A
REDESCOBERTA DE ORFEU DURANTE A RENASCENÇA
Por Alexander
J. Broquet, FRC
“O poeta genuíno é
sempre um sacerdote”
Novalis
Durante o período da
história ocidental conhecida como Renascença, filósofos, poetas, músicos e
intelectuais revigoraram as tradições da Grécia Antiga. Esse período de
renascimento intelectual e artístico foi enriquecido pela profusão de textos
antigos que vieram a tona apos o colapso de Constantinopla em 1453. Textos gregos
que estavam perdidos ou incompletos foram redescobertos e traduzidos,
tornando-se disponíveis na Europa pela primeira vez em quase mil anos. O impacto desses textos no Ocidente repercute
profundamente ate hoje.
A redescoberta da figura
mítica de Orfeu durante a Renascença é um claro exemplo de como a arqueologia
intelectual e artística da época deu origem a novas formas de expressão nas
artes, a novas percepções dos ensinamentos de antigos filósofos e a novas
maneiras de integrar a sabedoria antiga com as religiões da época.
Orfeu
nascido: Grécia Antiga
As fontes gregas antigas do
mito focalizam--se em Orfeu como um cantor místico e teólogo que falou das
origens do universo e dos deuses através de hinos e de música. Juntamente com
Homero, Hesíodo e Pindar, ele foi venerado como o maior poeta grego. Como teólogo,
dizia-se que ele havia sido iniciado as escolas de mistério do Egito Antigo e
levara estas sagradas tradições para a Grécia. As descobertas pitagóricas do
caráter sagrado do número, a base da escala musical e de praticas como o
vegetarianismo, teriam sido levadas por Orfeu para a Grécia, onde foram
adotadas e enriquecidas por Pitágoras e seus seguidores.
Segundo o neoplatônico
Proclo, Orfeu forneceu a fonte de toda a religião grega – “a teologia de ‘Todos
os Gregos’ é o fruto da doutrina mística órfica”. Na religião e na filosofia da
Grécia, a música estava intima-mente associada a criação do cosmo, bem como a essência
da alma. Isto é mais bem ilustrado no diálogo de Platão Timaeus, que pode ter tido origens pitagórica e órfica. No Timaeus, diz Platão: “... todo som
musical audível nos e dado para fins de harmonia, que tem movimentos similares
as orbitas na nossa alma e que, como sabe todo mundo que faz use inteligente
das artes, não deve ser usado... para dar prazer irracional e sim como um
aliado enviado do céu para trans-formar em ordem e harmonia toda desarmonia nas
mudanças no nosso interior”.
A música tem o poder de
harmonizar a alma individual com a alma do mundo assim como o microcosmo humano
contem os mesmos elementos do macrocosmo do mundo. O tocar certos tipos de música
podia levar à harmonização com o ser divino. Outros tipos de música podiam
suscitar violência, angústia ou letargia. A música exercia controle sobre os
elementos, os seres humanos e os animais. Por estas razões Platão instava um
grande cuidado no uso de música, e recomendações especificas eram feitas quanto
a quais tipos de música empregar para obter o maior bem. Histórias semelhantes
são ditas sobre como Pitágoras curava pessoas e criava harmonia social através
da música.
Como o maior músico e cantor
do mundo antigo, Orfeu comandava incríveis poderes sobre a natureza e a alma.
Ele era famoso por encantar animais selvagens, civilizar pessoas bárbaras e ate
deslocar arvores e pedras pelo poder da música. Sua lira lhe foi dada por
Apolo, o deus da música e da harmonia e, portanto, tinha poderes especiais.
Como um instrumento de harmonia, com sete cordas harmônicas, a lira representa
também a harmonia do cosmo. A ressonância simpática criada tangendo-se as
cordas da lira proporcionava aos gregos antigos uma poderosa metáfora para
conciliar espírito cósmico com alma humana. Este conceito seria muito expandido
por filósofos da Renascença posterior, como Marsilio Ficino, que tocava uma
lira órfica exatamente para este fim.
