No Timaeus, diz Platão: “... todo som musical audível nos e dado para fins de harmonia, que tem movimentos similares as orbitas na nossa alma e que, como sabe todo mundo que faz use inteligente das artes, não deve ser usado... para dar prazer irracional e sim como um aliado enviado do céu para trans-formar em ordem e harmonia toda desarmonia nas mudanças no nosso interior”.

A música tem o poder de harmonizar a alma individual com a alma do mundo assim como o microcosmo humano contem os mesmos elementos do macrocosmo do mundo. O tocar certos tipos de música podia levar à harmonização com o ser divino. Outros tipos de música podiam suscitar violência, angústia ou letargia. A música exercia controle sobre os elementos, os seres humanos e os animais. Por estas razões Platão instava um grande cuidado no uso de música, e recomendações especificas eram feitas quanto a quais tipos de música empregar para obter o maior bem. Histórias semelhantes são ditas sobre como Pitágoras curava pessoas e criava harmonia social através da música.

Como o maior músico e cantor do mundo antigo, Orfeu comandava incríveis poderes sobre a natureza e a alma. Ele era famoso por encantar animais selvagens, civilizar pessoas bárbaras e ate deslocar arvores e pedras pelo poder da música. Sua lira lhe foi dada por Apolo, o deus da música e da harmonia e, portanto, tinha poderes especiais. Como um instrumento de harmonia, com sete cordas harmônicas, a lira representa também a harmonia do cosmo. A ressonância simpática criada tangendo-se as cordas da lira proporcionava aos gregos antigos uma poderosa metáfora para conciliar espírito cósmico com alma humana. Este conceito seria muito expandido por filósofos da Renascença posterior, como Marsilio Ficino, que tocava uma lira órfica exatamente para este fim.


Orfeu está vivo: primeiros mitos

Uma primeira narrativa do mito de Orfeu vem de Argonautica, um poema do século quatro d.C. que relata as aventuras de Jasão e dos argonautas em sua busca do Velocino de Ouro. Orfeu, o cantor, protege os argonautas do perigo de ouvirem o canto da sereia, tocando sua lira e cantando. Ela também contem hinos cosmogônicos e menciona as viagens dele para o Egito.

O mito de Orfeu com que estamos mais familiarizados foi contado pelos poetas romanos Ovidio, Virgílio e Horicio. Tanto em Metamorfoses (8 d.C.) de Ovídio como em Georgics (23 a.C.) de VirgÍlio, Orfeu, o maior tocador de lira, desceu ao submundo para recuperar seu amor, Eurídice, do reino de Hades, depois que ele a perdeu por falecimento devido a uma picada de cobra no dia do casamento deles. Ele teve de cruzar o portal do Hades, passar pela fera de três cabeças, Cérbero, e cruzar o rio Styx, guardado pelo barqueiro Charon. Ele foi guiado pela esperança e seu canto e sua execução de música fizeram os guardas do submundo dormir de modo que ele pudesse entrar onde nenhum ser humano era permitido. Orfeu apelou para Pluto e Perséfone, os regentes do submundo, para que eles lhe permitissem levar Eurídice de volta a terra dos vivos. Seu canto mavioso os persuadiu a atenderem ao seu pedido, mas havia um empecilho: ele não deveria olhar para trás, para ela, enquanto estivesse subindo do submundo. Orfeu concordou e guiou Eurídice para fora do submundo. Num instante de dúvida ele ouviu um ruído e se voltou para ela, causando trágica perda dela pela segunda vez.

Ao retornar, Orfeu caiu em grande desespero. Encontrou alivio na música e no canto para os homens selvagens da Trácia, originários do cosmo e dos deuses. Orfeu foi brutalmente dilacerado e desmembrado pelas bacantes – as selvagens e furiosas adoradoras de Dionísio. Consta em alguns relatos que isto aconteceu porque ele não lhes permitiu serem iniciadas aos mistérios órficos; outros relatos afirmam que isso foi uma reação ao fato de ele ter persuadido seus homens a irem embora. Sua cabeça arrancada e sua lira flutuaram rio abaixo para a terra na ilha de Lesbos, onde a cabeça continuou a cantar e fazer oráculos. Tão grande era o seu poder que ate Apolo ficou enciumado. Sua lira, uma fonte de grande poder mágico, foi suspensa no templo de Apolo.

