Baixo-relevo de Phanes (segundo século AD), Museu de Modena, Itália.
LANÇANDO
LUZ SOBRE ALGUNS DEUSES ÓRFICOS
Por
Stefanie Goodart, SRC
Acima do mito de Orfeu e Eurídice, tão
conhecido hoje em dia, há uma teologia muito mais complexa de deidades emanadas
e uma cosmologia detalhada que o orfismo reinterpretou para o mundo grego.
“Tudo vem à existência do Um e se
resolve no Um”. (Musaeus, estudioso de Orfeu1).
O tema dos Mistérios órficos ocupou a
maior parte da minha pesquisa nos últimos anos e já escrevi vários artigos
sobre este assunto. Para este artigo em particular decidi não escrever uma
visão geral das crenças e práticas órficas e, em vez disto, pretendo enfocar
duas intrigantes deidades mencionadas nos mitos órficos, Phanes e Zagreus.
Estas duas figuras são singulares no fato de que não são tipicamente
mencionadas na mitologia grega popular2. Escolhi também estas duas
deidades porque ambas pertencem a uma linha de sucessão que termina com
Dionísio. Alguns estudiosos as interpretam como gerações prévias na árvore
genealógica de Dionísio, enquanto outros, mais familiarizados com o pensamento
metafísico, vêem-nas como diferentes encarnações da mesma deidade.
Neste artigo em particular eu pretendo
primeiro apresentar aos leitores um esboço básico da seção da teogonia órfica
que envolve Phanes. A partir daí suas funções e seus atributos serão
discutidos, usando-se numerosos autores antigos como material de fonte.
Mudaremos então nossa atenção para Zagreus do mesmo modo: primeiro haverá uma
breve nova versão da seção apropriada do mito. Depois será apresentado um
comentário de fontes antigas e modernas. Na seção final do artigo vou sintetizar
a informação dada até esse ponto e oferecer uma interpretação que introduz
ideias de espiritualidade, filosofia e universalidade.
Phanes
O mito de Phanes:3 No começo, tudo estava escuro e nada
existia além de duas serpentes com asas.4 Elas se acasalaram e produziram um ovo
brilhante.5 Uma serpente se enrolou em torno do ovo e o apertou até que ele se
quebrou. Dele saiu a deidade hermafrodita alada, Phanes. Uma luz se irradiava
do seu corpo, que era tão brilhante que ninguém podia vê-lo. Ela tinha quatro
olhos, chifres, e as cabeças de um touro, um carneiro, um leão e uma serpente.
Da metade superior da concha ela criou o céu e, da metade inferior, a terra.
Ela se acasalou consigo mesma e deu nascimento à deusa Nyx. E também se
acasalou com Nyx e deu nascimento a Gaia e Uranos. Phanes começou então a criar
o mundo físico determinando um lugar para o Sol, a Lua e as estrelas.
Acredita-se que o mito básico date pelo
menos do final do período arcaico. Aristófanes faz referência a ele em sua
comédia The Birds [As Aves]6,
apresentada pela primeira vez em 414 a.C. Embora na peça o mito esteja
ligeiramente alterado, a figura de Phanes ainda é claramente identificável por
suas resplandecentes asas douradas e pelo fato de que ela nasceu de um ovo.7
O nome Phanes vem do grego phainein, “trazer luz” e phainesthai, “brilhar”. Na antiguidade, alguns
órficos achavam que este nome devia ser traduzido na voz ativa como “o portador
de luz”, enquanto outros acreditavam que ele devia ser tomado a meia-voz como
“o Resplandecente”. Em Rapsódias ele é descrito assim: “E todos os demais se maravilharam quando viram a
inesperada luz no aither, tão ricamente brilhava o corpo do imortal Phanes”9.
Phanes pode ser descrito fisicamente
como Luz e metafisicamente como Intelecto10. Geralmente, os
platônicos vêem Phanes representando o Sol do mundo Inteligível11.
Proclo diz que Phanes é “o primeiro intelecto inteligível” e “se desdobra na
luz”12. Hermeas chama-o de a “fronteira do inteligível”, que
“ilumina os deuses intelectuais com luz inteligível”13. Phanes traz
luz às trevas e expulsa o caos14. Seu nascimento é o primeiro passo
do Ser Divino que é sem forma e sem qualidades.
