segunda-feira, 29 de junho de 2015

INICIAÇÃO E CONTRA-INICIAÇÃO - 2








Por René Guénon

Já dissemos alhures que existe um fenômeno que poderíamos chamar de “contra-iniciação”, ou seja, uma coisa que se apresentaria como uma iniciação e que até mesmo pode dar a ilusão de ser verdadeiramente uma iniciação, mas que segue o caminho inverso da verdadeira iniciação.

Não obstante, comentamos que esta designação exige algumas reservas; o fato é que se tomássemos no sentido estrito, poderíamos criar a crença de uma espécie de simetria, ou por assim dizer de uma equivalência (ainda que no sentido inverso), que, sem dúvida, forma parte das pretensões dos que se ligam a aquilo que tratamos aqui e que não existe e não pode existir na realidade.

Sobre este ponto convém insistirmos especialmente, já que muitos deixam-se enganar pelas aparências, imaginam que há no mundo duas organizações opostas que disputam a supremacia, concepção errônea que corresponde a aquela, que na linguagem teológica, põe Satã no mesmo nível de Deus, e que, com ou sem razão, se atribui comumente aos Maniqueus.

Esta concepção, conforme assinalaremos em seguida, vem a ser o mesmo que afirmar uma dualidade radicalmente irredutível, ou, em outros termos, negar a Unidade suprema que está além de todas as oposições e antagonismos; uma negação assim é tema dos mesmos aderentes a “contra-iniciação” e algo que não nos deve surpreender; mas isso mostra ao mesmo tempo que a verdade metafísica, até nos seus princípios mais elementares, é para eles totalmente estranha e por isso sua pretensão se aniquila sozinha.

Importa-nos assinalar, antes de mais nada, que, em suas próprias origens, a “contra-iniciação” não pode apresentar-se como algo que surgiu de forma independente e autônoma: se houvesse constituído-se espontaneamente, não seria nada mais que uma invenção humana e não se distinguiria assim da pura e simples “pseudo-iniciação”.

Para que seja mais que isso, e de fato ela é, é necessário que, de certo modo, proceda da fonte única que se liga toda a iniciação, e, mais genericamente, a tudo que se manifesta em nosso mundo num elemento “não-humano” procedente dela, se manifestando por uma degeneração que chega até a uma “inversão” que constitui aquilo que podemos chamar propriamente de “satanismo”. Se vê pois que, de fato, se trata de uma iniciação desviada e desnaturada, e que, por isso mesmo, não tem direito de ser qualificada verdadeiramente de iniciação, posto que não conduz ao fim essencial desta, e inclusive faz distanciar o ser dela em vês de aproximá-lo.

Não basta, pois, falarmos aqui de uma iniciação truncada e reduzida a sua parte inferior, como pode ocorrer também em certos casos; a alteração é muito mais profunda; mas há nela, entretanto, como dois estados diferentes num mesmo processo de degeneração. O ponto de partida é sempre uma rebelião contra uma autoridade legítima, e uma pretensão de uma independência que não poderia existir, como tivemos a oportunidade de explicar num outro momento (1); disso resulta imediatamente a perda do contato efetivo com um centro espiritual verdadeiro e, portanto, a impossibilidade de alcançar os estados supra-individuais; e, naquilo que todavia ainda subsiste, o  desvio não poderia ir mais que se agravando seguidamente, passando por graus diversos, para chegar, nos casos extremos, até esta “inversão” da qual acabamos de falar.

Uma primeira conseqüência disto é que a “contra-iniciação”, quaisquer que possam ser as suas pretensões, não é na verdade mais que um beco sem saída, já que é incapaz de conduzir o ser, a mais adiante da condição humana; e é neste estado mesmo, pelo fato de sua “inversão” que a caracteriza, desenvolve modalidades que são as de ordem mais inferiores. No esoterismo islâmico, se diz que quem se apresenta diante de certa “porta”, sem ter chegado a ela por uma via normal e legítima, vê esta porta se fechando diante dele e é obrigado a voltar atrás, porém, não como um simples profano, o que de agora adiante é impossível, mas sim como sâher (bruxo ou feiticeiro). Não poderiam ter expressado com maior nitidez aquilo de que tratamos.

Outra conseqüência, em conexão com a anterior, é que, ao fazer-se quebrada a conexão com o centro, a “influência espiritual” se perde; e isto já basta para que se mostre que aqui não se trata realmente de iniciação, posto que esta, como explicamos anteriormente, está essencialmente constituída pela transmissão desta influência. Não obstante, todavia, há algo que se transmite, sem o qual falaríamos de novo da “pseudo-iniciação”, desprovida de toda a eficácia; mas não se trata mais de que uma influência de ordem inferior, “psíquica” e não “espiritual” e que, abandonada dessa maneira, sem o controle de um elemento transcendente, toma de certo modo inevitavelmente um caráter “diabólico” (2).

É fácil compreender, entretanto, que esta influência psíquica pode imitar a influência espiritual em suas manifestações exteriores, ao ponto de aqueles que se detêm nas aparências chegam a equivocar-se a respeito, pois, a primeira origina-se na mesma ordem de realidade, na qual se produzem estas manifestações (não se diz proverbialmente, e num sentido comparável a este, que “Satã é o imitador de Deus”?); e que a imitam, poderíamos dizer ainda que da mesma forma, os elementos evocados pelo necromante imitam um ser consciente evocado no outro caminho (3).

Este fato, diga-se de passagem, demonstra que alguns fenômenos idênticos entre si, podem diferir completamente em suas causas profundas; e aqui se acha uma das razões pelas quais, do ponto de vista iniciático, convém não conceder nenhum valor a tais fenômenos, porque, quaisquer que fossem, nada podem provar a respeito da questão da pura espiritualidade.

Dito isto, podemos precisar os limites dentro os quais a “contra-iniciação” é suscetível de opor-se à verdadeira iniciação: é evidente que estes limites são os do ser humano com suas múltiplas modalidades; dito de outra maneira, a oposição não pode existir senão no domínio dos “pequenos mistérios”, enquanto que o dos “grandes mistérios”, que se refere aos estados supra-humanos, está por sua mesma natureza além de tal oposição, pois este está inteiramente fechado a tudo o que não é conhecido como verdadeiro na iniciação, segundo a ortodoxia tradicional  (4).

Ao que se refere aos pequenos mistérios, haverá, entre a iniciação e a “contra-iniciação”, esta diferença fundamental: numa, não será mais que uma preparação para os grandes mistérios; na outra, se tornarão forçosamente como um fim em si mesmos, ao estar proibido o acesso aos “grandes mistérios”. Entretanto, podem ter muitas outras diferenças com um caráter mais específico; mas não entraremos aqui nestas considerações, de importância muito secundária do ponto de vista no qual nos situamos e que exigiriam um exame detalhado de toda a variedade de formas que pode se revestir a “contra-iniciação”.

Naturalmente, pode ser que possam constituir-se centros nos quais estarão conectadas as organizações que dependem da “contra-iniciação”; mas se tratará de centros unicamente psíquicos, e não de centros espirituais, ainda que aqueles possam, em razão do que indicávamos mas acima como ação das influências correspondentes, tomar, mais ou menos, completamente suas aparências exteriores.

Por outra parte, não haveria de surpreender-se de que esses próprios centros, e não somente algumas das organizações que lhes estão subordinadas, possam encontrar-se, em muitos casos, em luta uns com os outros, porque o domínio no qual se situam é aquele no qual todas as oposições se dão em livre curso, quando não são harmonizadas e reconduzidas à unidade pela ação direta de um princípio de ordem superior.

Disto resulta, pelo que concerne às manifestações desses centros ou dos que deles emanam, uma impressão de confusão e de incoerência que não é ilusória; eles não se põem de acordo mais que negativamente, e assim se pode dizer, para uma luta contra os verdadeiros centros espirituais, na medida em que estes se mantenham em um nível que permita que uma luta assim ocorra, ou seja, segundo o que acabamos de explicar, no que se refere ao domínio dos “pequenos mistérios” exclusivamente.

Tudo o que se refere aos “grandes mistérios” está isento de tal oposição; e, com maior razão, o centro espiritual supremo, fonte e princípio de toda iniciação, não poderia ser alcançado ou afetado em algum grau por nenhuma luta que fosse (e por isso se lhe chama “inacessível à violência”); isto nos leva, todavia, a precisar  outro ponto que é de uma importância muito particular.

