sexta-feira, 17 de julho de 2015

ORFEU - 2


Baixo-relevo de Phanes (segundo século AD), Museu de Modena, Itália.


LANÇANDO LUZ SOBRE ALGUNS DEUSES ÓRFICOS

Por Stefanie Goodart, SRC


Acima do mito de Orfeu e Eurídice, tão conhecido hoje em dia, há uma teologia muito mais complexa de deidades emanadas e uma cosmologia detalhada que o orfismo reinterpretou para o mundo grego.
“Tudo vem à existência do Um e se resolve no Um”. (Musaeus, estudioso de Orfeu1).

O tema dos Mistérios órficos ocupou a maior parte da minha pesquisa nos últimos anos e já escrevi vários artigos sobre este assunto. Para este artigo em particular decidi não escrever uma visão geral das crenças e práticas órficas e, em vez disto, pretendo enfocar duas intrigantes deidades mencionadas nos mitos órficos, Phanes e Zagreus. Estas duas figuras são singulares no fato de que não são tipicamente mencionadas na mitologia grega popular2. Escolhi também estas duas deidades porque ambas pertencem a uma linha de sucessão que termina com Dionísio. Alguns estudiosos as interpretam como gerações prévias na árvore genealógica de Dionísio, enquanto outros, mais familiarizados com o pensamento metafísico, vêem-nas como diferentes encarnações da mesma deidade.

Neste artigo em particular eu pretendo primeiro apresentar aos leitores um esboço básico da seção da teogonia órfica que envolve Phanes. A partir daí suas funções e seus atributos serão discutidos, usando-se numerosos autores antigos como material de fonte. Mudaremos então nossa atenção para Zagreus do mesmo modo: primeiro haverá uma breve nova versão da seção apropriada do mito. Depois será apresentado um comentário de fontes antigas e modernas. Na seção final do artigo vou sintetizar a informação dada até esse ponto e oferecer uma interpretação que introduz ideias de espiritualidade, filosofia e universalidade.


Phanes

O mito de Phanes:3 No começo, tudo estava escuro e nada existia além de duas serpentes com asas.4 Elas se acasalaram e produziram um ovo brilhante.5 Uma serpente se enrolou em torno do ovo e o apertou até que ele se quebrou. Dele saiu a deidade hermafrodita alada, Phanes. Uma luz se irradiava do seu corpo, que era tão brilhante que ninguém podia vê-lo. Ela tinha quatro olhos, chifres, e as cabeças de um touro, um carneiro, um leão e uma serpente. Da metade superior da concha ela criou o céu e, da metade inferior, a terra. Ela se acasalou consigo mesma e deu nascimento à deusa Nyx. E também se acasalou com Nyx e deu nascimento a Gaia e Uranos. Phanes começou então a criar o mundo físico determinando um lugar para o Sol, a Lua e as estrelas.

Acredita-se que o mito básico date pelo menos do final do período arcaico. Aristófanes faz referência a ele em sua comédia The Birds [As Aves]6, apresentada pela primeira vez em 414 a.C. Embora na peça o mito esteja ligeiramente alterado, a figura de Phanes ainda é claramente identificável por suas resplandecentes asas douradas e pelo fato de que ela nasceu de um ovo.7

O nome Phanes vem do grego phainein, “trazer luz” e phainesthai, “brilhar”. Na antiguidade, alguns órficos achavam que este nome devia ser traduzido na voz ativa como “o portador de luz”, enquanto outros acreditavam que ele devia ser tomado a meia-voz como “o Resplandecente”. Em Rapsódias ele é descrito assim: “E todos os demais se maravilharam quando viram a inesperada luz no aither, tão ricamente brilhava o corpo do imortal Phanes”9.

Phanes pode ser descrito fisicamente como Luz e metafisicamente como Intelecto10. Geralmente, os platônicos vêem Phanes representando o Sol do mundo Inteligível11. Proclo diz que Phanes é “o primeiro intelecto inteligível” e “se desdobra na luz”12. Hermeas chama-o de a “fronteira do inteligível”, que “ilumina os deuses intelectuais com luz inteligível”13. Phanes traz luz às trevas e expulsa o caos14. Seu nascimento é o primeiro passo do Ser Divino que é sem forma e sem qualidades.