Como um ser hermafrodita, Phanes
representa seu papel como o definitivo deus criador15. Ele tem
dentro de si “a semente de todos os deuses”16. Suas asas e suas
numerosas cabeças podem ser explicadas simplesmente como representativas de uma
deidade extremamente poderosa e espantosa. É assim que a imaginação é
influenciada, e até emprestada, de figuras mitológicas de outras culturas
mediterrâneas antigas17.
Phanes tem muitas cabeças e muitos
olhos, mas não tem um corpo. Isto simboliza que o mundo físico inferior ainda
não fora manifesto18. Hermeas sugere que seus quatro olhos
representam que ele une a mônada original à tríade emissora19.
Pitágoras acreditava que a mônada era a fonte de todos os outros números. Três
representava inteireza, porque tinha começo, meio e fim. Quatro simbolizava
perfeição e sua forma correspondente era o quadrado20. A despeito da
interpretação em particular, Phanes é certamente a representação antropomórfica
da solução para o problema do Um-Muitos que tanto perturbou os antigos
filósofos órficós e socráticos.
Zagreus
O mito de Zagreus:21 Zeus decidira passar seu reino para seu
filho, Zagreus, embora ele fosse apenas uma criança. Isto causou ciúme em
alguns dos outros deuses e os Titãs tramaram vingança contra o menino.
Disfarçaram-se branqueando seu rosto e levaram vários presentes para Zagreus:
um espelho, maçãs, uma bola, um jogo de pedrinhas, um pião, um roncador, lã,
bonecos e um nártex22. Eles usaram estes presentes para atraírem
Zagreus para longe dos outros deuses e, uma vez fora de vista, eles o atacaram.
Primeiro o desmembraram, cortando-o em sete pedaços. Os pedaços foram fervidos
e depois torrados23. Depois eles festejaram. No entanto, Athena
chegou até eles e conseguiu salvar um pedaço, o coração, que ainda estava
batendo. Ela o levou rapidamente a Zeus, que estava furioso com os Titãs. Em
sua ira, Zeus arremessou seus raios contra os Titãs, os quais imediatamente os
destruíram. Zeus pegou então o coração de Zagreus e o utilizou para trazê-lo de
volta à vida. Da fuligem deixada pelos Titãs, Zeus formou seres humanos,
animais e aves.
O nome Zagreus, frequentemente traduzido como “grande caçador”, parece ser uma
contração de za- “muito” e agreus- “caçador”. Zagre, uma palavra Jônica, significa “um
poço para capturar animais”24 . Talvez este nome se refira a algum mito desse
deus que infelizmente foi perdido para nós. É bastante irônico que aqui Zagreus
pareça ser o caçado e não o caçador!
Quanto à aparência física, Zagreus tem
chifres25. Isto serve para ligar Zagreus a Phanes, que o leitor deve
lembrar que também se diz ter chifres26.
Os Titãs cortaram Zagreus em sete
pedaços. Cada um dos sete pedaços representa os sete corpos celestiais, e o
coração, que consideramos a sede da alma do indivíduo, representa o intelecto
da Alma-Mundo27. Naturalmente, esta Alma-Mundo não pode ser dividida.
Zagreus, que pode ser visto como outra encarnação do Phanes anterior, é também uma representação
antropomórfica do problema do Um-Muitos. Ele começa como um ser que é então
dividido em muitos pedaços, fervido, torrado e ingerido. Mas, a partir do coração,
o pedaço que é salvo, Zeus pode restaurar o corpo de Zagreus, completando assim
o ciclo de um para muitos e de volta a um. Em função deste ensinamento,
Harrison escreve que Zagreus é “o deus dos mistérios e seu pleno contentamento
só pode ser compreendido com relação aos ritos órficos”28.
Discussão
Dentro do ovo, Phanes representa a
união (perfeição) de opostos29. Quando o ovo se racha, a porção
superior se torna o céu e a inferior a terra. Alguns escritores antigos
comentam que a porção celeste foi feita de ouro, ao passo que a porção terrena
foi feita de prata30. Estes pares de opostos associados a Phanes
foram continuados; ele próprio é leve, enquanto a sua consorte/filha é Nyx
(Noite). Além disso, juntos eles têm dois filhos, Gaia (Terra) e Uranus (Céu).
Eles representam, respectivamente, fenômeno e númeno31.