Orfeu
está vivo: primeiros mitos
Uma primeira narrativa do
mito de Orfeu vem de Argonautica, um
poema do século quatro d.C. que relata as aventuras de Jasão e dos argonautas
em sua busca do Velocino de Ouro. Orfeu, o cantor, protege os argonautas do
perigo de ouvirem o canto da sereia, tocando sua lira e cantando. Ela também
contem hinos cosmogônicos e menciona as viagens dele para o Egito.
O mito de Orfeu com que
estamos mais familiarizados foi contado pelos poetas romanos Ovidio, Virgílio e
Horicio. Tanto em Metamorfoses (8
d.C.) de Ovídio como em Georgics (23
a.C.) de VirgÍlio, Orfeu, o maior tocador de lira, desceu ao submundo para
recuperar seu amor, Eurídice, do reino de Hades, depois que ele a perdeu por
falecimento devido a uma picada de cobra no dia do casamento deles. Ele teve de
cruzar o portal do Hades, passar pela fera de três cabeças, Cérbero, e cruzar o
rio Styx, guardado pelo barqueiro Charon. Ele foi guiado pela esperança e seu
canto e sua execução de música fizeram os guardas do submundo dormir de modo
que ele pudesse entrar onde nenhum ser humano era permitido. Orfeu apelou para
Pluto e Perséfone, os regentes do submundo, para que eles lhe permitissem levar
Eurídice de volta a terra dos vivos. Seu canto mavioso os persuadiu a atenderem
ao seu pedido, mas havia um empecilho: ele não deveria olhar para trás, para
ela, enquanto estivesse subindo do submundo. Orfeu concordou e guiou Eurídice
para fora do submundo. Num instante de dúvida ele ouviu um ruído e se voltou
para ela, causando trágica perda dela pela segunda vez.
Ao retornar, Orfeu caiu em
grande desespero. Encontrou alivio na música e no canto para os homens
selvagens da Trácia, originários do cosmo e dos deuses. Orfeu foi brutalmente
dilacerado e desmembrado pelas bacantes – as selvagens e furiosas adoradoras de
Dionísio. Consta em alguns relatos que isto aconteceu porque ele não lhes
permitiu serem iniciadas aos mistérios órficos; outros relatos afirmam que isso
foi uma reação ao fato de ele ter persuadido seus homens a irem embora. Sua cabeça
arrancada e sua lira flutuaram rio abaixo para a terra na ilha de Lesbos, onde
a cabeça continuou a cantar e fazer oráculos. Tão grande era o seu poder que
ate Apolo ficou enciumado. Sua lira, uma fonte de grande poder mágico, foi
suspensa no templo de Apolo.
Em Ars Poetica, de Horácio, Orfeu é também retratado como o
civilizador de seres humanos. Ele foi o primeiro poeta a “abrandar o coração
das ‘pessoas cruéis e bestiais’ e colocá-las no caminho para a civilização”.
Como John Warden indica, o efeito da canção de Orfeu é de guiar os seres
humanos para o amor. Como declarado no Hino Órfico a Vênus, “O amor é muito
antigo, prefeito em si mesmo e muito sábio”.
Orfeu
perdido: a Idade Média
Os mitos romanos de Ovídio e
Virgílio são poderosos e permanecem conosco ate hoje. Mas, antes das novas versões
do mito de Orfeu, havia uma sagrada tradição com profundas raízes na religião
grega. O mito de Orfeu foi absorvido na emergente tradição cristã, como se vê
na arte funerária romana e nas comparações teológicas de Orfeu com Davi e
Moisés. Na antiga tradição cristã, Orfeu foi visualizado como um profeta pagão
que pressagiou a vinda do Cristo.
Como Agostinho mais tarde
escreveu, dizia-se que Orfeu “tinha predito ou falado a verdade sobre o Filho
de Deus ou o Pai”. O que Orfeu começou, o Cristo completou. Mais tarde, na
Idade Média, o mito de Orfeu seria contado novamente em forma de alegorias morais.
Durante este período, o conhecimento escrito do sagrado, do místico e dos
ensinamentos teológicos da tradição órfica, foi perdido.