Os representantes da “contra-iniciação” têm a ilusão de opor-se à autoridade espiritual suprema, na qual nada pode opor-se em realidade, pois é bem evidente que então não seria suprema: a supremacia não admite nenhuma dualidade, e uma suposição assim é contraditória em si mesma; mas a ilusão deles vem de que não podem conhecer sua verdadeira natureza.

Podemos ir mais longe: apesar de tudo, sem saber, eles estão, na realidade, subordinados a essa autoridade, do mesmo modo que, como dizíamos precedentemente, tudo está, mesmo que inconsciente e involuntariamente, submetido à Vontade divina, e nada pode subtrair-se disso.

São, pois, utilizados, por mais que não queiram, na realização do plano divino no mundo humano; jogam nele, como todos os demais seres, o papel que convém à sua própria natureza, mas no lugar de serem conscientes deste papel como o são os verdadeiros iniciados, se enganam a si próprios, e de uma forma que é pior que a simples ignorância dos profanos, posto que, no lugar de deixá-los de certo modo no mesmo ponto, esta tem por resultado deixá-los mais longe do centro principal.

Mas, considerando-se as coisas, não com respeito a estes próprios seres, mas sim em relação ao conjunto do mundo, deve-se dizer que, igual a todos os demais, eles são necessários no lugar que ocupam; no entanto, os elementos desse conjunto, e como instrumentos “providenciais”, se diria em linguagem teológica, da marcha do mundo em seu ciclo de manifestação; estão pois, numa última instância, dominados pela autoridade que manifesta a Vontade divina ao dar a este mundo sua Lei, e que o faz servir, apesar disto, para seus fins, devendo concorrer necessariamente em todas as desordens parciais da ordem total.

Mesr, 11 Ramadâ 1351 H. [1933].

NOTAS:
(1). Ver a Autorité spirituelle et pouvoir temporel.

(2). Segundo a doutrina islâmica, é pela nefs (a alma) que Shaitan pode prender o homem, enquanto que pela rûh (o espírito), cuja essência é pura luz, está além de seus ataques; é entretanto por isso porque a “contra-iniciação” em nenhum caso poderia tocar o domínio metafísico, que lhe está proibido pelo seu caráter puramente espiritual.

(3). A este respeito a nossa obra sobre L'Erreur spirite. (4). Se nos tem reprovado não haver tido em conta a distinção entre os “pequenos mistérios” e os “grandes mistérios” quando falamos das condições da iniciação; sucede que esta distinção não tem que intervir; então, já que considerávamos a iniciação em geral, e que de outra parte não há nela, mas que diferentes estados ou graus de uma só e mesma iniciação.

Artigo publicado em “Le Voile d'Isis” e não recopilado posteriormente. Parte do conteúdo foi retomado no Reino da quantidade e os signos dos tempos, cap. XXXVIII.

Se uma Ordem contra-iniciática se aproximasse de você e lhe propusesse filiação, você saberia, à luz desta lição, distingui-la de uma organização séria e identificar os riscos à sua vida?


FONTE: GUÉNON, René. Iniciação e contra-iniciação. Disponível em: < http://rosacruzes.blogspot.com.br/2015/04/iniciacao-e-contra-iniciacao.html>. Acesso em: 29 jun. 2015.

INICIAÇÃO E CONTRA-INICIAÇÃO




Por Julius Evola

29 — Inversão do gibelinismo — Considerações finais

Uma vez que as nossas pesquisas também tiveram em consideração as interferências entre organizações iniciáticas e correntes históricas, é oportuno dizer qualquer coisa — a título de conclusão — acerca das relações existentes entre aquilo a que nós chamámos a “herança do Graal”, ou seja, o alto gibelinismo, e as sociedades secretas dos tempos modernos, particularmente aquelas que, a partir do Iluminismo, se definiram sob a forma de Maçonaria. Deveremos, evidentemente, limitar-nos aqui ao essencial.

Já na chamada seita dos Iluminados da Baviera encontramos um exemplo típico dessa interferência de tendências a que há pouco nos referimos e que resulta da mesma mudança de significado experimentada pelo termo “Iluminismo”. Originalmente, este termo correspondia à ideia de uma iluminação espiritual supra-racional; mas, progressivamente, ele tornou-se sinónimo de racionalismo, de teoria da “luz natural”, de anti-tradição. Pode-se falar, a este respeito, de um uso falsificado e “subversivo” do direito próprio do iniciado, do adepto. O iniciado, se o é verdadeiramente, pode colocar-se para além das formas históricas contingentes de uma tradição particular, pode acusar – se para tanto receber o mandato as suas limitações e libertar-se da sua autoridade; ele pode negar o dogma porque está na posse de algo superior, o conhecimento transcendente, cuja inviolabilidade ele conhece a um nível totalmente diverso; pode, finalmente, reivindicar para si a dignidade de um ser livre, uma vez que se libertou dos laços da natureza inferior, humana: sob esta perspectiva, os “livres” são também os “pares” e a sua comunidade pode ser concebida como uma “confraria”. Pois bem, basta materializar, laicizar e democratizar estes aspectos do direito iniciático e traduzi-los em termos individualistas, para se obter imediatamente os princípios-base das ideologias subversivas e revolucionárias modernas. A luz da razão humana pura sucede à “iluminação” e dá lugar às destruições do “livre exame” e da crítica profana. O sobrenatural é banido ou confundido com a natureza. A liberdade, a igualdade e a paridade tornam-se aquelas que são reivindicadas de um modo prevaricador pela simples “consciência da sua dignidade” — mas não, contudo, consciência da sua escravidão perante si própria — para se erguer contra toda a forma de autoridade e se constituir ilusoriamente como razão suprema: dizemos ilusoriamente uma vez que, no encadeamento inexorável das várias fases da decadência moderna, o individualismo teve a duração de uma breve miragem e de um falso entusiasmo, tendo em breve o elemento colectivo e irracional na época das massas e da técnica tido consciência do indivíduo “emancipado”, ou seja, desenraizado e sem tradição.

Ora, a partir do séc. XVIII, surgem precisamente grupos, paralelos às chamadas societés de pensée, que ostentam um carácter iniciático, enquanto se entregam mais ou menos directamente a esta obra revolucionária e “reformista” de “iluminismo” e de racionalismo (1). Alguns destes grupos eram efectivamente a continuação de organizações anteriores de tipo regular e tradicional. Assim, deve-se pensar, a esse respeito, num processo de involução levado até a um ponto no qual, em função do afastamento do princípio animador original destas organizações, pode realizar-se uma verdadeira e própria inversão de polaridade: influências de uma ordem totalmente diversa inseriram-se e actuaram em organismos que, mais ou menos, representavam o cadáver ou a sobrevivência automática daquilo que eles tinham sido anteriormente, utilizando e dirigindo as suas forças numa direcção oposta àquela que tinha sido normal e tradicionalmente a sua (2). No prólogo de “José Bálsamo” de A. Dumas, que é algo mais do que uma pura fantasia (porque utiliza dados recolhidos no processo desta personagem), encontramos um chefe que se apresenta como um Grão-Mestre Rosa-Cruz e que, numa reunião secreta de “iniciados” vindos de todos os países, dá como palavra de ordem L.D.P. (as iniciais de lilia destrue pedibus — isto é: destrói e calca aos pés a Casa de França). Esta cena pode ser considerada como um reflexo do clima próprio das lojas e das reuniões dos Iluminados e de grupos afins, os quais promoveram aquela “revolução intelectual” que deveria, finalmente, desencadear a onda das revoluções políticas, de 1789 a 1843 (3).