Em Ars Poetica, de Horácio, Orfeu é também retratado como o civilizador de seres humanos. Ele foi o primeiro poeta a “abrandar o coração das ‘pessoas cruéis e bestiais’ e colocá-las no caminho para a civilização”. Como John Warden indica, o efeito da canção de Orfeu é de guiar os seres humanos para o amor. Como declarado no Hino Órfico a Vênus, “O amor é muito antigo, prefeito em si mesmo e muito sábio”.


Orfeu perdido: a Idade Média

Os mitos romanos de Ovídio e Virgílio são poderosos e permanecem conosco ate hoje. Mas, antes das novas versões do mito de Orfeu, havia uma sagrada tradição com profundas raízes na religião grega. O mito de Orfeu foi absorvido na emergente tradição cristã, como se vê na arte funerária romana e nas comparações teológicas de Orfeu com Davi e Moisés. Na antiga tradição cristã, Orfeu foi visualizado como um profeta pagão que pressagiou a vinda do Cristo.

Como Agostinho mais tarde escreveu, dizia-se que Orfeu “tinha predito ou falado a verdade sobre o Filho de Deus ou o Pai”. O que Orfeu começou, o Cristo completou. Mais tarde, na Idade Média, o mito de Orfeu seria contado novamente em forma de alegorias morais. Durante este período, o conhecimento escrito do sagrado, do místico e dos ensinamentos teológicos da tradição órfica, foi perdido.
Durante o período do terceiro ao sexto séculos, motivos órficos foram misturados com representações do Cristo na arte funerária, como se vê nas catacumbas romanas. Artistas funerários, procurando estabelecer modelos adequados para a necessidade da nova fé cristã de imagens do Cristo como um líder de almas através do submundo, puderam usar a figura de Orfeu. Nesses antigos afrescos das primeiras catacumbas cristãs, Orfeu, o pacifico domador de animais selvagens, e representado como um símbolo do Cristo. Com o passar do tempo, a imagem de Orfeu, o domador de animais, e a do Cristo, o Bom Pastor, acabariam se fundindo.

John Block Friedman observa semelhanças entre representações do Cristo e de Orfeu na antiga arte funerária cristã: “... Orfeu, devido a sua natureza pacífica, ao seu poder de acalmar discórdia através da música e da eloquência, e a sua trágica morte nas mãos dos seus seguidores, foi talvez a mais apropriada e certamente a mais duradoura das figuras pagas para o Cristo a serem usadas na arte funerária”. Nessas imagens de tumbas, o Cristo é representado com uma lira e uma touca frigia, cercado de animais – nestes casos, a variedade dos animais e tipicamente simplificada para mostrar carneiros ou outros animais icásticos como pombas e águias.

Escritores cristãos que comparam explicitamente Cristo e Orfeu incluem Clemente de Alexandria e Eusébio. Clemente compara o poder do novo canto do Cristo que amansa os mais ferozes animais – humanos – com o uso por Orfeu de música para encantar animais e mover carvalhos. “Escritores compararam as ações de Orfeu e do Cristo no submundo, mostrando que aquilo que Orfeu iniciara o Cristo terminara, cumprindo profecias inerentes ao mito pagão”. Esta interpretação persiste hoje em dia, como explica Umberto Utro, chefe do Departamento de Antiga Arte Cristã do Museu do Vaticano: “Muitos sarcófagos cristãos contem elementos pagãos e referências a deuses e deusas gregos e romanos... Na Bíblia, Jesus diz ‘Eu sou o Bom Pastor que vai sacrificar sua vida pelo rebanho’. Os primeiros cristãos reconheceram facilmente o Cristo em imagem (o rebanho pagão) e o investiram num novo significado. Artistas também viram o Cristo em Orfeu, o filho do deus da música, Apolo. Uma vez que Orfeu amansava animais ferozes com sua música, sua imagem se tornou a imagem do Cristo que, com suas palavras, transformava a vida de pecadores”.

Um fascinante exemplo da fusão de Orfeu e do Cristo e representado num amuleto que apresenta o Cristo crucificado embaixo de uma lua e sete estrelas, com o texto “Orfeu Baco” [Ed: Ver "Uma Era Órfica”,...]. Amuletos como esse foram produzidos em Alexandria, onde judeus, cristãos e religiosos gregos coexistiam e se misturavam, e podem ilustrar o apelo de um crente por proteção de múltiplas divindades. Todas as três figuras – Orfeu, Baco/ Dionísio e Cristo – guiavam a alma pelo submundo e podiam ser apeladas para proteção e orientação da alma em sua jornada após a morte física.