Durante o período do
terceiro ao sexto séculos, motivos órficos foram misturados com representações
do Cristo na arte funerária, como se vê nas catacumbas romanas. Artistas funerários,
procurando estabelecer modelos adequados para a necessidade da nova fé cristã
de imagens do Cristo como um líder de almas através do submundo, puderam usar a
figura de Orfeu. Nesses antigos afrescos das primeiras catacumbas cristãs,
Orfeu, o pacifico domador de animais selvagens, e representado como um símbolo
do Cristo. Com o passar do tempo, a imagem de Orfeu, o domador de animais, e a
do Cristo, o Bom Pastor, acabariam se fundindo.
John Block Friedman observa semelhanças
entre representações do Cristo e de Orfeu na antiga arte funerária cristã: “...
Orfeu, devido a sua natureza pacífica, ao seu poder de acalmar discórdia através
da música e da eloquência, e a sua trágica morte nas mãos dos seus seguidores,
foi talvez a mais apropriada e certamente a mais duradoura das figuras pagas
para o Cristo a serem usadas na arte funerária”. Nessas imagens de tumbas, o
Cristo é representado com uma lira e uma touca frigia, cercado de animais –
nestes casos, a variedade dos animais e tipicamente simplificada para mostrar
carneiros ou outros animais icásticos como pombas e águias.
Escritores cristãos que
comparam explicitamente Cristo e Orfeu incluem Clemente de Alexandria e
Eusébio. Clemente compara o poder do novo canto do Cristo que amansa os mais
ferozes animais – humanos – com o uso por Orfeu de música para encantar animais
e mover carvalhos. “Escritores compararam as ações de Orfeu e do Cristo no
submundo, mostrando que aquilo que Orfeu iniciara o Cristo terminara, cumprindo
profecias inerentes ao mito pagão”. Esta interpretação persiste hoje em dia,
como explica Umberto Utro, chefe do Departamento de Antiga Arte Cristã do Museu
do Vaticano: “Muitos sarcófagos cristãos contem elementos pagãos e referências
a deuses e deusas gregos e romanos... Na Bíblia, Jesus diz ‘Eu sou o Bom Pastor que vai sacrificar sua vida pelo rebanho’. Os primeiros cristãos
reconheceram facilmente o Cristo em imagem (o rebanho pagão) e o investiram num
novo significado. Artistas também viram o Cristo em Orfeu, o filho do deus da música,
Apolo. Uma vez que Orfeu amansava animais ferozes com sua música, sua imagem se
tornou a imagem do Cristo que, com suas palavras, transformava a vida de
pecadores”.
Um fascinante exemplo da fusão
de Orfeu e do Cristo e representado num amuleto que apresenta o Cristo
crucificado embaixo de uma lua e sete estrelas, com o texto “Orfeu Baco” [Ed:
Ver "Uma Era Órfica”,...]. Amuletos como esse foram produzidos em
Alexandria, onde judeus, cristãos e religiosos gregos coexistiam e se
misturavam, e podem ilustrar o apelo de um crente por proteção de múltiplas
divindades. Todas as três figuras – Orfeu, Baco/ Dionísio e Cristo – guiavam a
alma pelo submundo e podiam ser apeladas para proteção e orientação da alma em
sua jornada após a morte física.
Orfeu foi também comparado a
figuras das Escrituras Hebraicas, como Davi e Moises. Orfeu e Davi, ambos
curavam mediante música e eram conhecidos como cantores de hinos sagrados e
artistas de instrumentos de corda. Davi curou a loucura do Rei Saul mediante
suas execuções de música e seus cantos. Antigos líderes gregos da Igreja, como
Clemente de Alexandria, Eusébio e Proclo, referem-se a Orfeu para ilustrarem
que a tradição religiosa grega foi emprestada de Moisés no Egito, mostrando que
sua fonte de divina inspiração era a mesma da tradição judaico-cristã. Para
esses escritores, os ensinamentos de Orfeu representam uma forma primitiva de monoteísmo
emprestada de fontes judaicas. Após o século V, explicitas ligações de Cristo e
Orfeu começaram a desaparecer. No começo da Idade Media, o mito de Orfeu era
contado como uma alegoria e o próprio Orfeu era visto numa luz negativa em que
seu paganismo, sua habilidade musical e seu empenho moral estavam ligados. Em
obras como Ovídio Moralizado, mitos clássicos
são reformados como alegorias morais para reconciliá-los com a doutrina cristã.
