Por Henry David Thoreau
É difícil manter uma dieta e cozinhar de modo
simples e limpo sem ofender a imaginação; mas ela, creio, precisa ser
alimentada quando alimentamos o corpo; ambos deveriam sentar-se à mesma mesa.
No entanto, talvez isso possa ser feito. As frutas comidas com moderação não
precisam nos envergonhar de nosso apetite nem interrompem as ocupações mais
dignas. Mas coloque um condimento a mais em seu prato, e ele irá
envenená-lo. Não vale a pena viver de uma cozinha pesada. A maioria dos
homens sentiria vergonha se fosse flagrada preparando com as próprias mãos um
jantar, fosse de comida animal, fosse vegetal, como é preparado para ele por
outros todos os dias. No entanto, até que isso mude, não seremos civilizados,
e os cavaleiros [sic] e as damas não serão verdadeiramente homens e mulheres.
Isso certamente sugere que mudanças devem ser feitas. Talvez seja inútil
perguntar por que a imaginação não se reconcilia com carne e gordura. Fico
satisfeito que seja assim. Não é vergonhoso que o homem seja um animal carnívoro?
É verdade, ele pode viver e vive, em grande medida, predando outros animais,
mas esse é um costume miserável – como qualquer um que pegue lebres e mate
ovelhas pode descobrir –, e será visto como um benfeitor da raça aquele que
ensinar o homem a se ater a uma dieta mais inocente e saudável. Sejam
quais forem minhas próprias práticas, não tenho dúvidas de que é parte do
destino da raça humana, em seu aperfeiçoamento gradual, deixar de comer animais,
assim como as tribos selvagens deixaram de comer umas às outras quando entraram
em contato com outras mais civilizadas.
Se alguém ouve sugestões mais fracas, mas
constantes, de seu gênio, que certamente são verdadeiras, não sabe a que
extremos, ou mesmo a que insanidade, isso pode levá-lo; no entanto, é daquele
lado, conforme se fica mais resoluto e fiel, que está seu caminho. A objeção
convicta mais suave de um homem saudável, por fim, prevalecerá sobre os
argumentos e os costumes da humanidade. Nenhum homem foi desencaminhado por
seu gênio. Embora o resultado fosse fraqueza no corpo, talvez ninguém possa
dizer que as consequências deveriam ser lamentadas, pois era uma vida em
conformidade com princípios superiores. Se os dias e as noites são acolhidos
com alegria, e a vida emite uma fragrância como flores e ervas aromáticas, é
mais elástica, mais estrelada, mais imortal – esse é seu sucesso. Toda a
natureza é sua felicitação, e você tem motivos para abençoar-se momentaneamente.
Os maiores ganhos e valores estão longe de ser apreciados. Com facilidade
duvidamos de sua existência. Logo nos esquecemos deles. São a realidade
superior. Talvez os fatos mais assombrosos e reais jamais sejam comunicados de
homem para homem. A verdadeira colheita de minha vida diária é de algum modo
intangível e indescritível como as cores da manhã ou da tarde. É um pouco
de poeira de estrelas que pego, um segmento de arco-íris que recolhi.
[...] Fico feliz por ter bebido água por tanto
tempo, pela mesma razão que prefiro o céu natural ao céu de um comedor [sic] de
ópio. Fico feliz em me manter sempre sóbrio; e há infinitos graus de
embriaguez. Creio que água é a única bebida para um homem sábio; vinho
não é um licor tão nobre; e pense arruinar as esperanças matinais com uma
xícara de café quente ou uma noite com uma taça de chá! Ah, como caio baixo
quando sou tentado por eles! Até a música pode ser intoxicante. Causas assim
aparentemente pequenas destruíram Grécia e Roma e destruirão a Inglaterra e a
América. De todas as ebriedades, quem não prefere ser intoxicado pelo ar que
respira? [...]
Quem não obteve às vezes uma satisfação inexprimível
da comida em que o apetite não teve parte? Fiquei entusiasmado ao pensar que
devia uma percepção mental ao sentido comumente grosseiro do paladar, que fora
inspirado pelo palato, que algumas frutas silvestres que comera na costa da
colina alimentaram meu gênio. "Quando a alma não é mestra de si
mesma", diz Tseng-tseu, "a pessoa olha e não vê; ouve e não escuta;
come e não sabe o sabor da comida". Quem distingue o verdadeiro sabor
de sua comida jamais pode ser glutão; quem não sente não pode ser diferente. Um
puritano pode se lançar sobre sua côdea de pão preto com um apetite tão
grosseiro quanto o de um vereador por sua tartaruga especial. Não é a comida
que entra pela boca que contamina o homem, mas o apetite com que ela é
consumida. Não se trata da qualidade nem da quantidade, mas da devoção
aos sabores sensuais; quando o que é comido não é uma provisão para sustentar
nosso animal ou inspira nossa vida espiritual, mas é alimento para os vermes
que nos possuem. Se o caçador gosta de tartarugas-da-lama,
ratos-almiscarados e outros petiscos selvagens, a dama fina se entrega ao gosto
por gelatina feito [sic] de pata de vaca, ou por sardinhas do mar, e eles estão
quites. Ele vai ao açude do moinho, ela, ao pote de conservas. A pergunta é
como eles – como você e eu – podem levar essa vida pegajosa e bestial, comendo
e bebendo.
