Hermann
Hesse: o guru dos hippies
Por Edgar
Welzel
Nobel de Literatura, Hermann
Hesse é um dos mais importantes escritores alemães do século 20 e sua obra
provoca uma espécie de culto místico. O autor do romance “O Lobo da Estepe”
quis mudar-se para o Brasil e, depressivo, foi paciente de J. B. Lang e de C.
G. Jung
A Floresta Negra, no
Sudoeste da Alemanha, é uma das mais belas regiões do país. A área abrange
quase a metade do Estado de Baden-Württemberg — que, ao Sul, faz limite com a
Suíça e, a Oeste, com a França. A topografia é acidentada com vales, colinas e
montanhas cobertas de densa mata de pinheiros que, ao sol do verão, assumem uma
cor verde-escuro quase beirando ao preto, daí o nome de Floresta Negra. A
Oeste, formando a divisa com a França, serpenteia languidamente o Reno, a mais
importante veia aquática europeia, cujas nascentes têm suas origens nos Alpes
suíços; em seu percurso penetra o território alemão do Sul ao Norte, onde faz
um desvio em direção à Holanda e lá desemboca no rio Maas — formando um
intrincado delta cujos braços espraiam-se no Mar do Norte. A Floresta Negra
estende-se além do Reno, em território francês, onde as árvores são da mesma
família e a cor verde-escuro viceja. O que muda é apenas o nome: os franceses
chamam-na de Floresta dos Vosgues.
Em território alemão, no
coração desta floresta, encontra-se a pequena e pitoresca cidade de Calw, um
nome que soa estranho para os que não vivem na região. A localização geográfica
de Calw, cujas origens datam do ano 1075, também é estranha: a cidade
encontra-se numa depressão. No linguajar corriqueiro, diríamos que Calw
situa-se num buraco. A cidade é cortada pelo Nagold, rio que, em termos de
Brasil, seria considerado riacho. Mesmo assim, o Nagold, no passado certamente
com mais água, teve uma importante função na história da cidade. Até o século 19,
o pequeno rio era a principal via de transporte fluvial para os troncos de
pinheiros da Floresta Negra. Eram amarrados em balsa e transportados via rio
Neckar até ao Reno, de onde seguiam até à Holanda e, não raro, para a
Inglaterra.
Durante quase toda a Idade
Média, Calw foi um grande centro de comércio — com estabelecimentos
manufatureiros de couro, moinhos, serrarias, marcenarias e artesãos de móveis e
de construção de casas do estilo enxaimel, a arquitetura típica da região.
O Sul da Alemanha, a partir
do século 17 até meados do século 20, era fortemente influenciado pelo
pietismo, o maior movimento reformista dentro do protestantismo europeu após a
Reforma Protestante. Os pietistas, profundamente crentes, conservadores e
intransigentes a tudo quanto era novo, levavam o conteúdo da Bíblia ao pé da
letra e eram, por isso, considerados ortodoxos dentro do protestantismo.
Foi neste ambiente que, em 2
de julho de 1877, nasceu e passou a sua infância e parte da adolescência
Hermann Hesse, o mais lido escritor alemão do século 20. Perscrutar a vida
desse autor não é tarefa rotineira e quem a enceta deve estar ciente de que,
caso tiver percepção para os sentimentos mais intrínsecos da alma humana, acaba
perscrutando a si mesmo.
Hermann Hesse não aceitou e
muito menos se conformou com o ambiente no qual nascera e crescera. Muito cedo
deu mostras de rebeldia contra a “camisa de força” que lhe fora imposta pelo
ambiente pietista. No círculo familiar sua rebeldia contra a extremada
religiosidade causou tanto incompreensão quanto preocupação, pois os Hesse, por
gerações, eram crentes convictos, engajados na igreja, em serviços missionários
e na publicação de literatura religiosa.
Portanto, o jovem foi a
primeira ovelha negra de uma linhagem familiar que não conhecia nada além do
sacrifício à religião. Mais tarde, Hermann Hesse registrou em seu diário uma
observação que explica um dos motivos de sua rebeldia adolescente: “Que pessoas
encarem a sua vida como vassalas de Deus e que procurem, isentas de qualquer
impulso egoístico, viver a serviço e sacrifício para com Deus foi uma vivência
da minha juventude que me influenciou profundamente”.