A figura de Zagreus não representa
tanto uma unificação de opostos quanto a de Phanes, mas seu mito resulta na
síntese de opostos. No mito o espelho representa uma falsa duplicata da nossa
realidade; literalmente, uma imagem no espelho é o oposto do que é refletido
nele. Zagreus é perturbado por sua imagem32, que aqui simboliza o
mundo físico como um reflexo do reino espiritual. Olympiodorus explicou que a
essência de Zagreus foi incorporada a toda a criação devido a ele olhar para o
espelho e seguir sua imagem33. Como escreveu Mead, o mito “é uma
história dramática das andanças da ‘Alma-Peregrina’”34. Ele tem de
passar pela “prova de separação e fragmentação através de um processo de
diferenciação”35. Este é um outro tema comum no mundo mitológico e é
semelhante a muitos dos textos alquímicos posteriores. É somente em sermos
destruídos que completamos o ciclo para o todo. Assim temos o ciclo da tese, da
antítese e da síntese, numa forma evolutiva do mito de Zagreus.
Phanes é a fonte de luz e inteligência
para o cosmo e Zagreus provê a alma para a espiritualização de toda a criação36.
Phanes dá início ao ciclo da criação e Zagreus o coloca em eterno movimento. O
mito enfatiza que Um se torna muitos e se torna Um novamente em virtude do elo
divino entre o Universo, o Ser Divino e os seres humanos, através desse ciclo
eterno.
Durante o reino de Phanes, o mundo foi
criado no seu estado espiritual. Zeus adquiriu poder algumas gerações mais
tarde e fez o mundo manifesto em sua forma física. Zagreus, que recebe o trono
de Zeus, destina-se a realizar a síntese destes dois estados aparentes durante
o seu reinado. Todavia, ele é incapaz de cumprir seus deveres e assim as
responsabilidades recaem sobre os seus sucessores que, segundo o mito,
constituem a raça dos seres humanos.
“As almas dos homens, vendo suas
imagens por assim dizer no espelho de Dionísio, entraram nesse reino num salto
para baixo a partir do Supremo: no entanto, mesmo elas não foram cortadas da
sua origem – do divino Intelecto; não se trata de que elas vieram trazendo o
Princípio Intelectual para baixo na sua queda, e sim de que, embora elas tenham
descido mesmo para a terra, sua parte mais alta permanece para sempre acima do
céu” (Plótino)37.
Notas: 1. Como citado em Diogenes Laertius,
prooem. 3; 2. De fato, pode-se até usar a presença
do nome “Phanes” ou “Zagreus” como um indicador para classificar um texto, etc,
assim como “Orfico”; 3. Todos os detalhes extraídos das
Rapsódias, a menos que indicado de outro modo; 4. Argonautica 12 ff;
5. O “Ovo Cósmico” é um tema comum na mitologia comparativa. Alguns exemplos
são o yin e o yang chineses que emergem de um ovo com a ajuda de um deus
criador e o mito egípcio em que a ave-deusa Benu põe um ovo num outeiro e dele
nasce o deus-sol. O mito judaico-cristão da criação no Gênesis é muito
semelhante; primeiro se faz luz e o céu é separado da terra. No entanto, um ovo
real não está presente. Além disso, a teoria do ‘Big Bang” pode ser também
entendida como um mito de criação com um “objeto” tipo ovo contendo a matéria
de toda a criação; 6. 690 ff. (-Orphicorum Fragmenta, fr.