Mais para o fim da Idade
Media, Orfeu foi transformado num bonito cavaleiro ou príncipe que cantava canções
de amor romântico, que ressuscitou Eurídice e sempre conseguia um final feliz.
No século XI, Orfeu foi apresentado como um amante romântico em três diferentes
poemas. O século XIV produziu dois longos poemas em inglês com Orfeu como um herói
principesco: Orfeu e Eurídice, de Henryson,
e o anônimo Sir Orfeo. Orfeu e apresentado
como o mais leal dos amantes, um menestrel, e como dotado dos poderes mágicos e
astrológicos de um feiticeiro. Esses escritores românticos medievais falam de
Orfeu trazendo Eurídice de volta a vida através de feitiços ou pelo poder do
amor.
Por exemplo, o poema
romântico, Sir Orfeo, inclui
elementos de mitologia céltica sobrenatural, fadas e ricos castelos. Ele tem
uma ligeira semelhança com o Orfeu de Ovídio e Virgílio e concorda bastante com
o gênero romântico medieval da época. Contem uma mistura de mitologia e romance
secular clássicos, moral cristã e lendas de fadas célticas. Uma tradução moderna
de Sir Orfeo foi completada por
J.R.R. Tolkien e publicada como obra póstuma no livro Sir Gawain and the Green Knight, Pearl, and Sir Orfeo.
Orfeu
recuperado: a Renascença
Muitas das originais tradições
espirituais gregas associadas a Orfeu foram perdidas durante a Idade Media,
assim como tradições religiosas pagas foram suprimidas e eliminadas pela Igreja
Cristã. A Renascença trouxe uma redescoberta dos mitos clássicos originais e de
fontes anteriores, levando a uma profunda apreciação de Orfeu tal como ele
aparecia antes de se fundir com a tradição cristã. A redescoberta de fontes clássicas
foi liderada por Cosimo de Médici, um governante florentino do século quinze que
patrocinou a tradução de um grande número de obras clássicas da antiguidade do
grego para o latim, assim tornando muitas fontes originais disponíveis para o
Ocidente pela primeira vez em mais de mil anos.
Através de Cosimo de Medici,
a Academia Platônica foi novamente fundada em Florença. Ele apontou Marsilio
Ficino como seu líder. Ficino traduziu todas as obras conhecidas de Platão, o Corpus Hermeticum, e as obras de filósofos
neoplatônicos como Porfírio, Plotino e Jâmblico. A meta de Ficino era
reconciliar o platonismo com o Cristianismo através de suas traduções, seus comentários
e escritos como Platonica Theologia de
immortalitate animorum (Teologia Platônica sobre a Imortalidade das Almas)
e De vita libri tres (Três Livros da
Vida). Através do seu revivescimento do pensamento platonico, Ficino se tornou
um dos principais fundadores do renascimento espiritual e cultural da Renascença.
Sabemos que Ficino tinha uma
profunda afinidade com Orfeu e compartilhava com ele muitos dos seus atributos:
ele cantava os hinos órficos, tocava a lira órfica com uma imagem de Orfeu
pintada nela, era do ponto de vista de eloquência comparado a Orfeu por aqueles
que o conheciam e praticava o que agora chamaríamos de musicoterapia como um
método de cura psicológica e de integração espiritual. O biógrafo de Ficino,
Corsi, disse: “Ele publicou os hinos de Orfeu e os cantou à lira na maneira
antiga com incrível beleza, corno diz o povo”. Johannes Pannonius disse: “Você
trouxe novamente à luz o antigo som da lira, o estilo de cantar e as canções
órficas que haviam sido antes entregues ao esquecimento”.
