Por
João Florindo Batista Segundo
No capítulo 1 do livro Vida em fragmentos:
sobre ética pós-moderna, Zygmunt Bauman debruça-se sobre a ética, que é um
dos problemas filosóficos desde os primórdios do pensar humano. E no seu
entender, não basta descrever as condutas dos indivíduos, mas avaliá-las.
Quando se dá a análise, trabalha-se a etnoética, o estudo dos juízos de valor
de cada povo.
Ética vai mais além, consolidando-se como
código de leis que regula o comportamento considerado universalmente correto.
Por consequência, as pessoas que se dedicam a seu estudo passam à condição de autoridades,
que relegam a segundo plano as pessoas do povo que buscam tratar do tema. Para
Bauman, os fundamentos éticos estão acima dos hábitos variáveis do cotidiano de
algumas pessoas.
Em geral, as pessoas continuam agindo tal qual
aqueles que as cercam e continuam a fazer assim até que alguém ou alguma força as
impeçam de continuar neste proceder. As proposições são reiteradamente afirmadas,
pelo que se tornam realidades, porém, com o tempo, cada um busca sua própria
realidade. Assim, a ética não consegue efetivar seu projeto de tudo prescrever,
pois as relações humanas não podem ser contidas em meras regras, vez que
evoluem diuturnamente.
Sociedade: a operação de
acobertamento
Baseado na ideia de caos de Elżbieta Tarkowska,
Bauman descreve um estado de permanente convulsão, de um estado sem estrutura,
lembrando que a socióloga teve dificuldade de inserir tal conceito nas ciências
sociais, que é resistente a acréscimos e mais ainda a aceitar a existência
deste caos social. E no seu entender, por não suportar este caos, a sociedade
realiza uma grande e contínua operação de acobertamento, para camuflar o fato
de que nós, enquanto indivíduos e sociedades, nunca somos plenamente
realizados. E a operação é a própria sociedade, a qual tem sido bem sucedida,
ao nos fazer pensar que o caos ao invés de regra é exceção.
É o novo que nos desconcerta e o entendimento
de pequenas partes nos leva à ânsia de compreender o todo, à busca de um
sentido. Por outro lado, crendo num sentido transcendente, o homem canaliza
para o além a responsabilidade pelo agora e assim tem a quem responsabilizar
pelas áreas da realidade que não domina (“sim, há um responsável pelos
fenômenos além de nossas limitações: Deus”). A religião e a metafísica que lhe
dá supedâneo são essenciais à vida social, embora ambas sejam desprovidas de
sentido.
O Deus pessoal (teísmo) é necessário para
afugentar o caos, porém ao se usar o genuflexório em seu louvor, a
transitoriedade e brevidade da vida são descuradas. Difícil encarar o caos sem
Deus por perto.
Questionar o status quo (sociedade
atrelada à religião) já foi dissidência (a exemplo das críticas de Schopenhauer
e Nietzsche), porém, hoje, é quase ortodoxia.
Enfrentar o não enfrentável
Embora estejamos de pé agora para enfrentar o
caos, Bauman é realista ao afirmar que as tentativas de se estabelecer
fundamentos éticos para a moral não tiveram ou terão êxito, pelo que não há
sentido em legislar sobre a moralidade alheia.
Todavia, a aceitação da inexistência de um Deus
a exigir padrões morais choca-se para alguns com a possibilidade de uma
anarquia total, pela entrega de cada um às suas paixões pessoais. Mas isso não
impede, pela falta da base moral, do edifício social ser construído, demolido e
reconstruído no curso da sociabilidade, muito embora seja ainda um mistério o
esclarecer as consequências disto.
Ou ainda, agora é que a sociedade está se
desvelando da “auto-ocultação” da verdade de sua autoconstituição.
Esta é a agonia da sociedade autônoma, para a
qual era mais fácil ser conduzida, a se conduzir. É a difícil tarefa da
sociedade contemporânea: estabelecer os parâmetros de convivência que lhe dão existência
e lhe deem continuidade.
Tecendo o véu
Nesta parte, Bauman critica os “sacerdotes” da
ciência, que, como Nietzsche fala, substituíram os ídolos da religião por
novos, com ênfase na ciência, na razão e na história como norteadoras da
explicação de todas as coisas, ousado projeto que se mostrou irrealizável pelas
agruras que a humanidade se auto-infligiu, especialmente no último século.
No advento deste novo paradigma, prometia-se um
maravilhoso futuro, que não chegou. E por consequência, a modernidade entrou
numa luta constante para demonstrar que tal progresso estava por vir, que sua “crença”
nele não estava errada. E a globalização que se seguiu ao progresso da ciência
permitiu que a Europa imprimisse a todo o orbe esta visão.