Orfeu foi também comparado a figuras das Escrituras Hebraicas, como Davi e Moises. Orfeu e Davi, ambos curavam mediante música e eram conhecidos como cantores de hinos sagrados e artistas de instrumentos de corda. Davi curou a loucura do Rei Saul mediante suas execuções de música e seus cantos. Antigos líderes gregos da Igreja, como Clemente de Alexandria, Eusébio e Proclo, referem-se a Orfeu para ilustrarem que a tradição religiosa grega foi emprestada de Moisés no Egito, mostrando que sua fonte de divina inspiração era a mesma da tradição judaico-cristã. Para esses escritores, os ensinamentos de Orfeu representam uma forma primitiva de monoteísmo emprestada de fontes judaicas. Após o século V, explicitas ligações de Cristo e Orfeu começaram a desaparecer. No começo da Idade Media, o mito de Orfeu era contado como uma alegoria e o próprio Orfeu era visto numa luz negativa em que seu paganismo, sua habilidade musical e seu empenho moral estavam ligados. Em obras como Ovídio Moralizado, mitos clássicos são reformados como alegorias morais para reconciliá-los com a doutrina cristã.

Mais para o fim da Idade Media, Orfeu foi transformado num bonito cavaleiro ou príncipe que cantava canções de amor romântico, que ressuscitou Eurídice e sempre conseguia um final feliz. No século XI, Orfeu foi apresentado como um amante romântico em três diferentes poemas. O século XIV produziu dois longos poemas em inglês com Orfeu como um herói principesco: Orfeu e Eurídice, de Henryson, e o anônimo Sir Orfeo. Orfeu e apresentado como o mais leal dos amantes, um menestrel, e como dotado dos poderes mágicos e astrológicos de um feiticeiro. Esses escritores românticos medievais falam de Orfeu trazendo Eurídice de volta a vida através de feitiços ou pelo poder do amor.
Por exemplo, o poema romântico, Sir Orfeo, inclui elementos de mitologia céltica sobrenatural, fadas e ricos castelos. Ele tem uma ligeira semelhança com o Orfeu de Ovídio e Virgílio e concorda bastante com o gênero romântico medieval da época. Contem uma mistura de mitologia e romance secular clássicos, moral cristã e lendas de fadas célticas. Uma tradução moderna de Sir Orfeo foi completada por J.R.R. Tolkien e publicada como obra póstuma no livro Sir Gawain and the Green Knight, Pearl, and Sir Orfeo.


Orfeu recuperado: a Renascença

Muitas das originais tradições espirituais gregas associadas a Orfeu foram perdidas durante a Idade Media, assim como tradições religiosas pagas foram suprimidas e eliminadas pela Igreja Cristã. A Renascença trouxe uma redescoberta dos mitos clássicos originais e de fontes anteriores, levando a uma profunda apreciação de Orfeu tal como ele aparecia antes de se fundir com a tradição cristã. A redescoberta de fontes clássicas foi liderada por Cosimo de Médici, um governante florentino do século quinze que patrocinou a tradução de um grande número de obras clássicas da antiguidade do grego para o latim, assim tornando muitas fontes originais disponíveis para o Ocidente pela primeira vez em mais de mil anos.

Através de Cosimo de Medici, a Academia Platônica foi novamente fundada em Florença. Ele apontou Marsilio Ficino como seu líder. Ficino traduziu todas as obras conhecidas de Platão, o Corpus Hermeticum, e as obras de filósofos neoplatônicos como Porfírio, Plotino e Jâmblico. A meta de Ficino era reconciliar o platonismo com o Cristianismo através de suas traduções, seus comentários e escritos como Platonica Theologia de immortalitate animorum (Teologia Platônica sobre a Imortalidade das Almas) e De vita libri tres (Três Livros da Vida). Através do seu revivescimento do pensamento platonico, Ficino se tornou um dos principais fundadores do renascimento espiritual e cultural da Renascença.

Sabemos que Ficino tinha uma profunda afinidade com Orfeu e compartilhava com ele muitos dos seus atributos: ele cantava os hinos órficos, tocava a lira órfica com uma imagem de Orfeu pintada nela, era do ponto de vista de eloquência comparado a Orfeu por aqueles que o conheciam e praticava o que agora chamaríamos de musicoterapia como um método de cura psicológica e de integração espiritual. O biógrafo de Ficino, Corsi, disse: “Ele publicou os hinos de Orfeu e os cantou à lira na maneira antiga com incrível beleza, corno diz o povo”. Johannes Pannonius disse: “Você trouxe novamente à luz o antigo som da lira, o estilo de cantar e as canções órficas que haviam sido antes entregues ao esquecimento”.