Marsilio
Ficino: Orfeu de volta
Lorenzo de Medici, em seu
poema Altercazione, disse de Ficino: “Eu
pensei que Orfeu voltara ao mundo”. Um outro escritor disse dele: “Ele abranda
os carvalhos improdutivos com sua lira e acalma ainda mais o coração de animais
ferozes”. O estudioso florentino Angelo Poliziano compara as consecuções de
Ficino com a recuperação de Eurídice do submundo por Orfeu: “Sua lira... muito
mais bem sucedida do que a lira do Orfeu Trácio, trouxe de volta do submundo
aquela que é, se não me engano, a verdadeira Eurídice, isto é, a sabedoria
platônica com seu vasto discernimento”.
Fontes que inspiraram Ficino
incluem Platão, Hermes Trismegisto e Neoplatônicos como Proclo e Plótino, bem
corno o antigo sincretista Gemistus Pletho. Como Proclo, Ficino cantou e
estudou entusiasticamente os hinos órficos. Também praticou o vegetarianismo,
que era urna das práticas espirituais essenciais das escolas de mistério
órficas e pitagóricas. Gemistus Pletho forneceu a inspiração que iria ajudar a
fundar a Academia Platônica e pode também ter tido um papel significativo em
inspirar Ficino no uso de hinos. Pletho e Proclo promoveram ambos a concepção
de uma tradição filosófica perene anterior a Platão, que inclui Orfeu,
Pitágoras e os oráculos caldeus. Filósofos da Renascença desenvolveram esta
noção, inclusive teólogos divinamente inspirados como Abraão, Zoroastro,
Hermes, Moisés, Orfeu, Pitágoras e Platão, como membros da prisci theologi, antigos sábios que precederam a chegada do Cristo
Orfeu é tipicamente a mais antiga fonte grega nesta linhagem.
Sua visita ao Egito
proporcionou uma fonte comum para Pitágoras, Platão e outros. O monoteísmo e a
trindade eram duas verdades religiosas mencionadas como tendo sido fundadas na prisci theologi, e por Orfeu em particular.
Proclo e Plotino forneceram a Ficino uma base para interpretação dos deuses da
mitologia grega como princípios metafísicos que ajudariam Ficino a desenvolver
suas ideias sobre magia natural e ligar as aparentemente inconciliáveis
tradições pagã e cristã. Orfeu, com suas associações com as religiões grega,
egípcia e possivelmente hebraica, oferece um símbolo singularmente poderoso da
tradição sagrada universal que atrairia fortemente estudiosos da Renascença e
filósofos empenhados em reconciliar as tradições paga e cristã.
A primeira obra que Ficino
escolheu para traduzir foi os Hinos de
Orfeu. Os Hinos Órficos são tidos como tendo sido compostos por autores
neoplatônicos no segundo ou no terceiro século d.C., e podem estar baseados em
fontes mais antigas. São hinos divinos para os deuses gregos como Apoio, Vênus,
Hermes e também as Musas, as Parcas e as Fúrias. Eles contêm instruções para
oferenda de incenso, juntamente com epítetos cantando louvor aos deuses ou às
deusas invocados. Ficino via os deuses e as deusas dos hinos como metafísicos,
naturais e princípios arquetípicos que continham a divindade do Deus único e
advertia contra se considerar pensar neles de maneira idólatra.
Embora traduzidas em 1462,
essas obras não foram disponibilizadas senão muito mais tarde, talvez devido à
preocupação de que elas fossem interpretadas como muito abertamente pagãs. D.P.
Walker levantou a hipótese de que o mais antigo manuscrito dos Hinos Órficos da
era da Renascença tenha sido trazido de Constantinopla por Giovanni Aurispa em
1424.
Ficino dá muita importância
a esses hinos, incluindo seu revivescimento nas grandes consecuções do século
quinze, com Florence dizendo: “Esta era, como uma era áurea, trouxe de volta à
luz as disciplinas liberais que haviam sido praticamente extintas: gramática,
poesia, oratória, pintura, escultura, arquitetura, música e o antigo cantar de
canções à lira órfica”.