Como um ser hermafrodita, Phanes representa seu papel como o definitivo deus criador15. Ele tem dentro de si “a semente de todos os deuses”16. Suas asas e suas numerosas cabeças podem ser explicadas simplesmente como representativas de uma deidade extremamente poderosa e espantosa. É assim que a imaginação é influenciada, e até emprestada, de figuras mitológicas de outras culturas mediterrâneas antigas17.

Phanes tem muitas cabeças e muitos olhos, mas não tem um corpo. Isto simboliza que o mundo físico inferior ainda não fora manifesto18. Hermeas sugere que seus quatro olhos representam que ele une a mônada original à tríade emissora19. Pitágoras acreditava que a mônada era a fonte de todos os outros números. Três representava inteireza, porque tinha começo, meio e fim. Quatro simbolizava perfeição e sua forma correspondente era o quadrado20. A despeito da interpretação em particular, Phanes é certamente a representação antropomórfica da solução para o problema do Um-Muitos que tanto perturbou os antigos filósofos órficós e socráticos.


Zagreus

O mito de Zagreus:21 Zeus decidira passar seu reino para seu filho, Zagreus, embora ele fosse apenas uma criança. Isto causou ciúme em alguns dos outros deuses e os Titãs tramaram vingança contra o menino. Disfarçaram-se branqueando seu rosto e levaram vários presentes para Zagreus: um espelho, maçãs, uma bola, um jogo de pedrinhas, um pião, um roncador, lã, bonecos e um nártex22. Eles usaram estes presentes para atraírem Zagreus para longe dos outros deuses e, uma vez fora de vista, eles o atacaram. Primeiro o desmembraram, cortando-o em sete pedaços. Os pedaços foram fervidos e depois torrados23. Depois eles festejaram. No entanto, Athena chegou até eles e conseguiu salvar um pedaço, o coração, que ainda estava batendo. Ela o levou rapidamente a Zeus, que estava furioso com os Titãs. Em sua ira, Zeus arremessou seus raios contra os Titãs, os quais imediatamente os destruíram. Zeus pegou então o coração de Zagreus e o utilizou para trazê-lo de volta à vida. Da fuligem deixada pelos Titãs, Zeus formou seres humanos, animais e aves.

O nome Zagreus, frequentemente traduzido como “grande caçador”, parece ser uma contração de za- “muito” e agreus- “caçador”. Zagre, uma palavra Jônica, significa “um poço para capturar animais”24 . Talvez este nome se refira a algum mito desse deus que infelizmente foi perdido para nós. É bastante irônico que aqui Zagreus pareça ser o caçado e não o caçador!

Quanto à aparência física, Zagreus tem chifres25. Isto serve para ligar Zagreus a Phanes, que o leitor deve lembrar que também se diz ter chifres26.

Os Titãs cortaram Zagreus em sete pedaços. Cada um dos sete pedaços representa os sete corpos celestiais, e o coração, que consideramos a sede da alma do indivíduo, representa o intelecto da Alma-Mundo27. Naturalmente, esta Alma-Mundo não pode ser dividida. Zagreus, que pode ser visto como outra encarnação do Phanes anterior, é também uma representação antropomórfica do problema do Um-Muitos. Ele começa como um ser que é então dividido em muitos pedaços, fervido, torrado e ingerido. Mas, a partir do coração, o pedaço que é salvo, Zeus pode restaurar o corpo de Zagreus, completando assim o ciclo de um para muitos e de volta a um. Em função deste ensinamento, Harrison escreve que Zagreus é “o deus dos mistérios e seu pleno contentamento só pode ser compreendido com relação aos ritos órficos”28.


Discussão

Dentro do ovo, Phanes representa a união (perfeição) de opostos29. Quando o ovo se racha, a porção superior se torna o céu e a inferior a terra. Alguns escritores antigos comentam que a porção celeste foi feita de ouro, ao passo que a porção terrena foi feita de prata30. Estes pares de opostos associados a Phanes foram continuados; ele próprio é leve, enquanto a sua consorte/filha é Nyx (Noite). Além disso, juntos eles têm dois filhos, Gaia (Terra) e Uranus (Céu). Eles representam, respectivamente, fenômeno e númeno31.