Hermann Hesse foi um homem
que, durante toda a sua vida, teve que lutar contra dúvidas, anseios e
aflições. O ambiente familiar pietista, por ser rígido, serviu de húmus no qual
se desenvolveram seus futuros devaneios psíquicos por meio dos quais acabou
encontrando o seu caminho à literatura. Durante toda a sua vida, Hesse foi um
solitário que não suportava pessoas por muito tempo ao seu redor. Mesmo suas
mulheres — teve três —, só as tolerava a certa distância. Em sua obra “O Lobo
da Estepe” (best seller também no Brasil), Hesse registrou uma frase
elucidativa: “Solidão é independência, com ela eu sempre sonhara e a obtivera
afinal após tantos anos”.
Para compreender a beleza, a
profundidade e o sentido da obra literária de Hermann Hesse é preciso
entranhar-se nos labirintos da alma do autor. É necessário perceber Hermann
Hesse como indivíduo, entender o ambiente em que viveu e conhecer a sua
genealogia. Seus parentes, além de pietistas, tinham ampla cultura humanista.
Sua vida é bem documentada,
o que vale para os seus ancestrais tanto da linhagem paterna, os Hesse, como da
materna, os Gundert. Os bisavós tinham o hábito de guardar todo e qualquer
papel, por mais insignificante que fosse. Cartas, apontamentos, cartões
postais, simples bilhetes — tudo era guardado. O mesmo costume tinham também os
avós e seus pais. Graças a esse cuidado, os registros, documentos e demais
fontes de informações existentes sobre a ascendência de Hesse são amplas. A
dedicação à literatura e à arte de escrever já eram hábitos que existiam nos
dois ramos familiares de seus ancestrais.
O avô paterno, dr. Carl
Hermann Hesse (1802-1896), nasceu em Livland, na Estônia, à época pertencente à
Rússia. Era casado com uma alemã, médico e conselheiro de Estado, em
Weissenstein, na Estônia. Além do russo, falava alemão, latim, grego e
hebraico. Como pietista, ministrava aulas bíblicas, fundou um orfanato,
escreveu artigos para jornais e é autor de vários livros, entre os quais uma
ampla autobiografia em dois volumes. Hermann Hesse, o neto escritor, não chegou
a conhecer o avô pessoalmente mas, desde jovem, manteve com ele regular
correspondência até sua morte.
O avô materno, dr. Hermann
Gundert, nasceu em Stuttgart, na Alemanha, em 1814. Fez seus estudos
preliminares no célebre mosteiro de Maulbronn, cujas origens datam do século 11
e a seguir matriculou-se no Tübinger Stift, fundado em 1536, uma instituição de
elite, ligada à Universidade de Tübingen. Em seus quase cinco séculos de
existência, o Tübinger Stift formou grandes homens da cultura alemã, como o
astrônomo Johannes Kepler, o poeta Friedrich Hölderlin, os filósofos Georg
Wilhelm Friedrich Hegel e Friedrich Schelling e o escritor e tradutor Eduard
Mörike.
O dr. Gundert era pessoa de
ampla cultura. Começou a escrever durante os seus estudos preliminares em
Maulbronn. Datam desse período vários dramas, entre eles um sobre Pedro, o
Grande. Ampla era a sua vocação para as línguas. Durante a sua formação em
Tübingen, estudou latim, grego, hebraico, inglês, francês, italiano, indu e
malaiala. Terminados os estudos, passou um período na Inglaterra e de lá partiu
para Tschirakal, na Índia, onde inicialmente trabalhou como professor. Não
demorou, interessou-se por atividades missionárias e ocupou-se da área de seu
interesse, as línguas. Estudou vários dialetos indus, traduziu a Bíblia do
latim para o malaiala e compilou o primeiro dicionário inglês-malaiala,
trabalho que lhe custou mais de 30 anos de pesquisa e continua sendo obra
básica até os dias de hoje. No Estado de Kerala, na Índia, fundou um jornal,
escreveu livros escolares, traduziu obras do sânscrito para o malaiala,
inclusive um documento budista dos primeiros séculos da era cristã. Casou-se,
na Índia, com Julie Dubois, filha de calvinistas da região de Genebra, com quem
teve dez filhos, entre os quais Marie Gundert, a mãe de Hermann Hesse. Julie
Dubois (avó de Hermann Hesse) nunca chegou a falar e escrever o alemão corretamente,
mas, além de sua língua materna, o francês, dominava perfeitamente o inglês e o
indu e vários dialetos. Cultivava uma vida ascética, era rigorosa e
intransigente.
