terça-feira, 7 de fevereiro de 2023

ANÁLISE DO TEXTO “UMA MORALIDADE SEM ÉTICA”

 


Por João Florindo Batista Segundo

 

No capítulo 1 do livro Vida em fragmentos: sobre ética pós-moderna, Zygmunt Bauman debruça-se sobre a ética, que é um dos problemas filosóficos desde os primórdios do pensar humano. E no seu entender, não basta descrever as condutas dos indivíduos, mas avaliá-las. Quando se dá a análise, trabalha-se a etnoética, o estudo dos juízos de valor de cada povo.

Ética vai mais além, consolidando-se como código de leis que regula o comportamento considerado universalmente correto. Por consequência, as pessoas que se dedicam a seu estudo passam à condição de autoridades, que relegam a segundo plano as pessoas do povo que buscam tratar do tema. Para Bauman, os fundamentos éticos estão acima dos hábitos variáveis do cotidiano de algumas pessoas.

Em geral, as pessoas continuam agindo tal qual aqueles que as cercam e continuam a fazer assim até que alguém ou alguma força as impeçam de continuar neste proceder. As proposições são reiteradamente afirmadas, pelo que se tornam realidades, porém, com o tempo, cada um busca sua própria realidade. Assim, a ética não consegue efetivar seu projeto de tudo prescrever, pois as relações humanas não podem ser contidas em meras regras, vez que evoluem diuturnamente.

 
 

Sociedade: a operação de acobertamento

 

Baseado na ideia de caos de Elżbieta Tarkowska, Bauman descreve um estado de permanente convulsão, de um estado sem estrutura, lembrando que a socióloga teve dificuldade de inserir tal conceito nas ciências sociais, que é resistente a acréscimos e mais ainda a aceitar a existência deste caos social. E no seu entender, por não suportar este caos, a sociedade realiza uma grande e contínua operação de acobertamento, para camuflar o fato de que nós, enquanto indivíduos e sociedades, nunca somos plenamente realizados. E a operação é a própria sociedade, a qual tem sido bem sucedida, ao nos fazer pensar que o caos ao invés de regra é exceção.

É o novo que nos desconcerta e o entendimento de pequenas partes nos leva à ânsia de compreender o todo, à busca de um sentido. Por outro lado, crendo num sentido transcendente, o homem canaliza para o além a responsabilidade pelo agora e assim tem a quem responsabilizar pelas áreas da realidade que não domina (“sim, há um responsável pelos fenômenos além de nossas limitações: Deus”). A religião e a metafísica que lhe dá supedâneo são essenciais à vida social, embora ambas sejam desprovidas de sentido.

O Deus pessoal (teísmo) é necessário para afugentar o caos, porém ao se usar o genuflexório em seu louvor, a transitoriedade e brevidade da vida são descuradas. Difícil encarar o caos sem Deus por perto.

Questionar o status quo (sociedade atrelada à religião) já foi dissidência (a exemplo das críticas de Schopenhauer e Nietzsche), porém, hoje, é quase ortodoxia.

 
 

Enfrentar o não enfrentável

 

Embora estejamos de pé agora para enfrentar o caos, Bauman é realista ao afirmar que as tentativas de se estabelecer fundamentos éticos para a moral não tiveram ou terão êxito, pelo que não há sentido em legislar sobre a moralidade alheia.

Todavia, a aceitação da inexistência de um Deus a exigir padrões morais choca-se para alguns com a possibilidade de uma anarquia total, pela entrega de cada um às suas paixões pessoais. Mas isso não impede, pela falta da base moral, do edifício social ser construído, demolido e reconstruído no curso da sociabilidade, muito embora seja ainda um mistério o esclarecer as consequências disto.

Ou ainda, agora é que a sociedade está se desvelando da “auto-ocultação” da verdade de sua autoconstituição.

Esta é a agonia da sociedade autônoma, para a qual era mais fácil ser conduzida, a se conduzir. É a difícil tarefa da sociedade contemporânea: estabelecer os parâmetros de convivência que lhe dão existência e lhe deem continuidade.

  
 

Tecendo o véu

 

Nesta parte, Bauman critica os “sacerdotes” da ciência, que, como Nietzsche fala, substituíram os ídolos da religião por novos, com ênfase na ciência, na razão e na história como norteadoras da explicação de todas as coisas, ousado projeto que se mostrou irrealizável pelas agruras que a humanidade se auto-infligiu, especialmente no último século.

No advento deste novo paradigma, prometia-se um maravilhoso futuro, que não chegou. E por consequência, a modernidade entrou numa luta constante para demonstrar que tal progresso estava por vir, que sua “crença” nele não estava errada. E a globalização que se seguiu ao progresso da ciência permitiu que a Europa imprimisse a todo o orbe esta visão.

Da ocultação migra-se agora para o conceito de fronteira: as nações mais poderosas economicamente percebem as subdesenvolvidas como além de sua realidade, de seu mundo ideal, o que lhe traz maior autoconfiança e certeza de estar no rumo certo (“estamos bem melhor que eles”).