Mas a dualidade contraditória dos dois temas — ou seja, por um lado, as sobrevivências do ritualismo hierárquico simbólico e iniciático e, por outro lado, a profissão de ideologias completamente opostas às que nós poderíamos deduzir de uma doutrina iniciática autêntica — é sobretudo evidente na Maçonaria moderna. Esta Maçonaria parece ter sido positivamente organizada no período dos rumores rosa-crucianos e quando os verdadeiros “Rosa-Cruz” deixaram a Europa. Elias Ashmole, que se diz ter tido um papel fundamental na organização da primeira Maçonaria inglesa, viveu entre 1617 e 1692. Contudo, segundo a maior parte dos autores, a Maçonaria, na sua forma actual de associação semi-secreta militante, não remonta para além de 1700 (4) — foi em 1717 que teve lugar a fundação da Grande Loja de Londres. Como antecedentes positivos, não fantasiados, a Maçonaria teve sobretudo as tradições de certas corporações medievais, nas quais os elementos principais da arte de construir, de edificar, eram simultaneamente tomados num sentido alegórico e iniciático. Deste modo a “construção do Templo” podia tornar-se sinónimo da “Grande Obra” iniciática, o desbaste da pedra bruta em pedra esquadriada podia aludir à tarefa preliminar de formação interior, e assim por diante. Podemos afirmar que, até ao princípio do séc. XVIII, a Maçonaria conservou este carácter iniciático e tradicional, e foi por isso, em relação à tarefa de uma acção interior, que ela foi chamada “operativa” (5). Foi em 1717 que, com a referida fundação da Grande Loja de Londres e com o aparecimento da chamada “Maçonaria especulativa” continental, se verificaram a substituição e a inversão de polaridade, a que já fizemos referência. Por “especulação” devemos entender, com efeito, a ideologia iluminista, enciclopedista e racionalista, ligada a uma correspondente interpretação desviada dos símbolos. A actividade da organização concentrou-se claramente no plano político-social, embora utilizando sobretudo a táctica da acção directa e manobrando com influências e sugestões, cuja origem era dificilmente identificável.

Pretende-se que esta transformação se tenha verificado apenas nalgumas lojas e que as outras tenham conservado o seu carácter iniciático e operativo, mesmo depois de 1917. Com efeito, este carácter pode ser encontrado nos ambientes maçónicos a que pertenceram um Martinez de Pasqually, um Claude de St. Martin e o próprio Joseph de Maistre. Todavia, devemos ter em conta que esta mesma Maçonaria, por sua vez, numa fase de degenerescência, uma vez que se revelou impotente perante a afirmação da outra e esta última acabou, praticamente, por a dominar. Nem tão pouco se constatou, por parte da Maçonaria que teria permanecido iniciática, qualquer acção para desafiar e desacreditar a outra, para condenar a actividade político-social e para impedir que, por toda a parte, ela se apresentasse própria e oficialmente como a verdadeira Maçonaria.

Se considerarmos, portanto, a Maçonaria “especulativa”, constatamos que, nela, os vestígios iniciáticos ficaram limitados a uma superestrutura ritual que, na Maçonaria de Rito Escocês, apresentou muitas vezes, nos diferentes graus que se seguem aos três primeiros (os únicos que têm uma relação efectiva com as tradições corporativas anteriores) um carácter inorgânico e sincretista, tendo sido recolhidos símbolos das tradições iniciáticas mais diversas, obviamente para criar a aparência de ter recolhido a herança de cada uma delas. Deste modo encontramos também nesta Maçonaria vários elementos da iniciação cavaleiresca, do hermetismo e da “Rosa-Cruz”: nele figuram “dignidades” como a de “Cavaleiro d'Oriente”, de “Príncipe Adepto”, de “Dignitário do Sacro Império”, de “Cavaleiro Kadosh” (ou seja, em hebraico, “Cavaleiro Santo”), equivalente a “Cavaleiro do Templo”, de “Príncipe Rosa-Cruz”. Em geral – e este ponto tem para nós um significado especial — existe, por parte da Maçonaria de Rito Escocês, uma particular pretensão em se reclamar precisamente da tradição templária. Assim, ela pretende que pelo menos sete dos seus graus sejam de origem templária, para além do 30.°, formalmente designado num grande número de lojas como o de Cavaleiro do Templo. Uma das jóias do grau supremo de toda a hierarquia (o 33.°) uma cruz teutónica contém a sigla J. B. M., que é quase sempre explicada pelas iniciais de Jacopus Burgundus Molay, que foi o último Grão Mestre da Ordem do Templo, surgindo também “De Molay” como um “santo-e-senha” deste grau: como se aqueles que nela são iniciados retomassem a dignidade e a função do chefe da Ordem gibelina destruída. A Maçonaria escocesa pretende, aliás, que muitos dos seus elementos lhe tenham sido transmitidos por uma organização mais antiga, conhecida como “Rito de Heredom”. Esta expressão é traduzida por vários autores maçónicos como “rito dos herdeiros”, entendendo-se precisamente por isso os herdeiros dos Templários. A lenda correspondente é que os raros Templários sobreviventes se teriam refugiado na Escócia, onde se puseram sob a protecção de Robert Bruce; por este foram agregados a uma organização iniciática pré-existente de origem corporativa, que então assumiu o nome de “Grande Loja real de Heredom”.

É fácil ver o alcance que teriam essas referências, especialmente naquilo a que nós chamámos “a herança do Graal”, se elas tivessem um fundamento real: elas forneceriam à Maçonaria um título de ortodoxia tradicional. Mas, na realidade, as coisas apresentam-se de uma maneira totalmente diversa. É de uma usurpação que se trata; não é uma continuação mas sim uma inversão da tradição anterior que aqui deve ser constatada. Isto revela-se de um modo característico se considerarmos no seu conjunto o referido 30.° grau do Rito Escocês que, nalgumas lojas, tem como palavra de ordem: “A vingança dos Templários”. A lenda que a isto se refere retoma o tema acima indicado: os Templários que teriam encontrado refúgio em certas organizações inglesas, nelas teriam criado este grau com a intenção de reorganizar a sua Ordem e de realizar a sua vingança. Ora a referida inversão do gibelinismo não poderia encontrar uma expressão mais clara do que neste comentário do ritual: “A vingança templária abateu-se sobre Clemente V, não no dia em que os seus ossos foram deitados ao fogo pelos Calvinistas da Provença, mas no dia em que Lutero sublevou metade da Europa contra o Papado em nome dos direitos da consciência. E a vingança abateu-se sobre Filipe o Belo, não no dia em que os seus restos foram atirados para o meio dos dejectos de S. Dinis por uma população em delírio, nem tão pouco no dia em que o último descendente revestido do poder absoluto saiu do Templo, na condição de prisioneiro do Estado, para subir ao patíbulo, mas sim no dia em que a Constituição francesa proclamou, diante dos tronos, os direitos do homem e do cidadão” (6). O facto de, em seguida, o nível acabar por descer do plano do indivíduo — o “homem” e o “cidadão” — ao plano das massas anónimas e dos seus dirigentes mascarados, resulta de uma história relacionada com o ritual de vários graus no Rito Escocês do Supremo Conselho da Alemanha, ela figurava no 4.° grau, o grau chamado “Mestre secreto”. Trata-se da história de Hiram, o construtor do Templo de Jerusalém, o qual, perante o rei sacral Salomão, demonstra ter um poder tão prodigioso sobre as massas que “o rei, que tinha fama de ser um dos maiores Sábios, descobriu que, para além da sua, existe uma potência maior, uma potência que, no futuro, se ela chegar a conhecer a sua própria força, exercerá uma soberania maior do que a sua (isto é de Salomão). Esta potência é o povo (das Volk)”. E acrescenta-se: “Nós, maçons de Rito Escocês, vemos em Hiram a personificação da humanidade”. Ora o rito, fazendo-os “Mestres secretos”, deveria conferir aos iniciandos maçons a própria natureza de Hiram, ou seja, deveria torná-los participantes deste poder misterioso de mover a humanidade enquanto povo, enquanto massa, poder que destituiria mesmo o próprio poder do rei sacral simbólico.

Quanto ao grau especificamente templário (o 30.°), convém notar ainda, no seu rito, a confirmação da associação do elemento iniciático com o elemento subversivo anti-tradicional, o que confere necessariamente ao primeiro as características de uma autêntica contra-iniciação, onde quer que o próprio rito não se reduza a uma cerimónia vazia, mas mobilize forças subtis. No grau em questão, o iniciado que derruba as colunas do Templo e calca aos pés a cruz, sendo em seguida admitido no Mistério da escada ascendente e descendente com sete degraus, é aquele que deve jurar vingança e concretizar ritualmente esse juramento, atingindo com um punhal a Coroa e a Tiara, isto é, os símbolos do duplo poder tradicional, da autoridade real e da autoridade pontifícia, exprimindo com isto o sentido de quanto a Maçonaria, como força oculta da subversão mundial, favoreceu no Mundo Moderno, partindo da preparação da Revolução Francesa e da constituição da Democracia americana, passando pelos movimentos de 48, até chegar à Primeira Guerra Mundial, à revolução turca, à revolução de Espanha e a outros acontecimentos análogos (6a). Enquanto no ciclo do Graal, como vimos, a realização iniciática é concebida de tal maneira que a ela se liga a intenção de fazer ressurgir o rei, no rito que acabámos de indicar encontramos precisamente o contrário, ou seja, a imitação de uma iniciação que se liga ao juramento (por vezes com a fórmula: “A vitória ou a morte”) de combater ou destruir qualquer forma de autoridade do alto.