A figura de Zagreus não representa tanto uma unificação de opostos quanto a de Phanes, mas seu mito resulta na síntese de opostos. No mito o espelho representa uma falsa duplicata da nossa realidade; literalmente, uma imagem no espelho é o oposto do que é refletido nele. Zagreus é perturbado por sua imagem32, que aqui simboliza o mundo físico como um reflexo do reino espiritual. Olympiodorus explicou que a essência de Zagreus foi incorporada a toda a criação devido a ele olhar para o espelho e seguir sua imagem33. Como escreveu Mead, o mito “é uma história dramática das andanças da ‘Alma-Peregrina’”34. Ele tem de passar pela “prova de separação e fragmentação através de um processo de diferenciação”35. Este é um outro tema comum no mundo mitológico e é semelhante a muitos dos textos alquímicos posteriores. É somente em sermos destruídos que completamos o ciclo para o todo. Assim temos o ciclo da tese, da antítese e da síntese, numa forma evolutiva do mito de Zagreus.

Phanes é a fonte de luz e inteligência para o cosmo e Zagreus provê a alma para a espiritualização de toda a criação36. Phanes dá início ao ciclo da criação e Zagreus o coloca em eterno movimento. O mito enfatiza que Um se torna muitos e se torna Um novamente em virtude do elo divino entre o Universo, o Ser Divino e os seres humanos, através desse ciclo eterno.

Durante o reino de Phanes, o mundo foi criado no seu estado espiritual. Zeus adquiriu poder algumas gerações mais tarde e fez o mundo manifesto em sua forma física. Zagreus, que recebe o trono de Zeus, destina-se a realizar a síntese destes dois estados aparentes durante o seu reinado. Todavia, ele é incapaz de cumprir seus deveres e assim as responsabilidades recaem sobre os seus sucessores que, segundo o mito, constituem a raça dos seres humanos.

“As almas dos homens, vendo suas imagens por assim dizer no espelho de Dionísio, entraram nesse reino num salto para baixo a partir do Supremo: no entanto, mesmo elas não foram cortadas da sua origem – do divino Intelecto; não se trata de que elas vieram trazendo o Princípio Intelectual para baixo na sua queda, e sim de que, embora elas tenham descido mesmo para a terra, sua parte mais alta permanece para sempre acima do céu” (Plótino)37.