Gundert regressou à Alemanha
em 1859 e assumiu uma editora de literatura religiosa. Viveu em Calw por mais
33 anos, dedicou grande parte desse tempo às pesquisas linguísticas. No Estado
indu de Kerala, Gundert é respeitado como grande cientista linguístico. O
Estado o homenageou com monumento, nome de rua e placa comemorativa. Gundert escreveu
mais de oito mil cartas, que foram usadas por um de seus genros, Johannes
Hesse, o pai de Hermann Hesse, para publicação de uma biografia sobre o sogro.
Johannes Hesse (1847-1916),
filho do dr. Carl Hermann Hesse, nasceu em Weissenstein, na Estônia. Hermann
Hesse — com um avô paterno russo casado com uma alemã, um avô materno alemão
casado com uma francesa; o pai russo casado com uma alemã e ele próprio nascido
em Calw — tinha dúvidas quanto a sua nacionalidade. Em suas notas
autobiográficas, escreve: “Naquela época eu não sabia qual era a minha
nacionalidade, provavelmente russa, pois meu pai foi súdito russo e tinha um
passaporte russo; a mãe, nascida na Índia, era filha de um suábio e de uma
francesa-suíça. Tal origem mesclada impediu-me de ter maior respeito perante
nacionalismos e limites fronteiriços”.
Em 1919, ao decidir que a
região da Floresta Negra era a sua origem, berço, cultura, pátria, Hermann
Hesse passa a se considerar cidadão alemão. Segundo as leis vigentes da época,
como filho de um missionário alemão-báltico (russo) casado com uma mulher
nascida na Índia, oficialmente o escritor era cidadão russo. Entre 1883 e 1890
e a partir de 1923 tornou-se cidadão suíço. No entremeio, tinha também os
direitos de cidadania do Estado alemão de Baden-Württemberg.
Johannes Hesse, pai de
Hermann, indivíduo franzino, nervoso, leitor incansável, laborioso em anotar e
registrar tudo que lia, ouvia e observava, aos 16 anos resolveu ser
missionário. Seus textos, escritos nessa idade, não revelam nenhum fanatismo;
ao contrário, era um homem pensativo e ponderado. Além da biografia sobre o
sogro, escreveu outras 16 obras. Na Índia, a serviço missionário, casou-se com
a viúva Marie Gundert, a filha de Hermann Gundert. Marie Gundert, mãe de
Hermann Hesse, era escritora. Publicou vários livros, entre os quais
encontra-se uma biografia sobre o naturalista inglês David Livingstone. Falava
um inglês impecável, razão pela qual os pais de Hermann Hesse costumavam
comunicar-se em inglês.
Hermann Hesse conheceu muito
bem o avô materno, Hermann Gundert, com o qual manteve estreito contato.
Tinha-o em grande conta e dedicava-lhe uma imensa afeição. No texto
autobiográfico “A Meninice de um Mágico”, Hermann Hesse fala com
sentimentalismo sobre o avô: “E todas essas coisas pertenciam ao avô, e ele, o
idoso, respeitado, poderoso, com sua densa barba branca, sabia tudo, mais
poderoso do que meu pai e minha mãe, estava em poder de muitas outras coisas e
poderes… sua sala e sua biblioteca, ele era também um mágico, um homem que sabia
de tudo, um sábio. Ele entendia todas as línguas dos homens, mais do que
trinta, talvez também a língua dos deuses, talvez a língua das estrelas, ele
escrevia e falava o páli e o sânscrito, falava e cantava canções em canarês,
bengalês, hindustâni e singalês e recitava orações e textos dos muçulmanos na
língua destes. Recebia muitas visitas e eles falavam em todas as línguas”.
Diante desse manancial
cultural, com vários escritores entre seus ancestrais, o pequeno Hermann Hesse,
fortemente influenciado pelo avô materno e pelo próprio pai, teve, desde tenra
idade, uma educação condicionada ao preparo do serviço missionário, como foram
seus pais, avós e bisavós. Sob o peso da profunda religiosidade, o jovem Hesse
decidiu não se tornar “vassalo de Deus”. Começam assim os conflitos com
Johannes, que, embora não fosse um pai extremado, queria o filho como
missionário. Prova disso é o fato de que o pai começou a ministrar-lhe aulas de
latim desde a infância. Hermann Hesse, mais tarde, comenta esse período em “Meninice
de um Mágico”: “Até a idade de 13 anos nunca me preocupei com o que seria da
minha vida futura e que profissão deveria seguir”. Uma das coisas que Hermann
admirava em seu pai, que falava várias línguas, era o seu estilo claro e
preciso ao usar a língua alemã.