Marsilio Ficino: Orfeu de volta

Lorenzo de Medici, em seu poema Altercazione, disse de Ficino: “Eu pensei que Orfeu voltara ao mundo”. Um outro escritor disse dele: “Ele abranda os carvalhos improdutivos com sua lira e acalma ainda mais o coração de animais ferozes”. O estudioso florentino Angelo Poliziano compara as consecuções de Ficino com a recuperação de Eurídice do submundo por Orfeu: “Sua lira... muito mais bem sucedida do que a lira do Orfeu Trácio, trouxe de volta do submundo aquela que é, se não me engano, a verdadeira Eurídice, isto é, a sabedoria platônica com seu vasto discernimento”.

Fontes que inspiraram Ficino incluem Platão, Hermes Trismegisto e Neoplatônicos como Proclo e Plótino, bem corno o antigo sincretista Gemistus Pletho. Como Proclo, Ficino cantou e estudou entusiasticamente os hinos órficos. Também praticou o vegetarianismo, que era urna das práticas espirituais essenciais das escolas de mistério órficas e pitagóricas. Gemistus Pletho forneceu a inspiração que iria ajudar a fundar a Academia Platônica e pode também ter tido um papel significativo em inspirar Ficino no uso de hinos. Pletho e Proclo promoveram ambos a concepção de uma tradição filosófica perene anterior a Platão, que inclui Orfeu, Pitágoras e os oráculos caldeus. Filósofos da Renascença desenvolveram esta noção, inclusive teólogos divinamente inspirados como Abraão, Zoroastro, Hermes, Moisés, Orfeu, Pitágoras e Platão, como membros da prisci theologi, antigos sábios que precederam a chegada do Cristo Orfeu é tipicamente a mais antiga fonte grega nesta linhagem.

Sua visita ao Egito proporcionou uma fonte comum para Pitágoras, Platão e outros. O monoteísmo e a trindade eram duas verdades religiosas mencionadas como tendo sido fundadas na prisci theologi, e por Orfeu em particular. Proclo e Plotino forneceram a Ficino uma base para interpretação dos deuses da mitologia grega como princípios metafísicos que ajudariam Ficino a desenvolver suas ideias sobre magia natural e ligar as aparentemente inconciliáveis tradições pagã e cristã. Orfeu, com suas associações com as religiões grega, egípcia e possivelmente hebraica, oferece um símbolo singularmente poderoso da tradição sagrada universal que atrairia fortemente estudiosos da Renascença e filósofos empenhados em reconciliar as tradições paga e cristã.

A primeira obra que Ficino escolheu para traduzir foi os Hinos de Orfeu. Os Hinos Órficos são tidos como tendo sido compostos por autores neoplatônicos no segundo ou no terceiro século d.C., e podem estar baseados em fontes mais antigas. São hinos divinos para os deuses gregos como Apoio, Vênus, Hermes e também as Musas, as Parcas e as Fúrias. Eles contêm instruções para oferenda de incenso, juntamente com epítetos cantando louvor aos deuses ou às deusas invocados. Ficino via os deuses e as deusas dos hinos como metafísicos, naturais e princípios arquetípicos que continham a divindade do Deus único e advertia contra se considerar pensar neles de maneira idólatra.

Embora traduzidas em 1462, essas obras não foram disponibilizadas senão muito mais tarde, talvez devido à preocupação de que elas fossem interpretadas como muito abertamente pagãs. D.P. Walker levantou a hipótese de que o mais antigo manuscrito dos Hinos Órficos da era da Renascença tenha sido trazido de Constantinopla por Giovanni Aurispa em 1424.

Ficino dá muita importância a esses hinos, incluindo seu revivescimento nas grandes consecuções do século quinze, com Florence dizendo: “Esta era, como uma era áurea, trouxe de volta à luz as disciplinas liberais que haviam sido praticamente extintas: gramática, poesia, oratória, pintura, escultura, arquitetura, música e o antigo cantar de canções à lira órfica”.