De qualquer modo, o que mais nos interessa destas considerações é determinar o ponto em que a “herança do Graal” e de tradições iniciáticas análogas se detém e no qual, para além de eventuais sobrevivências de nomes e de símbolos, já não podemos constatar qualquer filiação legítima. No caso específico da Maçonaria moderna, por um lado o seu confuso sincretismo, o carácter artificial da hierarquia de grande parte dos seus graus — carácter evidente mesmo para um profano —, a banalidade das exegeses correntes, moralistas, sociais e racionalistas aplicadas a diferentes elementos retomados pela Maçonaria, com um conteúdo efectivamente esotérico — tudo poderia contribuir para que nela se visse um exemplo típico de organização pseudo-iniciática (7). Mas se considerarmos, por outro lado, a “direcção de eficácia” da organização em questão, em relação aos elementos acima referidos e à sua actividade revolucionária, surge a sensação precisa de estarmos perante uma força que, no campo do espírito, actua contra o espírito: uma força obscura de anti-tradição e de contra-iniciação. E então é muito possível que, nestas condições, os seus ritos sejam menos inofensivos do que se poderia pensar e que, muitas vezes, sem que aqueles que neles participam se dêem conta disso, eles estabeleçam precisamente o contacto com esta força, inacessível para a consciência vulgar.

Uma última observação. Na lenda do 32.° grau do Rito Escocês (“Príncipe Sublime do Segredo Real”) trata-se muitas vezes da organização e da inspecção de forças (concebidas como estando reunidas em vários “acampamentos”) que, uma vez conquistada “Jerusalém”, aí deverão construir o “Terceiro Templo”; Templo que se identifica com o “Sacro Império”, enquanto “Império do Mundo”. Ora discutiu-se muito a propósito dos chamados “Protocolos dos Sábios de Sião”, que contêm o mito de um minucioso plano de conjura contra o mundo europeu tradicional. É intencionalmente que empregamos a palavra “mito”, pretendendo deste modo deixar em aberto a questão da veracidade ou da falsidade desse documento, muitas vezes explorado por um vulgar anti-semitismo (8). O que acontece na realidade é que este documento, tal como vários outros publicados aqui e ali, tem um valor sintomático, uma vez que os principais acontecimentos da História contemporânea que se verificaram depois da sua publicação, revelaram uma impressionante concordância com o plano nele descrito. Em geral, escritos semelhantes reflectem a obscura sensação da existência de uma “inteligência” orientadora por detrás dos factos mais característicos da subversão moderna. Portanto, qualquer que seja a finalidade prática da sua divulgação ou, no caso de serem falsos e inventados, da sua compilação, eles recolheram “algo que existe no ar” e que a história vai, pouco a pouco, confirmando. Ora nos “Protocolos” vemos precisamente reaparecer a ideia de um futuro império universal e de organizações que trabalham subterraneamente para o seu advento (9). Mas aqui trata-se de uma contrafacção a que poderemos chamar satânica, porque aquilo que está efectivamente em primeiro plano é a destruição e o desenraizamento de tudo o que é tradicional, valores da personalidade e verdadeira espiritualidade. O suposto Império é a concretização suprema da religião do homem tornado terrestre, que fez de si mesmo a razão extrema e que tem Deus por inimigo. É o tema com que parece deverem concluir-se o “declínio do Ocidente” de Spengler e a idade obscura – kali-yuga – da antiga tradição hindu.

* * *

A título de conclusão, será oportuno fornecer algumas indicações acerca da razão de ser deste livro.

A nossa finalidade não foi, evidentemente, juntar um novo contributo à numerosa série dos ensaios crítico-literários consagrados aos assuntos aqui tratados. Neste campo, o nosso livro poderá ter, quando muito, o valor de mostrar a fecundidade do método ao qual, por oposição ao método das pesquisas académicas correntes, chamamos “tradicional” (10).

Um objectivo mais específico respeitou à determinação da natureza do conteúdo espiritual da matéria examinada. Quanto a isso, o presente livro liga-se a vários outros por nós escritos com a intenção de acusar as deformações que os símbolos e as doutrinas tradicionais têm sofrido por parte de autores e correntes dos tempos modernos. Ao longo da nossa exposição aludimos, por exemplo, a propósito do ciclo do Graal, à falsificação do seu espírito e dos seus temas devida a Richard Wagner. Chegou-se a um ponto tal que, se o grande público ainda sabe alguma coisa do Graal, de Parsifal e de tudo o resto, sabe-o unicamente em relação ao modo arbitrário, deturpado e mistificador com que a obra musical de Wagner apresentou a saga, com base numa incompreensão fundamental: incompreensão que, aliás, ele demonstrou igualmente na utilização de muitos temas da antiga mitologia nórdico-germânica no seu “Anel dos Nibelungos”.

A mesma observação aplica-se às interpretações de um certo espiritualismo, o qual, muitas vezes influenciado pelo wagnerismo e desprovido de todo o conhecimento sério e directo das fontes, retomou de uma forma diletante o ciclo do Graal nos termos de um pretenso “esoterismo cristão”, recamando-o de fantasias de toda a espécie, em grupinhos e conventículos. Mostrámos, pelo contrário, que os temas fundamentais do Graal não são-cristãos e pré-cristãos e vimos também a que ordem tradicional de ideias, inspiradas pela espiritualidade real e heróica, eles se ligam. No ciclo em questão, os elementos cristãos são unicamente secundários e de cobertura; eles derivam de uma tentativa de adaptação que jamais conseguiu alcançar aquilo que corresponde a uma substancial heterogeneidade de inspiração. Tal como noutros casos, também aqui o esforço de fabricar um “esoterismo cristão” inexistente deve ser considerado desprovido de qualquer fundamento.

Apresentado como um pretenso Mistério cristão, falta, pois, ao Mistério do Graal a relação essencial e particular com uma missão e com um ideal que, como vimos, ultrapassam um plano puramente iniciático e se apresentaram também no Ocidente no interior de um determinado ciclo histórico.

A isto corresponde um outro objectivo do presente estudo, que deve parecer bastante claro ao leitor depois das últimas considerações por nós expostas a propósito da involução do gibelinismo. Hoje desceu-se tão baixo, que a palavra “gibelinismo” é novamente utilizada e surge mesmo nas polémicas políticas para designar a defesa do direito de um Estado “laico”, “moderno” e aconfessional, contra as ingerências da Igreja católica e de partidos de tendências clericais no campo político, social e cultural. Esperamos que o conjunto da nossa exposição tenha posto em evidência da maneira mais clara que se trata aqui de um dos casos mais lamentáveis da perda do significado original de um termo. Na sua essência, o gibelinismo não passou de um ressurgimento do ideal sacral e espiritual –  nas vias, mesmo iniciáticas, por nós indicadas – da autoridade própria do chefe de uma organização política de carácter tradicional, portanto exactamente o oposto de tudo aquilo que é “laico” e, no sentido degradado moderno, político e estatal (11).

Podemos interrogar-nos se o facto de apresentar à luz este conteúdo do gibelinismo, do reino do Graal e do Templarismo terá hoje um sentido diferente do de restabelecer a verdade perante as referidas incompreensões e falsificações. A resposta a essa questão deve permanecer indeterminada. Já no simples domínio das ideias, o carácter da cultura hoje dominante é tal, que a maior parte dos nossos contemporâneos não podem sequer formar uma ideia daquilo de que se trata. Em relação ao resto, só uma pequena minoria poderia compreender que, do mesmo modo que as Ordens ascético-monásticas realizaram uma missão fundamental no caos material e moral que se seguiu à queda do Império Romano, também uma Ordem, nos termos de um novo Templarismo, seria de importância decisiva num mundo que, tal como o actual, apresenta formas bastante mais avançadas de dissolução e de desordem interior do que aquela época. O Graal conserva o valor de um símbolo no qual foi superada a antítese entre “guerreiro” e “sacerdote”, e, assim, também o equivalente moderno dessa antítese, ou seja, as formas materializadas e, neste caso, bem podemos dizer luciféricas, telúricas ou titânicas da vontade de poder, por outro lado, e, do outro, as formas “lunares” da religião sobrevivente de fundo devocional e de confusos impulsos místicos e neo-espiritualistas em direcção ao sobrenatural e ao além.