Porém, a progressiva emergência de algumas nações outrora marginalizadas causou um enfraquecimento no projeto de auto-ocultação. Passamos da modernidade à pós-modernidade.

 
 

O véu perfurado

 

A modernidade caminhou de uma visão universal para global: ou seja, abandonou o outrora propalado projeto de universalidade da derrota das paixões e superstições por seres autônomos e racionais. O que importa hoje é que todos, em todos os lugares, apesar de suas diferenças econômicas e visões deturpadas de mundo, estejam submetidos às regras de mercado.

O caos e a contingência falam mais alto que os projetos dos antigos filósofos: todos buscam mais e melhor para si, numa competição indiferente à razão.

As racionalidades locais que proliferaram impediram o reinado da ordem racional universal.

Porém, segundo Bauman, citando Jon Bailey, a pós-modernidade ainda possui utopias: a capacidade de cicatrização do livre mercado (ventilada pelos neoliberais) e a infinita capacidade da solução tecnológica para todos os problemas (sociais, políticos e morais). Para ele, são soluções anarquistas, por pensarem direitos sem a contrapartida de deveres e por depositarem a confiança numa razão ausente a guiar sem timoneiro o futuro da humanidade. O único planejamento da pós-modernidade é o familiar.

 
 

O véu rasgado

 

Bauman rasga o véu, fazendo uma análise sociológica da humanidade, tendo em vista que o mesmo é sociólogo. Ele começa dizendo que a imprensa aleija todo o compromisso ético, porque o que mais importa pra mídia não é mostrar a notícia tendo consciência de ser ético ou moral ou não, o que importa é se é notícia. Disso resulta uma cegueira generalizada, sem perspectiva de uma relação alternativa, como se fosse sintoma de fadiga sem cautela ética.

Para ele, a ética parece brotar de incertezas, inseguranças; quantos aos méritos de operação na forma especificamente moderna pela qual era antes realizada, essa operação não conseguiu garantir o “progresso ético” que era esperado; é como se o remédio para curar a doença não fosse atraente, ou seja, não servisse à finalidade para a qual foi criado.

Analisando a sociedade e as ações éticas, Bauman rasga o véu e coloca-se diante de uma liberdade, ou seja, de abrir-se ao conhecimento e não viver só de regras, mas, sim, termos uma liberdade de pensar e refletir sobre a sociedade, mesmo que se colida com os detentores do poder. Pois para ele, o político moderno surgiu como uma “cortina de fumaça” para intenções ocultas; assim, a mobilidade social é uma mentira porque os indivíduos não estão em operação de escolher a sua posição na sociedade.

Bauman sempre foi interessado em política: seu primeiro confronto contra a autoridade pública ocorreu quando desafiou o Partido Comunista polonês, na década de 1950, por causa de sua burocracia e seu cruel esmagamento dos críticos.

 
 

Moralidade sem ética

 

A grande pergunta nesta moralidade sem ética é se a moralidade ética estaria com os dias contados? Pois vivendo neste mundo moderno, neste mundo em que não se vive mais o preceito ético, nesta modernidade relativizada, estaríamos testemunhando a “morte da ética” e a transição para a nova era do pós-dever, onde se cumprem as regras não por uma ética ou uma moral, mas por um dever, uma obrigação. Uma outra grande pergunta é: será que a ética, no tempo do pós-moderno, está sendo substituída pela estética? Pois hoje há quem se preocupe mais com estética do que com a ética e a moral.

Para muitos, pós-modernismo traz a “liberdade” de padrões morais, liberta do dever que desarma a moral da responsabilidade. Como aos que se satisfazem em buscar o que está na moda, Bauman apresenta aqui um estudo da perspectiva pós-moderna da ética. Para o sociólogo, os grandes temas da ética não perderam nada de sua força: ele sugere que precisam ser revistos e tratados de modo inteiramente novo, ou seja, por meio deles dar um outro sentido ao que estamos vivenciando hoje; pode ainda representar uma alvorada e não um entardecer para a ética. No cerne do estudo de Bauman está sua visão da pós-modernidade como modernidade sem ilusões, emancipada da falsa consciência, das aspirações irreais e dos objetivos irrealizáveis. O pensador polonês caracteriza nossa nova época como “ré encantamento” do mundo, devolvendo dignidade às emoções e legitimidade ao inexplicável. Livres da prisão da modernidade, podemos agora nos confrontar com a capacidade de ética humana sem ilusões. Embora tudo isso não torne a vida moral mais fácil, diz Bauman, podemos ao menos sonhar em torná-la um pouco mais ética.

 

REFERÊNCIA:
ZYGMUNT, Bauman. Vida em fragmentos: sobre ética pós-moderna. Rio de Janeiro: Zahar, 2011.

Disciplina: Ética, 2014

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