Nossa vida é toda surpreendentemente moral. Não
há nunca um instante de trégua entre virtude e vício. A bondade é o único
investimento que jamais fracassa. Na música da harpa que tremula ao redor
do mundo está a insistência no que nos faz vibrar. A harpa é o vendedor da
Companhia de Seguros do Universo, recomendando suas leis, e nossa pequena
bondade é a única taxa que pagamos. Embora a juventude por fim se torne
indiferente, as leis do universo não são indiferentes, mas estão para sempre do
lado dos mais sensíveis. Ouça cada zéfiro para alguma reprimenda, pois
certamente estão ali, e quem não escuta é desafortunado. Não podemos tocar uma
corda ou alavancas sem sermos atravessados pelo encanto da moral. Muitos
barulhos incômodos, que vão longe, são tidos como música, uma sátira soberba e
doce sobre a mesquinharia de nossa vida.
Temos consciência do animal em nós, que
desperta na proporção em que nossa natureza superior adormece. É réptil e
sensual, e talvez não possa ser expelido por completo, como os vermes que,
mesmo na vida e na saúde, ocupam nosso corpo. Possivelmente podemos nos afastar
dele, mas jamais mudar sua natureza. Temo que ele tenha certa saúde própria;
que podemos estar bem, mas não puros. [...] Quem sabe que tipo de vida
resultaria se tivéssemos atingido a pureza? Se conhecesse um homem sábio o
bastante para me ensinar a pureza, eu o procuraria imediatamente. "Um
comando sobre nossas paixões, e sobre os sentidos externos do corpo, e bons
atos, são declarados pelos Vedas como indispensáveis na aproximação da mente a
Deus." No entanto, o espírito pode, por enquanto, penetrar e controlar
cada membro e função do corpo e transmutar o que é, em forma, a sensualidade
mais grosseira, em pureza e devoção. A energia gerativa, que, quando estamos
soltos, se dissipa e nos deixa sujos, nos revigora e nos inspira quando estamos
continentes. A castidade é o florescimento do homem; e o que é chamado de
gênio, heroísmo, santidade e coisas assim são apenas os vários frutos que a
sucedem. O homem flui de uma vez para Deus quando o canal da pureza está
aberto. Em turnos, nossa pureza inspira e nossa impureza nos derruba. Abençoado
quem assegura que o animal morre nele dia após dia e que o ser divino se
estabelece. [...]
Toda sensualidade é uma só, embora tome muitas
formas; toda pureza é uma só. É a mesma coisa quando um homem come, bebe,
coabita ou dorme sensualmente. É um só apetite, e apenas precisamos ver uma
pessoa fazer qualquer uma dessas coisas para saber o tamanho de sua
sensualidade. O impuro não pode aguentar nem sentar-se [sic] com pureza. Quando
o réptil é atacado em uma abertura de sua toca, ele se mostra em outra. Se você
quer ser casto, deve ser moderado. O que é castidade? Como um homem pode saber
se é casto? Ele não saberá. Ouvimos sobre essa virtude, mas não sabemos o que
é. Falamos de acordo com o rumor que ouvimos. Do esforço vem a sabedoria e a
pureza; da preguiça, a ignorância e a sensualidade. Uma pessoa suja é
universalmente uma preguiçosa, alguém que se senta ao lado do fogão, que se
prostra sob o sol, que repousa sem estar fatigado. Se você quer evitar a
impureza, e todos os pecados, trabalhe honestamente, ainda que seja limpando um
estábulo. É difícil subjugar a natureza, mas ela precisa ser subjugada.
Que adianta ser cristão se não é mais puro que pagãos, que não se nega mais, se
não é mais religioso? Conheço sistemas religiosos considerados pagãos cujos
preceitos enchem o leitor de vergonha e o provocam a fazer um novo esforço,
ainda que seja meramente realizando rituais.
Hesito em dizer essas coisas, mas não por causa
do assunto – não me importo com quanto minhas palavras são obscenas –, mas
porque não posso falar delas sem demonstrar minha impureza. Falamos livremente
e sem vergonha de uma forma de sensualidade e ficamos em silêncio a respeito de
outra. Somos tão degradados que não podemos falar simplesmente das funções
necessárias da natureza humana. [...]
Todo homem é o construtor de um templo, seu
corpo, para o deus que ele venera, em um estilo puramente seu,
e não pode se safar apenas martelando mármore em vez disso. Somos todos
escultores e pintores, e nosso material é nossa própria carne, nosso sangue e
nossos ossos. Qualquer nobreza logo começa a refinar os traços de um homem,
qualquer mesquinharia ou sensualidade, a embrutecê-los.
Grande texto! Crítica certeira à sensualidade embrutecida. A impressão que tive é que ele tenta comunicar algo difícil, aquela sensação de leveza e de luz que podemos sentir tanto a nível corporal como a nível espiritual. A alimentação é crucial, mas também, como ele mesmo destaca, o cultivo da bondade. A castidade, por sua vez, não é privação vazia e a pureza não tem nada que ver com o puritanismo. Muito bom. Obrigado por postar João!
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