Se nos limitarmos a considerar o indivíduo e alguns indivíduos, o símbolo mantém sempre um valor intrínseco, indicativo de um determinado tipo de formação interior. Mas passar daqui para o conceito de uma Ordem, de um Templarismo moderno, e acreditar que, mesmo que este pudesse tomar forma, ele estaria em condições de influenciar directa e sensivelmente as formas históricas gerais hoje dominantes e processos já irreversíveis, é bastante arriscado. Já os Rosa-Cruz – os Rosa-Cruz autênticos – no século XVIII, julgaram vã uma tal tentativa. É por isso que, mesmo aquele que tivesse recebido a “espada”, deve esperar para a empunhar, podendo o momento certo ser unicamente aquele em que as forças com as quais não foi ainda medida a cadeia, encontrarão um limite, em função de um determinismo intrínseco, e um ciclo se fechar – o momento em que, perante situações existenciais extremas, um instinto desesperado de defesa brotando do mais profundo (poderíamos dizer: da “mémoire de sang”) eventualmente galvanize e dê força a ideias e a mitos ligados à herança de tempos melhores. Antes que isso suceda, pensamos que um possível Templarismo pode apenas revestir um carácter defensivo interior, em relação à tarefa de manter inacessível a simbólica – mas não só simbólica – “cidadela solar”.

Isto esclarece o significado último e não desprovido de importância que pode ter um estudo sério e empenhado dos testemunhos e dos temas da saga templária e do alto gibelinismo. Com efeito, compreender e viver esses temas significa penetrar num campo de realidades supra-históricas e, desse modo, alcançar gradualmente a certeza de que o Centro, invisível e inviolável, o soberano que deve despertar, o próprio herói vingador e restaurador, não são fantasias de um passado morto mais ou menos romântico, mas sim a verdade daqueles que, sozinhos, nos nossos dias, podem legitimamente chamar-se vivos.


REFERÊNCIAS

(1) – Por um mero acaso — graças a documentos encontrados na posse de um correio, morto por um raio — também se obtiveram provas positivas de uma acção revolucionária organizada, levada a cabo pela seita dos Iluminados.

(2) – Sobre o mecanismo deste processo, na sua analogia com uma acção necromática, cf. R. Guénon, Le règne de la quantité et les signas des temps, Paris, 1945, cap. XXVI, XXVII.

(3) – A sigla L.D.P. aparece no primeiro dos chamados graus cavaleirescos maçónicos (o 15.° da hierarquia do Rito Escocês). Obscuramente, parece que a lenda deste grau faz alusão ao deslocamento da função do iniciado; nela se fala, com efeito, de marcas de dignidade principesca que o iniciando recebe de Ciro juntamente com a liberdade, mas que depois perde; tendo, contudo, chegado junto do Mestre que se refugiara entre as ruínas do templo salomónico com alguns fiéis sobreviventes, ele aprende o duplo valor destes símbolos e recebe, com a espada, um novo título.

(4) – Cf. A. Pike, Morals and Dogmas of the ancient and accepted Scotch rite, Richmond, 2ª. ed., 1927.

(5) – Convém observar que, já no seu período operativo e iniciático se revela, na Maçonaria, uma certa usurpação, quando ela refere a si própria a “Arte Régia”. A iniciação ligada aos ofícios corresponde, com efeito, ao antigo Terceiro Estado (a casta hindú dos vayça), ou seja, a estratos hierarquicamente inferiores à casta dos guerreiros, a que corresponde legitimamente a “Arte Régia”. Além disso, convém ainda referir que foi a acção revolucionária da Maçonaria especulativa moderna que minou a civilização do Segundo Estado e preparou, com as democracias, as civilizações do Terceiro Estado. Em relação ao primeiro ponto, mesmo sob a perspectiva mais exterior, é difícil escapar a uma impressão de comicidade perante as fotografias de reis ingleses que, enquanto dignitários maçónicos, usam o avental e outros símbolos das corporações de artífices.

(6)  Ritual do XXX grau do Supremo Conselho da Bélgica do rito escocês antico e aceite, Bruxelles, s. d., pp. 49, 50. Na acção dramática ritual faz-se aparecer Squin de Florian, aquele que teria denunciado os Templários e que, como justificação, afirma o princípio: “A Igreja está acima da liberdade” ao que o Mestre da loja replica: “A liberdade está acima da Igreja”. Evidentemente, a primeira proposta está certa se se tratar da pretensão à liberdade por parte de qualquer indivíduo, enquanto a segunda é verdadeira se se tratar de alguém que tenha a qualificação necessária para passar além das limitações próprias de uma forma histórica particular de autoridade espiritual.

(6a) – Em relação a tudo isto ler “História da Franco-Maçonaria em Portugal”, de Borges Grainha, e “Para a História da Maçonaria em Portugal”, de António Carlos Carvalho, publicada nesta colecção. (A.C.C.).

(7) – É surpreendente encontrarmos num autor como René Guénon, aliás tão qualificado no domínio dos estudos tradicionais, a afirmação de que, para além das associações de operários, a Maçonaria seria quase a única organização actualmente existente no Ocidente que, apesar da sua degenerescência, “pode reivindicar uma origem tradicional autêntica e uma transmissão iniciática regular” (Aperçus sur l'initiation, Paris, 1946, pp. 40, 103). O diagnóstico correcto que considera a Maçonaria como um sincretismo pseudo-iniciático sustentado por forças subterrâneas de contra-iniciação, diagnóstico que pode ser formulado a partir da perspectiva do próprio Guénon, é mais ou menos contestado por ele (cf. ibid., p. 201). Não se compreende bem como é que isso se pode conciliar com o carácter de tradicionalidade que Guénon reconhece, simultaneamente, ao Catolicismo, inimigo moral da Maçonaria moderna. De um ponto de vista mais particular, um desconhecimento deste género é igualmente perigoso, pois fornece armas preciosas a uma polémica católica interessada. A mistificação e o uso subversivo do Mistério que se produziu, através de um fenómeno de inversão, nas correntes já citadas e nomeadamente na Maçonaria, numa época recente (ainda que, anteriormente, ele não passasse de uma anomalia teratológica), serviu de apoio a uma tese extravagante do Catolicismo militante: aquele segundo a qual toda a tradição iniciática teria tido, em todas as épocas, um carácter tenebroso, diabólico, anti-cristão e, pelas suas consequências, subversivo. Trata-se, evidentemente, de uma brincadeira de mau gosto. Mas não será esta tese porventura sustentada por aqueles que, de ânimo leve, atribuem à Maçonaria um carácter de ortodoxia e de filiação iniciática autêntica?
Gostaríamos que o leitor não supusesse da nossa parte a menor animosidade preconcebida em relação à Maçonaria. Pessoalmente, mantivemos relações amigáveis com alguns dos seus altos expoentes que se esforçaram por valorizar os seus vestígios iniciáticos e tradicionais. Nesse sentido trabalharam também, por ex., Ragon, A. Reghini, O. Wirth. Sabemos, além disso, da existência de certas lojas, como a Johannis Loge e outras, que se mantiveram afastadas da actividade político-social, apresentando-se essencialmente como centros de estudos. Mas, por amor da verdade, não poderíamos modificar em ponto algum o quadro geral da Maçonaria moderna, que aqui apresentámos do ponto de vista histórico, tendo em consideração a direcção predominante, efectiva e comprovada, da sua acção.

(8) – Nos “Protocolos dos Sábios de Sião” supõe-se que os fios da conjura se encontrem nas mãos do hebraismo, mas faz-se igualmente referência à Maçonaria. Outro ponto que é posto em relevo em relação à Maçonaria é que os elementos por ela recolhidos de tradições propriamente ocidentais passam quase para segundo plano quando confrontados com os elementos hebraicos — a maior parte das “lendas”, assim como quase todas as “senhas”, têm origem hebraica. Este é outro ponto suspeito. Com efeito, mesmo no conjunto do hebraismo, podemos contatar um processo de degradação e de inversão que despertou, igualmente, forças de contra-iniciação ou de subversão anti-tradicional. Essas forças talvez tenham desempenhado um papel não descurável na história secreta da Maçonaria.