Ficino recomendava cantar os
hinos como um método de alinhamento da alma humana com a alma cósmica, assim
trazendo boa saúde e alívio de melancolia e de outras aflições do espírito. “Nosso
spiritus está em conformidade com os
raios do spiritus celestial, que tudo
penetra secreta ou obviamente. Ele mostra uma afinidade muito maior se fazemos
uso de canção e luz e do perfume apropriado à divindade como os hinos que Orfeu
dedicava às deidades cósmicas... A música nos foi dada por Deus para dominar o
corpo e prestar louvor [a Deus].
“Eu sei que Davi e Pitágoras
ensinavam isto acima de tudo o mais e acredito que eles o puseram em prática”.
Numa outra carta ele explica: “faço isto também para banir as aflições da alma
e do corpo e para elevar a mente às mais altas considerações e a Deus tanto
quanto eu possa”. Embora não tenhamos nenhum registro da sua música, sabemos
que suas apresentações eram impressionantes e profundamente inspiradoras.
No relato de um testemunho
direto de urna apresentação de Ficino, disse um bispo: “... então seus olhos se
iluminaram e ele se ergueu e descobriu urna música que nunca aprendera
mecanicamente”.
Ficino via música, medicina
e teologia como intimamente ligadas e dignas de estudo e prática. Numa de suas
cartas ele disse: “Você pergunta, Canigiani, por que eu combino tão
frequentemente o estudo de medicina com o de música... Orfeu, no seu livro de
hinos, afirma que Apoio, por seus raios vitais, concede saúde e vida a todos e
afasta a doença. Além disso, pelas cordas sonoras, isto é, por suas vibrações e
seu poder, ele regula tudo: pela corda mais grave, o inverno; pela corda mais
alta, o verão; e pela corda média ele traz a primavera e o outono. Assim, uma
vez que o patrono da música e o descobridor da medicina são um e o mesmo deus,
não é de surpreender que ambas as artes sejam com frequência praticadas pelo
mesmo homem. Ademais, a alma e o corpo estão em harmonia um com o outro numa
proporção natural, assim como as partes da alma e as partes do corpo”.
Ficino dá uma outra
explicação do poder da música para criar harmonia no corpo, trabalhando com a
imaginação e a emoção do artista e citando exemplos similares de Pitágoras,
Empédocles, Platão, Aristóteles, Orfeu e Amphion: “Platão e Aristóteles ensinaram,
como frequentemente verificamos por nossa própria experiência, que música séria
mantém e restaura essa harmonia nas partes da alma, ao passo que a medicina
restaura a harmonia das partes do corpo... E Pitágoras, Empédocles e o médico Asclepíades
provaram isto na prática. Nem isto é de espantai; pois som e canção provêm de
consideração na mente, do impulso de fantasia e do desejo do coração e, ao
afetar o ar e lhe dar medida, eles fazem vibrar o espírito aéreo do ouvinte,
que é o elo entre o corpo e a alma. Assim o som e a canção facilmente despertam
fantasia, afetam o coração e atingem os mais internos recessos da mente... Isto
foi de fato mostrado pelos milagres de Pitágoras e Empédocles, que podiam
dominar luxúria, raiva ou loucura mediante música séria. E mais ainda, usando
diferentes modos, eles costumavam estimular mentes preguiçosas. E existem as
histórias de Orfeu, Arion e Amphion”.
Música e som estão
relacionados com a alma pela natureza do ar e da vibração. Isto é remontado por
Orfeu às fontes originais no Egito: “O corpo é de fato curado pelos remédios da
medicina; mas o espírito, que é o etéreo vapor do nosso sangue e o elo entre
corpo e alma, é temperado e nutrido por fragrâncias, por sons e pelo canto.
Finalmente, corno a alma é divina, é purificada pelos divinos mistérios da
teologia. Na natureza, ocorre a união de alma, corpo e espírito. Para os
sacerdotes egípcios, medicina, música e os mistérios eram uma e a mesma coisa.
Oxalá possamos dominar essa arte natural e egípcia tão tenaz e sinceramente
quanto nos apliquemos a ela!”