Ficino recomendava cantar os hinos como um método de alinhamento da alma humana com a alma cósmica, assim trazendo boa saúde e alívio de melancolia e de outras aflições do espírito. “Nosso spiritus está em conformidade com os raios do spiritus celestial, que tudo penetra secreta ou obviamente. Ele mostra uma afinidade muito maior se fazemos uso de canção e luz e do perfume apropriado à divindade como os hinos que Orfeu dedicava às deidades cósmicas... A música nos foi dada por Deus para dominar o corpo e prestar louvor [a Deus].

“Eu sei que Davi e Pitágoras ensinavam isto acima de tudo o mais e acredito que eles o puseram em prática”. Numa outra carta ele explica: “faço isto também para banir as aflições da alma e do corpo e para elevar a mente às mais altas considerações e a Deus tanto quanto eu possa”. Embora não tenhamos nenhum registro da sua música, sabemos que suas apresentações eram impressionantes e profundamente inspiradoras.

No relato de um testemunho direto de urna apresentação de Ficino, disse um bispo: “... então seus olhos se iluminaram e ele se ergueu e descobriu urna música que nunca aprendera mecanicamente”.

Ficino via música, medicina e teologia como intimamente ligadas e dignas de estudo e prática. Numa de suas cartas ele disse: “Você pergunta, Canigiani, por que eu combino tão frequentemente o estudo de medicina com o de música... Orfeu, no seu livro de hinos, afirma que Apoio, por seus raios vitais, concede saúde e vida a todos e afasta a doença. Além disso, pelas cordas sonoras, isto é, por suas vibrações e seu poder, ele regula tudo: pela corda mais grave, o inverno; pela corda mais alta, o verão; e pela corda média ele traz a primavera e o outono. Assim, uma vez que o patrono da música e o descobridor da medicina são um e o mesmo deus, não é de surpreender que ambas as artes sejam com frequência praticadas pelo mesmo homem. Ademais, a alma e o corpo estão em harmonia um com o outro numa proporção natural, assim como as partes da alma e as partes do corpo”.

Ficino dá uma outra explicação do poder da música para criar harmonia no corpo, trabalhando com a imaginação e a emoção do artista e citando exemplos similares de Pitágoras, Empédocles, Platão, Aristóteles, Orfeu e Amphion: “Platão e Aristóteles ensinaram, como frequentemente verificamos por nossa própria experiência, que música séria mantém e restaura essa harmonia nas partes da alma, ao passo que a medicina restaura a harmonia das partes do corpo... E Pitágoras, Empédocles e o médico Asclepíades provaram isto na prática. Nem isto é de espantai; pois som e canção provêm de consideração na mente, do impulso de fantasia e do desejo do coração e, ao afetar o ar e lhe dar medida, eles fazem vibrar o espírito aéreo do ouvinte, que é o elo entre o corpo e a alma. Assim o som e a canção facilmente despertam fantasia, afetam o coração e atingem os mais internos recessos da mente... Isto foi de fato mostrado pelos milagres de Pitágoras e Empédocles, que podiam dominar luxúria, raiva ou loucura mediante música séria. E mais ainda, usando diferentes modos, eles costumavam estimular mentes preguiçosas. E existem as histórias de Orfeu, Arion e Amphion”.

Música e som estão relacionados com a alma pela natureza do ar e da vibração. Isto é remontado por Orfeu às fontes originais no Egito: “O corpo é de fato curado pelos remédios da medicina; mas o espírito, que é o etéreo vapor do nosso sangue e o elo entre corpo e alma, é temperado e nutrido por fragrâncias, por sons e pelo canto. Finalmente, corno a alma é divina, é purificada pelos divinos mistérios da teologia. Na natureza, ocorre a união de alma, corpo e espírito. Para os sacerdotes egípcios, medicina, música e os mistérios eram uma e a mesma coisa. Oxalá possamos dominar essa arte natural e egípcia tão tenaz e sinceramente quanto nos apliquemos a ela!”

Sabemos que Ficino se viu tornado de melancolia, que ele atribuía à influência de Saturno no seu horóscopo astrológico. Tocar a lira e os hinos órficos eram atos usados corno método de alinhar seu espírito com específicos princípios metafísicos celestiais e divinos, que podiam ser usados para restaurar o equilíbrio físico, psicológico e espiritual.