(9) – Convém observar, de passagem, que a obra revolucionária da Maçonaria permanece essencialmente limitada à preparação e à consolidação da época do Terceiro Estado (que deu lugar ao mundo do capitalismo, da democracia, da civilização e da sociedade burguesas). A última fase da subversão mundial, uma vez que corresponde ao advento do Quarto Estado, relaciona-se com outras forças que vão necessariamente além da Maçonaria e do próprio Judaísmo, embora se tenham servido, muitas vezes, das destruições favorecidas por uma e pelo outro. É significativo que as actuais vanguardas da época do Quarto Estado tenham escolhido o símbolo do pentagrama, a estrela de cinco pontas, como estrela vermelha dos Sovietes. O antigo símbolo mágico do poder do homem enquanto iniciado e dominador sobrenatural símbolo que consagra igualmente a espada do Graal — torna-se, por inversão, o símbolo da omnipotência e do demonismo do homem materializado e colectivizado no reino do Quarto Estado.

(10) – Em relação à edição alemã do presente livro (Geheimnis doe Grais, München, 1954), esse mérito já foi reconhecido: cf. W. Heinrich, Ueber die traditionelle Methode (Salzurg, 1954).

(11) – Sobre o gibelinismo em relação com a temática política actual, cf. o nosso livro Gli uomini e le rovine (Roma, 3.a ed. 1971).


FONTE: EVOLA, Julius. O mistério do Graal. Lisboa: Vega,1976. p. 241-256.

HEGEL ON JACOB BOEHME



Por Hegel

[TRANSLATED FROM  HEGEL'S  HISTORY  OF  PHILOSOPHY,  BY  EDWIN  D.  MEAD.]

I.

From  Lord  Bacon,  the English lord  chancellor,  and  the chief leader  of all  external, sensuous philosophizing, we  turn  to  the Philosophus  Teutonicus,  as  he was  called,  to  the  shoemaker  of Lusatia – a man  of whom  we  Germans  need  not  be  ashamed. It was, indeed, through him that philosophy first appeared in Germany with a distinctive German character.  He  stands  in the directly  opposite extreme  to Bacon,  and  was  called  Theosophus  Teotonicus,  even  as formerly  Mysticism was  called Philosophia  Teutonica.

This  Jacob  Boehme  was long  forgotten, and was  decried  as  a pietistic  visionary. The period of enlightenment, especially, limited the number of his students.  Even  Leibnitz  esteemed  him highly; but  not  until  more  recent  times  has  he again been duly  honored,  and  has  the profundity of  his thought  again become acknowledged. It  is  certain  that,  on the  one  hand,  he  does  not  deserve  that  old contempt;  but neither,  on  the other  hand,  is he entitled  to  that high honor  to which  the present has sought to elevate  him.  To call him a visionary signifies nothing. If one pleases, one  can  call every philosopher  so,  including  Epicurus and  Bacon; for even  these have  held  that man  has  his  true reality in something other  than eating and drinking, or  the every-day life of hewing  wood,  or making  clothes,  or buying and selling.

As  to  the high honor to which  Boehme  has  been  elevated,  he  owes  it especially to his  form  of contemplation and  sentiment;  for contemplation and  inward feeling,  praying and longing, the figurative  style of thinking,  allegorizing, and  the  like, are  held by some  to  be the genuine form of philosophy. But it is only in the idea, in thought, that philosophy has its truth – that  the  absolute  can be expressed, or  that  indeed  it is,  as  it  is  in  itself.  On this side Boehme  is  a perfect barbarian – a man nevertheless, who,  along with  his  crude  mode  of representation,  possesses a concrete,  deep heart.  Since  he  has  no method, or order,  it is difficult  to give a presentation of his philosophy.

Jacob  Boehme  was  born  in  1575,  in Old Seidenberg, near Goerlitz,  in Upper Lusatia.  His parents were poor peasants, and in his boyhood he herded cattle.  He was brought up in Lutheranism, to which he always adhered.  The biography which accompanies his work was written by a clergyman, who knew him personally. We find much in this biography concerning the various agitations  through which  he  arrived  at deeper  perception. Even  as  a  herdsman  on  the  pastures, as he  relates  of  himself,  he  had  most  wonderful  visions.  The first wonderful  vision  came  to him  in a thicket,  in which  he saw  a  cavern  and  a  box  of money.  Startled this splendor, he was inwardly awakened out of dull stupidity; but the vision did not reappear. He was afterwards apprenticed to a shoemaker.  It was chiefly  through the  text (Luke  XI, 13), “Your Father in Heaven shall give the Holy Spirit to them that  ask Him”, that he was roused to the thought that  in order to know the truth he should, in simplicity of spirit, earnestly and continually pray, seek  and  knock, until he, then on his wanderings with  his master, should, through the passing of  the Father  into the Son according to  the Spirit, be carried over into the holy Sabbath and glorious day of rest of souls, and that thus his prayer should be answered. Thereupon (according to his own account,) he “was surrounded with  divine light, and  remained  for  seven days in the highest divine  contemplation and fulness of joy”. His  master  dismissed  him on  this account,  with  the  remark  that  he  could  not  afford  to keep a prophet with  him.  After  this  he  lived  in Goerlitz. In  1594  he  became  a master  shoemaker,  and  married.  Later, “in the  year  1600,  in  the twenty-fifth  year of  his age”, the light  appeared to him again in  a  second  vision,  of  the  same sort  as  the  first. According to  his  own  account,  he  saw  a brightly  polished  pewter vessel  in the  chamber,  and “through the  sudden sight of the lovely,  jovial lustre” of  the metal,  he was  conducted (in a fit of abstraction,  and  in the  entrancement of  his  astral spirit) “to  the  central point of  secret  Nature”, and  into the  light  of the Divine  Being. “He  went  out  before the gate and  into the fields,  in order to drive  this vision out of his head, and yet he experienced the feeling none the  less, but rather longer, stronger, and  clearer;  so that,  by means  of the imparted signs or figures, outlines  and  colors,  he  could,  as  it were, see into the heart and innermost  nature  of  all things (which  position, so strongly forced upon him, he also maintains and glorifies in his book De Signatura  Rerum), on  account  of which he overflowed  with great joy, thanked  God, and  turned peacefully to his domestic  affairs”.  Later he wrote many works.  He  remained  in Goerlitz,  working at  his trade,  and  there,  in  1624,  he  died.

His  works  have  received special  attention  from  the Dutch, and  therefore  most  of  the  editions  have  been published in Amsterdam,  though  reprinted in Hamburg. His  first work was  the “Aurora”; or, “The Morning Red  in  its Rising”, which was followed by many others; that  entitled “On  the Three Principles”, and  another, “On  the Threefold Life  of Man”, are among those  which  are  worthiest  of  attention. Boehme constantly read the Bible. What other works he read is not known. Very  many  points in his works  prove,  however, that  he  had  read  much,  and especially  mystic,  theosophic, and alchemistic writings; partly, at any  rate,  the works  of Theophrastus Paracelsus  Bombastus,  of Hohenheim – a philosopher of something the  same  sort  as Boehme  himself,  but  peculiarly diffuse  in his writings, and  without  Boehme’s deep feeling. Boehme  was  often persecuted  by the clergy, but  he caused  less  sensation  in Germany than  in Holland  and England,  where  his  works  have  been published in many  forms. His writings make  a strange  impression  upon  the  reader,  and one  must  be  familiar  with  his  ideas  in  order  to  find  the  true meaning in the exceedingly confused  form  of  their expression.

The  content  of Jacob  Boehme’s philosophizing is thoroughly German;  for  that  which distinguishes him  and  makes  him worthy of  attention  is  the  Protestant principle,  already referred  to,  of placing the  intellectual  world  in  the  individual mind – of viewing, and knowing, and  of feeling in the  self consciousness  that which  before  was regarded as  external.  The general idea  of Boehme's  shows  itself thus, on  the  one  hand, deep and  fundamental; on  the  other  hand,  however,  he does not,  with  all  his  desire  and struggle after  determination  and distinction  in  the  universe,  arrive  at  clearness  and  order. There is no coherent system, but the greatest confusion in his distinctions even in  his  “Table”,  wherein  three  numbers appear:
I.

What  God  is, apart  from Nature  and Creation.

II.





Separableness,
God  in Love.

Mysterium Magnum

The  I. Principium, God  in Wrath.



III.