Notas: 1. Como citado em Diogenes Laertius, prooem. 3; 2. De fato, pode-se até usar a presença do nome “Phanes” ou “Zagreus” como um indicador para classificar um texto, etc, assim como “Orfico”; 3. Todos os detalhes extraídos das Rapsódias, a menos que indicado de outro modo; 4. Argonautica 12 ff; 5. O “Ovo Cósmico” é um tema comum na mitologia comparativa. Alguns exemplos são o yin e o yang chineses que emergem de um ovo com a ajuda de um deus criador e o mito egípcio em que a ave-deusa Benu põe um ovo num outeiro e dele nasce o deus-sol. O mito judaico-cristão da criação no Gênesis é muito semelhante; primeiro se faz luz e o céu é separado da terra. No entanto, um ovo real não está presente. Além disso, a teoria do ‘Big Bang” pode ser também entendida como um mito de criação com um “objeto” tipo ovo contendo a matéria de toda a criação; 6. 690 ff. (-Orphicorum Fragmenta, fr. 1); 7. É claro que houve muitas versões diferentes deste mito em tempos antigos, assim como era comum para qualquer mito popular em povos que em maioria passaram histórias por tradição oral; 8. Walter Wili, “Os Mistérios Órficos e o Espírito Grego”, The Mysteries: Papers from the Eranos Yearbooks (Princeton: Princeton University Press, 1971), 71; 9. Como citado em W.K.C. Guthrie, Orpheus and Greek Religion: A Study of the Orphic Movement ( Princeton University Press, 1952 ), 95; 10. Isaac Preston Cory, Metaphysical Inquiry into the Method, Objects and Result of Ancient and Modern Philosophy (Londres: William Pickering, 1833), 30; 11. William Smith, William Wayte, e G.E. Marindin, eds., A Dictionary of Greek and Roman Antiquities ( Londres: John Murray, 1891), 301; 12. Trad. de The Commentaries of Proclus on the Timaeus of Plato, in Five Books, por Thomas Taylor ; Containing a Treasury of Pythagoric and Platonic Physiology, Vol. 1 (Londres: pelo autor, 1820), 361; 13. Como citado em The Mystical Hymns of Orpheus, de Thomas Taylor ( Londres: Bertram Dobell, 1896), 14-15; 14. Michael Jordan, Encyclopedia of Gods (Nova York: Facts on File, 1993), 204; 15. Esta qualidade hermafrodita reaparece depois na mitologia grega popular, em epítetos de Dionísio, como Androgynos (“andrógino”), Arsenothelys (“homem-afeminado”), Enorches (“bitesticular”), Gynnis (“afeminado”) e Pseudanor (“falso homem”); 16. Damascius, como citado em Myth, Ritual, and Religion, de Andrew Lang (Nova York: Longmans, Green, and Co., 1899), 299; 17. Dois artigos interessantes sobre este tópico são: M.L. VVest, “Graeco-Oriental Orphism in the 3rd cent. BC”, Assimilation et résistence à la culture Gréco-romaine dans le monde ancien: Travaux du Vlth Congrés International d'Etudes Classiques (Paris, 1976), 221-226 ; e “Gnostic Eros and Orphic Themes” de M.J. Edwards, Zeitschrift für Papyrologie und Epigraphik 88 (1991) : 25-40; 18. Lectures on Ancient Philosophy and Introduction to the Study and Application of Rational Procedure, de Manly P. Hall (Los Angeles: Hall, 1929) 203; 19. Como citado em The Origin of Pagan Idolatry Ascertained from Historical Testimony and Circumstantial Evidence, de George Stanley Fabet, Vol. 1 (Londres: E and C. Rivingtons, 1816), 262; 20. The Dying God: The Hidden History of Western Civilization, de David Livingstone (Lincoln: iUniverse, 2002), 135; 21. Todos os detalhes extraídos das Rapsódias, salvo indicação de outra fonte; 22. Proclo na obra Works and Days, de Hesíodo, 52; 23. Isto é o oposto de como a carne era cozida durante um sacrifício religioso na Grécia Antiga. O mito pretende enfatizar a perversão das ações dos Titãs; 24. Dionysos: Archetypal Image of Indestructible Life, de Carl Kerényi (Princeton: Princeton University Press, 1976), 82; 25. Nonnus. Dionysiaca 6.155 ff. O tradicional animal “totem” de Dionísio na mitologia grega popular é o touro ou a cabra. Nonnus disse que Zagreus assumiu muitas formas para escapar aos Titãs, inclusive de um touro. Ver, The Golden Bough: A Study in Magic and Religion, de James George Frazer: (Nova York: Macmillan, 1971), 451; 26. Além disso, Perséfone, que é a mãe de Zagreus nas Rapsódias, também tinha chifres, dois rostos e quatro olhos; 27. Plótino, como resumido em How Philosophers Saved Myths: Allegorical lnterpretation and Classical Mythology, de Luc Brisson, (Chicago: University of Chicago Press, 2004), 77; 28. Prolegomena to the Study of Greek Religion, de Jane Ellen Harrison (Cambridge: Cambridge University Press, 1903), 481; 29. Homage to Pythagoras: Rediscovering Sacred Science, de Christopher Bemford et al. (Nova York: Steiner Books, 1994), 22; 30. Lectures on Ancient Philosophy, de Hall, 203; 31. Ibid. 204; 32. Narcissus é analogamente distraído por seu reflexo no poço, recusando-se a sair do local, e é transformado numa flor; 33. Comentário de Olympiodorus sobre Phaedo de Platão, como citado em Three Books of Occult Philosophy, de Henry Cornelius Agrippa (St. Paul: Llewellyn 1993), 428; 34. The Orphic Pantheon de G.R.S. Mead (Edmonds: The Alexandrian Press, 1984), 22; 35. The Writing of Orpheus: Greek Myth in Cultural Context, de Marcel Detienne (Baltimore: Johns Hopkins University Press, 2002), 157; 36. Creation and Cosmology: A Historical and Comparative lnquiry, de Edwin O. James (Leiden: Brill, 1969), 75. tt; 37. The Enneads, de Plótino, 4:3, 12.


FONTE: GOODART, Stefanie. Lançando luz sobre alguns deuses órficos. In O Rosacruz. n. 282. primavera 2012. Curitiba: AMORC, 2012. p. 22-26.


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