Da ocultação migra-se agora para o conceito de
fronteira: as nações mais poderosas economicamente percebem as subdesenvolvidas
como além de sua realidade, de seu mundo ideal, o que lhe traz maior autoconfiança
e certeza de estar no rumo certo (“estamos bem melhor que eles”).
Porém, a progressiva emergência de algumas
nações outrora marginalizadas causou um enfraquecimento no projeto de
auto-ocultação. Passamos da modernidade à pós-modernidade.
O véu perfurado
A modernidade caminhou de uma visão universal
para global: ou seja, abandonou o outrora propalado projeto de universalidade
da derrota das paixões e superstições por seres autônomos e racionais. O que
importa hoje é que todos, em todos os lugares, apesar de suas diferenças
econômicas e visões deturpadas de mundo, estejam submetidos às regras de
mercado.
O caos e a contingência falam mais alto que os
projetos dos antigos filósofos: todos buscam mais e melhor para si, numa
competição indiferente à razão.
As racionalidades locais que proliferaram
impediram o reinado da ordem racional universal.
Porém, segundo Bauman, citando Jon Bailey, a
pós-modernidade ainda possui utopias: a capacidade de cicatrização do livre
mercado (ventilada pelos neoliberais) e a infinita capacidade da solução
tecnológica para todos os problemas (sociais, políticos e morais). Para ele,
são soluções anarquistas, por pensarem direitos sem a contrapartida de deveres
e por depositarem a confiança numa razão ausente a guiar sem timoneiro o futuro
da humanidade. O único planejamento da pós-modernidade é o familiar.
O véu rasgado
Bauman rasga o véu, fazendo uma análise
sociológica da humanidade, tendo em vista que o mesmo é sociólogo. Ele começa
dizendo que a imprensa aleija todo o compromisso ético, porque o que mais
importa pra mídia não é mostrar a notícia tendo consciência de ser ético ou
moral ou não, o que importa é se é notícia. Disso resulta uma cegueira
generalizada, sem perspectiva de uma relação alternativa, como se fosse sintoma
de fadiga sem cautela ética.
Para ele, a ética parece brotar de incertezas,
inseguranças; quantos aos méritos de operação na forma especificamente moderna pela
qual era antes realizada, essa operação não conseguiu garantir o “progresso
ético” que era esperado; é como se o remédio para curar a doença não fosse
atraente, ou seja, não servisse à finalidade para a qual foi criado.
Analisando a sociedade e as ações éticas,
Bauman rasga o véu e coloca-se diante de uma liberdade, ou seja, de abrir-se ao
conhecimento e não viver só de regras, mas, sim, termos uma liberdade de pensar
e refletir sobre a sociedade, mesmo que se colida com os detentores do poder.
Pois para ele, o político moderno surgiu como uma “cortina de fumaça” para
intenções ocultas; assim, a mobilidade social é uma mentira porque os
indivíduos não estão em operação de escolher a sua posição na sociedade.
Bauman sempre foi interessado em política: seu
primeiro confronto contra a autoridade pública ocorreu quando desafiou o Partido Comunista polonês, na década de 1950, por causa
de sua burocracia e seu cruel esmagamento dos críticos.
Moralidade sem ética
A grande pergunta nesta moralidade sem ética é
se a moralidade ética estaria com os dias contados? Pois vivendo neste mundo
moderno, neste mundo em que não se vive mais o preceito ético, nesta
modernidade relativizada, estaríamos testemunhando a “morte da ética” e a
transição para a nova era do pós-dever, onde se cumprem as regras não por uma
ética ou uma moral, mas por um dever, uma obrigação. Uma outra grande pergunta
é: será que a ética, no tempo do pós-moderno, está sendo substituída pela
estética? Pois hoje há quem se preocupe mais com estética do que com a ética e
a moral.
Para muitos, pós-modernismo traz a “liberdade”
de padrões morais, liberta do dever que desarma a moral da responsabilidade.
Como aos que se satisfazem em buscar o que está na moda, Bauman apresenta aqui
um estudo da perspectiva pós-moderna da ética. Para o sociólogo, os grandes
temas da ética não perderam nada de sua força: ele sugere que precisam ser
revistos e tratados de modo inteiramente novo, ou seja, por meio deles dar um
outro sentido ao que estamos vivenciando hoje; pode ainda representar uma
alvorada e não um entardecer para a ética. No cerne do estudo de Bauman está
sua visão da pós-modernidade como modernidade sem ilusões, emancipada da falsa
consciência, das aspirações irreais e dos objetivos irrealizáveis. O pensador
polonês caracteriza nossa nova época como “ré encantamento” do mundo,
devolvendo dignidade às emoções e legitimidade ao inexplicável. Livres da
prisão da modernidade, podemos agora nos confrontar com a capacidade de ética
humana sem ilusões. Embora tudo isso não torne a vida moral mais fácil, diz
Bauman, podemos ao menos sonhar em torná-la um pouco mais ética.
Disciplina: Ética, 2014
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