God  in Wrath  and Love.

There  is  no positive determination  of moments  here; we only have  the  sense  of struggle;  now  it is this  distinction,  and now  that, which  is  laid  down; and  as  the  distinctions  are separately referred  to,  they run  one  into  another.

The  manner  and  method  of his presentation  must,  therefore, be  called  barbaric.  The  modes  of expression in his  works prove  this; as when,  for  instance,  he speaks of  the  divine salitter,  the mercurius,  and  so  forth.  As  Boehme places the life,  the movement  of  absolute Being, in  the  soul,  so  he  also views  all conceptions in an actuality; or  he  uses  actualities  as conceptions  (that  is, natural things and  sensible qualities arbitrarily, instead  of definitions) to represent his  ideas.  For  instance,  sulphur and  the  like  mean,  with  him,  not  the things that we  so  name,  but  their  essence; or  a  certain conception has  this specific form  of reality. Boehme is most deeply interested in the  idea,  and struggles  sorely with  it.  The  speculative  truth which  he wishes  to represent,  requires, in order  to make  himself comprehended,  essentially  thought and  the form  of thought.  Only in thought can  this unity, in whose central point his spirit  stands,  be comprehended, but  it is precisely the  form of thought which  he  lacks.  The forms which he uses are essentially no categories of thought.  They are  on the  one  side  sensible, chemical determinations;  such qualities as harsh,  sweet,  sour, grim; or feelings such as anger, love; or tincture,  essence,  pain, etc.  These  sensuous forms,  however, do not have with him their peculiar sensuous significance; but he  uses  them  in order  to give words  to  his thoughts. It is at once apparent how arbitrary this  mode  of presentation must be,  since only  thought is capable of unity. Thus  it  seems strangely  confusing when  we  read  of  the  bitterness  of God, of lightning, etc.  We must have the idea beforehand, and then, indeed, we may find  it figured in  these strange similes.

The  second point is  that  Boehme  uses  as  form  of  the idea  the, Christian  form,  particularly the  form  of  the Trinity, which  was  that which lay nearest  to him.  The sensuous form and the religious form of imaging, of sensuous pictures and representations, he strangely mixes together. Crude  and  barbarous  as  this  is, on  the  one  hand,  and  hard  to endure by those who  persevere  in reading Boehme  and try  firmly to  hold  his thoughts (for one's  head  is kept  whirling with “qualities”, “spirits”,  “angels”), it must nevertheless be recognized that these pictures and representations  speak out  of his reality – out of his  soul.  This rough,  deep  German  mind,  that deals with  the  innermost,  exercises,  peculiarly  indeed,  a  tremendous might and  power to use reality as  a conception,  and  to keep about  him  and  within  him  whatever  goes on  in Heaven.  As Hans  Sachs,  in  his  manner,  has represented the Lord  God, Christ,  and  the Holy Ghost  as  common  citizens  like  himself, and  has  treated  in the  same  manner  the angels and patriarchs, instead  of taking them  as bygone and  historic beings,  just so Boehme.

In  the eyes of  faith  spirit has  truth,  but  in  this  truth  the moment  of certainty is lacking. That the subject of Christianity is truth, or the spirit, we have seen.  This is given to faith as immediate truth.  But  faith has  it unconsciously, without knowledge, without knowing it  as  self-consciousness; and  since  in  self-consciousness  the thought, the  conception, is essential – Giordano Bruno’s unity of opposites – faith lacks precisely this unity. It’s moments fall apart as separate forms, particularly its highest moments the good and the evil, or God and the Devil.  God is, and so is the Devil; both are for themselves.  If  God,  however,  is  the absolute Being, the question arises:  What  absolute Being is  this  to which  all reality, and especially the  evil,  does  not appertain? Boehme is therefore compelled  partly to conduct the  soul of man to divine life, to place this  life  in  the  soul itself,  to regard the  strife as one in the soul,  and  to make  it the soul’s own work and  endeavor; and partly, for that very ground, to  show  that  the  evil  is  contained  in  the good – a problem which  also agitates our  own time.  But  as  Boehme has next got hold of  the  idea,  and  is  in  so  far  behind  in  the culture of thought, this process  appears as a fearful,  painful struggle of  his soul and consciousness with language; and  the object of  this struggle is  to  obtain the profoundest idea  of God, which may  bring together and bind in one the most absolute opposites – not, however, for thinking reason. If one may so express  it, Boehme struggles (since to him God is all) to  conceive  the negative – the  evil,  the  devil – in and  from God, to comprehend God  as  absolute; and  this struggle characterizes  his  entire writings, and  is the  travail  of  his  soul.  It is a tremendous,  wild,  crude  effort of  the  inner being to bind together  things that  in  form  and  appearance are  so  far  from one  another.  In  his strong soul Boehme brings both together, and  in that  act  breaks  to pieces all  that  immediate  appearance of reality which  both  possess.  When,  however,  he  conceives this movement,  this spiritual nature  in  itself  thus internally, the  definition  of  the moments approaches, after  all,  simply nearer  to  the  form of  self-consciousness – of  the  idea  devoid of  sensuous  form.  The  speculative  thought  stands, indeed,  in the background; but it does not come to its proper  representation. Popular crude  methods  of representation are employed; a perfect looseness  of speech  appears,  which  to  us  seems  vulgar. With  the  devil  Boehme  has especially much  to do,  and he  addresses  him  often.  “Come here”,  he  says,  “thou Black-Jack.  What wilt  thou?  I will write  for  thee  a prescription”.  Shakespeare's  Prospero, in the Tempest,  threatens  Ariel  that  he  will  cleave  an  oak  and peg him  in  the knotty entrails  for  a  thousand  years;  thus  Boehme's great soul  is pegged in  the  hard,  knotty oak  of  the sensuous, imprisoned in the knotty, hard growth of  the imagination, without being able  to  come  to  the free representation of  the  idea.

I will briefly indicate  Boehme's  main  ideas,  and  then point out  several separate forms  in which  he  revels; for he  does  not abide  in one  form,  since  neither  the  sensuous  nor  the religious suffices  him. Although he copiously  repeats  himself,  the forms  of  his main representations are  still everywhere different,  and  students  will  be  deceived  who  undertake  to give a systematic  development of Boehme's representations,  especially as they advance  in their  task.  One must expect in Boehme neither a systematic representation nor an accurate management of particulars.  One cannot speak much of his thoughts without assuming his own form of expression and quoting directly concerning particulars, for otherwise it is impossible to express his thoughts. The fundamental idea of Jacob Boehme is the struggle to maintain all things in an absolute unity. He  desires to  exhibit  the  absolute,  Divine unity, and  the  union  in God  of all  antitheses.  His main thought – one may indeed say his only thought, that  which  runs through all his works – is to conceive in all things the Holy  Trinity; to recognize all things as its revelation and representation, so that it  is the universal principle in which and through which all is; and this in this way: that all things have only this divine Trinity in themselves, not as a trinity of the imagination, but as the reality of the absolute idea. All that exists is, according to Boehme, only this Trinity; this Trinity is all. The  universe  is thus  to him  one divine  life, and a universal  revelation of God; so that from the one essence  of God, the source of all powers and qualities,  the  Son  is eternally born – the Son who is manifested  in those  powers;  and  the  inner unity of  this light with the  substance  of  the powers  is the spirit. The representation is no darker, now clearer. What  follows  is  the explication of  this Trinity; and here especially  appear  the  various  forms which  he uses to denote the distinction which occurs in the Trinity.

In  the  “Aurora”,  the “Root, or Mother  of Philosophy, Astrology, and Theology”, Boehme attempts a  classification, in which  he places these  sciences  side by  side,  yet without clear  distinctions,  simply  passing over  from one  to  the other. “(1.) In Philosophy he treats of the divine power, what  God is, and how, in the being of God, nature, the stars, and the elementa are made; whence all things have their origin; how heaven and  earth are made; also, angels, men, and devils, heaven and hell, and all  that is created; also, what the two qualities in nature are, in the impulse and  actions  of God. (2.) In Astrology, the  powers of  nature,  the  stars  and  the elements  are treated;  and  how  from  these  all  creatures  have proceeded; how good and  evil  are wrought,  through  them,  in men  and  animals. (3.) Under Theology he  treats  the kingdom of Christ;  how  this  is conditioned; how  it is opposed to the kingdom of  hell; also,  how  it struggles in nature  with  the kingdom of  hell”.