Numa de suas cartas ao seu amigo Sebastiano Foresi, disse Ficino: “Eu me ergui e me apressei em pegar a lira. Comecei a cantar prolongadamente os hinos de Orfeu”. E “nós tocamos a lira justamente para evitar nos tornarmos relaxados... que a lira bem tenalr rada seja sempre nossa salvação quando nos apliquemos a ela corretamente”. Esta magia natural é usada para curar o corpo. Como Angela Voss afirma no seu artigo: “Marsilio Ficino, o Segundo Orfeu”: “Se uma pessoa tem olhos internos para percebê-las, as coisas naturais do mundo mutável percebidas pelos sentidos são sinais ou ‘divinas iscas’ que proporcionam um lembrete interminável de duradoura realidade. Neste sentido o próprio ato de viver pode ser visto como um rito mágico...”.

Em “Ajustando a Vida Pessoal ao Céu”, Ficino nos dá regras para compormos e improvisarmos música celestial. A música é atraída para baixo através das esferas celestiais mediante sete passos correspondentes aos planetas e associados a pedras, metais e elementos. Cada qual deve escolher tons que correspondam às esferas celestes que deseje emular. Eles devem então ser harmonizados e arranjados de um modo que reflita a harmonia das esferas. O praticante deve prestar atenção às energias a que são primariamente suscetíveis e empregar tons de corpos celestes que aumentem ou diminuam essas energias, dependendo do equilíbrio desejado.

Ficino desenvolveu também o conceito dos quatro furores, ou frenesis: poético, religioso, profético e amoroso. A música foi associada ao primeiro furor poético e inspirou harmonização da discórdia da alma causada por sua dolorosa encarnação no mundo material. Orfeu foi interpretado como um “instrutor poético divinamente inspirado, possuído pelo furor platônico que reformou e civilizou seus bárbaros contemporâneos”. Orfeu cumpriu um papel especial na filosofia de Ficino, ao ser inspirado por todos os quatro divinos frenesis. “Nos quatro frenesis” é o “poder do amor que Orfeu traz ao mundo”.

Em Orfeu, Ficino encontrou a personificação da sua missão filosófica – ele redescobriu o fundador dos mistérios que usavam música e hinos para mediar entre o céu e a terra, trazendo civilização, as artes, cultura, saúde, amor e paz para a humanidade “... você mesmo será maior do que o céu, tão logo se decida à tarefa. Pois esses corpos celestes não devem ser procurados por nós em algum lugar fora; pois o céu, em sua inteireza, está dentro de nós, em quem habita a luz da vida e a origem do céu”. Para Ficino, Orfeu é mais do que um mito. Ele é uma presença viva a ser revivida através de prática espiritual e canto.

Orfeu continua cantando

Depois de Ficino, Giovanni Pico della Mirandola também redescobriu o mágico e teúrgico uso dos Hinos Órficos, dizendo: “Nada é mais eficaz na magia natural do que os hinos de Orfeu, se a música correta, o intento da alma e outras circunstâncias conhecidas do sábio são aplicadas”. A teoria música-espírito de Ficino seria expandida e continuada por estudiosos do século dezesseis, como Robert Fludd (Inglaterra), Guillaume du Bartas (França), Robert Burton (Inglaterra) e Heinrich Cornellius Agrippa (Alemanha).

O redespertar do mito clássico de Orfeu por Ficino e outros estudiosos da Renascença inspirou artistas que usaram Orfeu como um modelo para novas formas de expressão artística em música, escultura e pintura. Em particular, vemos Orfeu presente no nascimento da ópera, que começou com uma imitação consciente da tragédia grega. Orfeu foi o mais popular tema entre as primeiras óperas. Angelo Poliziano, um poeta florentino, humanista e colaborador de Ficino, criou um primeiro precursor da ópera baseado no mito órfico, intitulado La Favola di Orfeo, em 1474. A própria lira órfica de Ficino foi usada durante uma das apresentações em Mântua pelo cantor Baccio Ugolino. Embora a música dessa obra tenha sido perdida para nós, sabemos que ela era baseada na recontagem do mito e que enfatiza Orfeu como o pastor bucólico apaixonado por Eurídice. A obra foi feita durante as festividades do Carnaval em Mântua e destinava-se a homenagear o Cardeal Francesco Gonzaga. Sabe-se que Leonardo da Vinci projetou o palco para essa obra e que existem desenhos dela nos seus cadernos.