Sabemos que Ficino se viu
tornado de melancolia, que ele atribuía à influência de Saturno no seu
horóscopo astrológico. Tocar a lira e os hinos órficos eram atos usados corno
método de alinhar seu espírito com específicos princípios metafísicos
celestiais e divinos, que podiam ser usados para restaurar o equilíbrio físico,
psicológico e espiritual.
Numa de suas cartas ao seu
amigo Sebastiano Foresi, disse Ficino: “Eu me ergui e me apressei em pegar a
lira. Comecei a cantar prolongadamente os hinos de Orfeu”. E “nós tocamos a
lira justamente para evitar nos tornarmos relaxados... que a lira bem tenalr
rada seja sempre nossa salvação quando nos apliquemos a ela corretamente”. Esta
magia natural é usada para curar o corpo. Como Angela Voss afirma no seu
artigo: “Marsilio Ficino, o Segundo Orfeu”: “Se uma pessoa tem olhos internos para percebê-las, as coisas naturais
do mundo mutável percebidas pelos sentidos são sinais ou ‘divinas iscas’ que proporcionam
um lembrete interminável de duradoura realidade. Neste sentido o próprio ato de
viver pode ser visto como um rito mágico...”.
Em “Ajustando a Vida Pessoal
ao Céu”, Ficino nos dá regras para compormos e improvisarmos música celestial.
A música é atraída para baixo através das esferas celestiais mediante sete
passos correspondentes aos planetas e associados a pedras, metais e elementos.
Cada qual deve escolher tons que correspondam às esferas celestes que deseje
emular. Eles devem então ser harmonizados e arranjados de um modo que reflita a
harmonia das esferas. O praticante deve prestar atenção às energias a que são
primariamente suscetíveis e empregar tons de corpos celestes que aumentem ou
diminuam essas energias, dependendo do equilíbrio desejado.
Ficino desenvolveu também o
conceito dos quatro furores, ou frenesis: poético, religioso, profético e
amoroso. A música foi associada ao primeiro furor poético e inspirou
harmonização da discórdia da alma causada por sua dolorosa encarnação no mundo
material. Orfeu foi interpretado como um “instrutor poético divinamente
inspirado, possuído pelo furor platônico que reformou e civilizou seus bárbaros
contemporâneos”. Orfeu cumpriu um papel especial na filosofia de Ficino, ao ser
inspirado por todos os quatro divinos frenesis. “Nos quatro frenesis” é o “poder
do amor que Orfeu traz ao mundo”.
Em Orfeu, Ficino encontrou a
personificação da sua missão filosófica – ele redescobriu o fundador dos
mistérios que usavam música e hinos para mediar entre o céu e a terra, trazendo
civilização, as artes, cultura, saúde, amor e paz para a humanidade “... você
mesmo será maior do que o céu, tão logo se decida à tarefa. Pois esses corpos
celestes não devem ser procurados por nós em algum lugar fora; pois o céu, em sua
inteireza, está dentro de nós, em quem habita a luz da vida e a origem do céu”.
Para Ficino, Orfeu é mais do que um mito. Ele é uma presença viva a ser
revivida através de prática espiritual e canto.
Orfeu
continua cantando
Depois de Ficino, Giovanni
Pico della Mirandola também redescobriu o mágico e teúrgico uso dos Hinos
Órficos, dizendo: “Nada é mais eficaz na magia natural do que os hinos de
Orfeu, se a música correta, o intento da alma e outras circunstâncias conhecidas
do sábio são aplicadas”. A teoria música-espírito de Ficino seria expandida e
continuada por estudiosos do século dezesseis, como Robert Fludd (Inglaterra),
Guillaume du Bartas (França), Robert Burton (Inglaterra) e Heinrich Cornellius
Agrippa (Alemanha).
O redespertar do mito
clássico de Orfeu por Ficino e outros estudiosos da Renascença inspirou
artistas que usaram Orfeu como um modelo para novas formas de expressão artística
em música, escultura e pintura. Em particular, vemos Orfeu presente no
nascimento da ópera, que começou com uma imitação consciente da tragédia grega.