1.  The  First  is God,  the Father.  This  First  has  at  the  same time  a  distinction  within  itself,  and  is  the unity of  the  distinction. “God  is all”,  he says. “He  is darkness  and light, love  and anger, fire and light; but He  calls  Himself  alone  one God,  after  the light of His  love.  There  is an  eternal  contrarium  between  darkness  and light; neither  holds  the other,  and neither  is the other; and yet there  is but  one single  Being  only with  the Qual – torture – in  distinction;  so  with  the  will, there being,  however, no separable  Being.  Only one principium divides  this:  that  one  is  in the  other  as  a nothing, and nevertheless  is;  but according to  its quality, wherein  it is not manifest”. By the Qual  (“torture”) is expressed that which is  absolute, even  the  self-conscious,  felt negativity, the  self-determining  negative, which  is  therefore  absolute  affirmation. Around  this point all  of Boehme's  efforts turn;  the principle of conception is  in  him throughout  alive,  only he  cannot  express  it in the form of thought. All depends upon this:  to think the negative as simple, when it is at the same time an opposite. Thus  the  torture  is  this  inner self-opposition, and yet at  the  same  time  the simple. From  this  word Qual  (torture) Boehme  derives Quellen  [sources] – a  good play  upon  words;  for  the Qual  (torture) – this  negativity passes  into vitality,  activity   and  thus  he brings it also together with Qualitat  (quality). The absolute identity of the  different  is everywhere  present with  him.

a. Thus  Boehme  does  not represent  God  as  an empty  unity, but  as  the self-dirempting  nity of  the absolutely  opposed. The First One, the Father, has at the same time  the manner of natural existence. Concerning this, he speaks thus: that God is the simple Essence; quite like Proclus.  This simple Essence he calls the Hidden; he defines it also as the Temperamentum – that unity of differences in which all is tempered. We find, too, in this connection, much about the great salitter – now the divine, now the salitter of nature – also called salniter. When be discourses about this great salitter as of something known, one does not immediately understand what he means. It is, however, a cobbler-like murder of the words sal nitri, i.  e., saltpetre (which, in Austria, is  still  called salniter). This figures thus the neutral and truly universal Being; this is the  divine splendor. In  God  is  a splendid  nature – trees, plants, etc. “In  the divine splendor, two things are especially to  be  considered:  the  salitter,  or  the  divine  powers, which produce all  fruit,  and  the mercurius,  or  sound”.  This great salitter  is  the  unrevealed Being, even  as  the New  Platonic unity is without  self-cousciousnes,  and  so equally unknown.

b. This first substance contains all powers or qualities, as not yet differenced; so then this salitter appears as the body of God, which contains all qualities in itself. Quality is a main idea, and the first determination with Boehme; and he begins with the qualities in his work, “The Morning Red in its Rising”. With  the quality he  also  after wards brings  together  inqualiren  (inqualitize), and  there says: “Quality is the mobility, the Quallen  (pain), or  unrest of  a thing”. These qualities he  then  defines,  but  it is  an  obscure representation: “It is as  the  heat,  which  burns, consumes,  and  drives  out  all  that  comes  into  it which  is not  of  its own quality. On  the  other  hand,  it lights and warms  all  that  is cold,  wet,  and  dark,  and  makes  the soft  hard.  But  it has  two species in  itself,  namely,  light and rage”  (negativity); “the light the heart  of  the heat is  a lovely,  joyful  sight, a power  of  life, a part, or  a  source  of  the heavenly  joy; for  it makes everything in  this world  alive  and moving. All  flesh, as  well  as  all  trees,  foliage, and grass,  grow in  this world by the  power  of light, and  have  life  therein, as  in  the good. On the other hand, it possesses  rage, which  burns,  consumes, and rains.  This rage swells, drives, and uplifts itself in the light, and causes the light to move. They struggle and fight with each other in their twofold source.  The light exists  in God  without  heat,  but  it does  not  exist  in  nature;  for  in nature  all qualities are  one  in another,  according to kind  and manner. Even as God is everything, God” (the Father) “is the heart”, says Boehme.  In another place (in the work on the “Threefold Life of Man”) he says “the Son is the heart of God”. Again, the spirit is also called the heart, “or fountain of nature; from Him proceeds everything”.  Now,  heat rules  in  all  forces  of  nature,  and  warms  them  all  and  is  a source  in  all.  The light in the heat, however, gives to all qualities the power that  makes  them lovely and delightful. Boehme  enumerates  a whole  list of qualities:  cold,  hot,  bitter, sweet,  raging,  harsh,  hard,  rough  qualities,  Sound,  etc. “The  bitter quality is also  in God,  yet not  after  the  same  sort and  manner,  as gall is in man.  It is rather an eternally continuing force, a great triumphing source of joy. Out  of  these qualities all  creatures  are made,  and they come  thence  and live  therein  as  in their mother”.
“The powers of the stars are nature.  All things in this world originate from the stars.  That  I  will  prove  to  thee,  if thou  art  not  a blockhead,  and  hast  but  a  little  reason.  If one considers  the  whole curriculum, or the  entire  circle  of  the still's, one soon finds that it is the mother of all things, or nature, out of which all things have grown, and in which all things stand  and  live, and through which all things have their movement; and  all things are made out of the same forces, and continue therein eternally”.  Thus, we say, God is the reality of all realities. Boehme continues: “Thou must  here, however, lift up  thy feeling in the spirit, and consider how entirely  nature,  with all the powers which are in nature the wide, the deep, the high, Heaven, earth, and all that therein are, and that are above the Heaven – are  the body of God; and how the powers of the stars are the chief  arteries in the natural body of God in this world.  Thou  must  not  think  that in the  corpus of  the stars  the entire triumphant  Holy  Trinity – God  the Father,  Son,  and Holy Ghost –  exists.  But  this  is not  to be  thus  understood  that He  is not  at  all  in the  corpus of  the  stars  and  in  this world.  Here,  then,  is the question: Whence  does  Heaven  obtain  or  take  these  forces,  that  it produces  such mobility in  nature?  And  here  must  thou  look/above  and  outside  of  nature  into  the holy  light,  triumph ant,  divine  power – into  the unchangeable,  holy  Trinity, which  is  a triumphant,  originating,  moving  Being; and  all powers are therein, as  in  nature.  Therefrom  have  Heaven, earth,  stars,  elementa,  devils,  angels,  men,  animals,  and every thing  risen,  and  therein everything has  its  stand.  Thus  we call  Heaven  and  earth,  the  stars  and  elements,  and  all  that therein  is,  and  all  that  is  above  the  heavens – GOD;  who thus,  in these  many  enumerated beings, in  the  power  which proceeds from Him,  hath  made  Himself a  creature”.

c. Again, Boehme  defines  God,  the  Father, as  follows: “When,  now,  we  consider  all  nature  and  its qualities, we see the  Father;  when  we  view  he Heaven  and  the  stars,  we see His  eternal  power  and  wisdom.  Thus  many stars  twinkle under  the Heaven,  innumerable; thus great and  varied  are  the powers and  wisdom  of  God,  the  Father. Every star has its own quality. Thou  must  not,  however, “think  that every power  that  is  in the Father occupies a  certain part  and place in the Father, as  the  stars  in the Heaven.  No! But the spirit shows that all powers in the Father are in one another, as one power”. This  whole  is the  universal  power  in general, which exists  as God, the Father,  in which  the  differences  are united; but  it exists createdly as  the totality of  the  stars,  therefore  as diremption into  the different qualities. “Thou  must  not  think that God  in Heaven,  and  above  the Heaven,  stands,  as  it were, and  undulates  as  a power  and quality, which  has  no  reason and knowledge in  itself –  as  the sun, which courseth through its circle  and  sheds  from  itself warmth  and light, which bring alike  harm  and help to  the  earth  or  the creatures.  No! Thus is not the Father.  He  is  an almighty,  all-wise,  all-knowing, all-seeing,  all-hearing,  all-smelling,  all-tasting  God,  who  is  at the  same  time  in Himself gentle,  friendly,  lovely, merciful,  and joyful – yea, is joy itself”.



FONTE: HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Jacob Boehme. Edwin D. Mead (trad.). In The Journal of Speculative Philosophy. vol. 13, n. 3 (July, 1879), pp. 269-280. Disponível em: <http://www.jstor.org/stable/25667761?seq=1#page_scan_tab_contents>. Acesso em: 28 jun. 2015.