A mais antiga ópera registrada é Orpheus and Euridice, composta por Jacopo Peri em 1600. Euridice de Peri foi primeiro apresentada para o casamento de Maria de Medici e Henrique IV (tido como Hermes) e é considerada a primeira ópera. Na versão de Peri, Euridice e Orfeu são reunidos após a jornada ao submundo. L’Orfeo, de Monteverdi, composta em 1607, é considerada a primeira ópera popular. Embora suas primeiras apresentações fossem reservadas para público pequeno, de elite, L’Orfeo logo foi apresentada fora de Mântua, tornando-se a primeira ópera a ser apresentada com sucesso em várias cidades. Trata-se de uma obra popular executada até hoje. Como professor, Ralph Abraham salienta: “Existem pelo menos vinte e seis óperas nos anos 1600 relativas a Orfeu e vinte e nove nos anos 1700, inclusive clássicos por Telemann, Gluck, Hándel e Haydn”.


Conclusão

O mito de Orfeu ressoa ao longo do tempo como um poderoso arquétipo porque ele mostra como a arte, a poesia e a música podem ser usadas para ligar múltiplos campos de existência: mundano e celestial, vivo e morto, consciente e inconsciente, caótico e harmonioso, masculino e feminino, e pessoal e cósmico. A ponte é criada por ressonâncias compartilhadas entre estes campos através do ar, da emoção e da imaginação. Graças ao trabalho dos filósofos, artistas, poetas e músicos da Renascença, essa ponte foi recuperada e preservada para futuras gerações redescobrirem por si mesmas.


Bibliografia: Abraham, Ralph H. “Orpheus Today”. Universidade da Califórnia, Santa Cruz. Rosicrucan Digest, Vol 86:1 (2008), 42-47. Glatz, Carol. “Silencioso corno uma tumba, nada mais: o Vaticano espera que multidões visitem o museu de sarcófagos”. Catholic News Service, Out. 3, 2005. Gouk, Penélope. “Music, Melancholy, and Medical Spirits in Early Modern Thought” em Music as Medicine: the History of Music Therapy since Antiquity”. Peregrine Horden, ed. Vermont: Ashgate, 1988. Newby, Elizabeth. A Portrait of the Artist: The Legends of Orpheus and Their Use in Medieval and Renaissance Aesthetics. Nova York: Garland Publishing, Inc. 1987. Sternfield, F.W. The Birth of Opera. Oxford: Oxford University Press, 1995. Taylor, Thomas, trad., The Mystical Hymns of Orpheus. http://www.sacred-texts.com/cla/hoo/index.htm. Tolkien, J.R.R., trad., Sir Gawain and the Green Knight, Pearl, Sir Orfeo. Nova York: Del Rey, 1979. Voss, Angela Marsilio Ficino. Berkeley: North Atlantic Books, 2006. Voss Angela. “Marsilio Ficino, o Segundo Orfeu” em Music as Medicine: the History of Music Therapy since Antiquity. Peregrine Horden, ed. Vermont: Ashgate, 1988. Walker, D P “Orpheus the Theologian and Renaissance Platonists’ Journal of the Warburg and Courtauld Institutes, Vol. 16, N. 1/2. (1953)100-120. Warden, John. “Orpheus and Ficino” em Orpheus: The Metamorphoses of a Myth. John Warden, ed. University of Toronto Press: Toronto, 1982.


FONTE: BROQUET, Alexander J. A redescoberta de Orfeu durante a Renascença. O Rosacruz. n. 280. outono 2012. Curitiba: AMORC, 2012. p. 16-26.



Orfeu com a lira e rodeado de animais. Museu de Arte Bizantina Cristã, Atenas.

Vaso órfico de alabastro (séculos II e III d. C.), simbolizando a serpente/ovo órfica no centro de tudo, emanando o cosmo e o renascimento para o estado prístino que o iniciado órfico poderia obter.

Durante os anos de formação do Cristianismo, o simbolismo órfico e mitraico era às vezes combinado com o cristão, como neste baixo-relevo com todos os três elementos: a touca frigia de Mitras, a lira de Orfeu e o bom pastor cristão.

Os cristãos não tinham dificuldade para representar Orfeu nos baixos-relevos neste Pyx (vaso contendo o pão consagrado da celebração eucarística), que lendariamente fora um presente do Papa Gregório, o Grande, à Columba em Bobbio, no quinto século.


Orfeu-Cristo das Catacumbas, Cemitério dos Dois Lauréis. Ele representa Orfeu com sua lira na pose imperial de Cristo, com almas cristãs como pombas, ca. século IV.



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