Orfeu foi o mais popular tema entre as primeiras óperas. Angelo Poliziano, um
poeta florentino, humanista e colaborador de Ficino, criou um primeiro
precursor da ópera baseado no mito órfico, intitulado La Favola di Orfeo, em 1474. A própria lira órfica de Ficino foi
usada durante uma das apresentações em Mântua pelo cantor Baccio Ugolino.
Embora a música dessa obra tenha sido perdida para nós, sabemos que ela era
baseada na recontagem do mito e que enfatiza Orfeu como o pastor bucólico
apaixonado por Eurídice. A obra foi feita durante as festividades do Carnaval
em Mântua e destinava-se a homenagear o Cardeal Francesco Gonzaga. Sabe-se que
Leonardo da Vinci projetou o palco para essa obra e que existem desenhos dela
nos seus cadernos.
A mais antiga ópera
registrada é Orpheus and Euridice,
composta por Jacopo Peri em 1600. Euridice de Peri foi primeiro apresentada
para o casamento de Maria de Medici e Henrique IV (tido como Hermes) e é considerada
a primeira ópera. Na versão de Peri, Euridice e Orfeu são reunidos após a
jornada ao submundo. L’Orfeo, de
Monteverdi, composta em 1607, é considerada a primeira ópera popular. Embora
suas primeiras apresentações fossem reservadas para público pequeno, de elite, L’Orfeo logo foi apresentada fora de
Mântua, tornando-se a primeira ópera a ser apresentada com sucesso em várias cidades.
Trata-se de uma obra popular executada até hoje. Como professor, Ralph Abraham
salienta: “Existem pelo menos vinte e seis óperas nos anos 1600 relativas a
Orfeu e vinte e nove nos anos 1700, inclusive clássicos por Telemann, Gluck,
Hándel e Haydn”.
Conclusão
O mito de Orfeu ressoa ao
longo do tempo como um poderoso arquétipo porque ele mostra como a arte, a
poesia e a música podem ser usadas para ligar múltiplos campos de existência:
mundano e celestial, vivo e morto, consciente e inconsciente, caótico e
harmonioso, masculino e feminino, e pessoal e cósmico. A ponte é criada por
ressonâncias compartilhadas entre estes campos através do ar, da emoção e da
imaginação. Graças ao trabalho dos filósofos, artistas, poetas e músicos da
Renascença, essa ponte foi recuperada e preservada para futuras gerações
redescobrirem por si mesmas.
Bibliografia:
Abraham, Ralph H. “Orpheus Today”. Universidade da Califórnia, Santa Cruz.
Rosicrucan Digest, Vol 86:1 (2008), 42-47. Glatz, Carol. “Silencioso corno uma
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the Theologian and Renaissance Platonists’ Journal of the Warburg and Courtauld
Institutes, Vol. 16, N. 1/2. (1953)100-120. Warden, John. “Orpheus and Ficino”
em Orpheus: The Metamorphoses of a Myth. John Warden, ed. University of Toronto
Press: Toronto, 1982.
FONTE:
BROQUET, Alexander J. A redescoberta de
Orfeu durante a Renascença. O Rosacruz. n. 280. outono 2012. Curitiba:
AMORC, 2012. p. 16-26.
Orfeu com a lira e rodeado de animais. Museu de Arte Bizantina Cristã, Atenas.
Vaso
órfico de alabastro (séculos II e III d. C.), simbolizando a serpente/ovo
órfica no centro de tudo, emanando o cosmo e o renascimento para o estado
prístino que o iniciado órfico poderia obter.
Durante
os anos de formação do Cristianismo, o simbolismo órfico e mitraico era às
vezes combinado com o cristão, como neste baixo-relevo com todos os três
elementos: a touca frigia de Mitras, a lira de Orfeu e o bom pastor cristão.
Os
cristãos não tinham dificuldade para representar Orfeu nos baixos-relevos neste
Pyx (vaso contendo o pão consagrado da celebração eucarística), que
lendariamente fora um presente do Papa Gregório, o Grande, à Columba em Bobbio,
no quinto século.
Orfeu-Cristo
das Catacumbas, Cemitério dos Dois Lauréis. Ele representa Orfeu com sua lira
na pose imperial de Cristo, com almas cristãs como pombas, ca. século IV.