1); 7. É claro que houve muitas versões
diferentes deste mito em tempos antigos, assim como era comum para qualquer
mito popular em povos que em maioria passaram histórias por tradição oral; 8. Walter Wili, “Os Mistérios Órficos e o Espírito Grego”, The Mysteries:
Papers from the Eranos Yearbooks (Princeton: Princeton University Press, 1971),
71; 9. Como citado em W.K.C. Guthrie,
Orpheus and Greek Religion: A Study of the Orphic Movement ( Princeton
University Press, 1952 ), 95; 10. Isaac Preston Cory, Metaphysical
Inquiry into the Method, Objects and Result of Ancient and Modern Philosophy
(Londres: William Pickering, 1833), 30; 11. William Smith,
William Wayte, e G.E. Marindin, eds., A Dictionary of Greek and Roman
Antiquities ( Londres: John Murray, 1891), 301; 12. Trad. de The
Commentaries of Proclus on the Timaeus of Plato, in Five Books, por Thomas
Taylor ; Containing a Treasury of Pythagoric and Platonic Physiology, Vol. 1
(Londres: pelo autor, 1820), 361; 13. Como citado em The
Mystical Hymns of Orpheus, de Thomas Taylor ( Londres: Bertram Dobell, 1896),
14-15; 14. Michael Jordan, Encyclopedia of Gods
(Nova York: Facts on File, 1993), 204; 15. Esta qualidade
hermafrodita reaparece depois na mitologia grega popular, em epítetos de
Dionísio, como Androgynos (“andrógino”), Arsenothelys (“homem-afeminado”),
Enorches (“bitesticular”), Gynnis (“afeminado”) e Pseudanor (“falso homem”); 16. Damascius, como citado em Myth, Ritual, and Religion, de Andrew Lang
(Nova York: Longmans, Green, and Co., 1899), 299; 17. Dois artigos
interessantes sobre este tópico são: M.L. VVest, “Graeco-Oriental Orphism in
the 3rd cent. BC”, Assimilation et résistence à la culture Gréco-romaine dans
le monde ancien: Travaux du Vlth Congrés International d'Etudes Classiques
(Paris, 1976), 221-226 ; e “Gnostic Eros and Orphic Themes” de M.J. Edwards,
Zeitschrift für Papyrologie und Epigraphik 88 (1991) : 25-40; 18. Lectures on Ancient Philosophy and Introduction to the Study and
Application of Rational Procedure, de Manly P. Hall (Los Angeles: Hall, 1929)
203; 19. Como citado em The Origin of Pagan
Idolatry Ascertained from Historical Testimony and Circumstantial Evidence, de
George Stanley Fabet, Vol. 1 (Londres: E and C. Rivingtons, 1816), 262; 20. The Dying God: The Hidden History of Western Civilization, de David
Livingstone (Lincoln: iUniverse, 2002), 135; 21. Todos os detalhes
extraídos das Rapsódias, salvo indicação de outra fonte; 22. Proclo na obra Works and Days, de Hesíodo, 52; 23. Isto é o oposto de como a carne era cozida durante um sacrifício
religioso na Grécia Antiga. O mito pretende enfatizar a perversão das ações dos
Titãs; 24. Dionysos: Archetypal Image of Indestructible
Life, de Carl Kerényi (Princeton: Princeton University Press, 1976), 82; 25. Nonnus. Dionysiaca 6.155 ff. O tradicional animal “totem” de Dionísio
na mitologia grega popular é o touro ou a cabra. Nonnus disse que Zagreus
assumiu muitas formas para escapar aos Titãs, inclusive de um touro. Ver, The
Golden Bough: A Study in Magic and Religion, de James George Frazer: (Nova
York: Macmillan, 1971), 451; 26. Além disso, Perséfone, que é a mãe de
Zagreus nas Rapsódias, também tinha chifres, dois rostos e quatro olhos; 27. Plótino, como resumido em How Philosophers Saved Myths: Allegorical
lnterpretation and Classical Mythology, de Luc Brisson, (Chicago: University of
Chicago Press, 2004), 77; 28. Prolegomena to the Study of Greek
Religion, de Jane Ellen Harrison (Cambridge: Cambridge University Press, 1903),
481; 29. Homage to Pythagoras: Rediscovering
Sacred Science, de Christopher Bemford et al. (Nova York: Steiner Books, 1994),
22; 30. Lectures on Ancient Philosophy, de
Hall, 203; 31. Ibid. 204; 32. Narcissus é analogamente distraído por seu reflexo no poço,
recusando-se a sair do local, e é transformado numa flor; 33. Comentário de Olympiodorus sobre Phaedo de Platão, como citado em
Three Books of Occult Philosophy, de Henry Cornelius Agrippa (St. Paul:
Llewellyn 1993), 428; 34. The Orphic Pantheon de G.R.S. Mead
(Edmonds: The Alexandrian Press, 1984), 22; 35. The Writing of
Orpheus: Greek Myth in Cultural Context, de Marcel Detienne (Baltimore: Johns
Hopkins University Press, 2002), 157; 36. Creation and
Cosmology: A Historical and Comparative lnquiry, de Edwin O. James (Leiden:
Brill, 1969), 75. tt; 37. The Enneads, de Plótino, 4:3, 12.
FONTE: GOODART, Stefanie. Lançando luz sobre
alguns deuses órficos. In O Rosacruz. n. 282. primavera 2012. Curitiba: AMORC, 2012. p.
22-26.
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