Os primeiros intensos abalos
psíquicos que Hermann sofreu aconteceram durante seus primeiros quatro anos de
ensino elementar na escola que frequentava em Calw, com o irmão mais novo, Hans
(1882-1935). Os métodos educacionais eram rígidos. Castigos corporais eram
medidas usuais aceitas tanto pelos pais como pelas autoridades. Abusos, com
graves lesões corporais, eram frequentes e impunes. Hans sofreu um trauma
escolar em virtude dos métodos educacionais pelos quais passou e do qual não
conseguiu livrar-se durante o resto de sua curta vida, que terminaria em
suicídio. Hermann Hesse abordou essa tragédia nos livros “Demian”, “O Jogo das
Contas de Vidro” e “Debaixo das Rodas”. Nessa a personagem principal, Hans Giebenrath,
em referência a seu irmão morto, é retratada como vítima dos métodos
educacionais. Nessa obra encontra-se a seguinte passagem: “A escola é a única
instituição cultural que, apesar de levar a sério, me irrita. Em mim a escola
estragou muita coisa e conheço poucas personalidades que não passaram pela
mesma experiência. Para sobreviver nesse ambiente você precisa aprender a
mentir e o irmão Hans era um menino sério e é por isso que na escola em Calw
quase o mataram, quebraram-lhe a espinha dorsal”.
Em 1891, o pai matriculou
Hermann Hesse, de 14 anos, no renomado mosteiro de Maulbronn, onde o avô
materno estudara. O astrônomo Johannes Kepler, que nasceu em Weil der Stadt,
pequena localidade a nove quilômetros de Calw, frequentou o mesmo ginásio do
mosteiro de Maulbronn, três séculos antes de Hermann Hesse (de 1586 a 1589).
“Serei
escritor ou nada”
Em Maulbronn, o seminarista
Hermann Hesse redigiu algumas peças de teatro em latim — que ele mesmo ensaiava
com colegas e as apresentava aos alunos internos. Suas cartas aos pais eram em
forma de rima e muitas em latim. Ele gostava do ambiente, mas vivia com receio
de acabar virando missionário. Resolveu enfrentar o pai escrevendo-lhe uma
carta com uma frase derradeira: “Serei escritor ou nada”. Mais tarde Hesse
confessa: “Quanto mais avançava em idade, tanto mais compreendi quanta
semelhança eu tinha com o meu pai”.
Depois de sete meses em
Maulbronn, Hermann fugiu do internato. Só foi encontrado dois dias depois,
confuso e transtornado. Após uma tentativa de suicídio, foi internado numa
clínica psiquiátrica. Após o tratamento, ingressou num ginásio em Cannstatt, um
bairro de Stuttgart. Não suportando o ambiente escolar, Hermann deixou o
estabelecimento e começou a trabalhar numa livraria em Esslingen, onde suportou
apenas três dias.
Regressou à casa dos pais em
Calw e foi trabalhar como aprendiz na firma Perrot, que fabricava relógios para
torres de igreja. Permaneceu no emprego por um ano e meio. Durante esse
período, aos 17 anos, Hermann Hesse falava seriamente de planos para emigrar
para o Brasil, assunto frequente nos seus apontamentos e escritos.
O relacionamento com a mãe
Marie era normal e Hermann costumava dizer que a amava. O relacionamento sofreu
uma ruptura abrupta numa época em que Hermann já publicara textos, comentários
e seu nome já era conhecido. Hermann redigiu um pequeno texto com o título
“Minha Mãe”, convencido de que ela o apreciaria. Enganou-se. A mãe, num gesto
indelicado, humilhou e reduziu a nada o trabalho do filho. Passado mais de meio
século, Hesse recordou com amargura do episódio e disse nunca ter perdoado a
mãe.
A partir desse episódio a
vida de Hermann Hesse transforma-se numa roda viva. Em 1895 começa a trabalhar
numa livraria em Tübingen (que ainda existe), publica algumas poesias e uma
obra com o título “Uma Hora Após a Meia-Noite”, escreve regularmente para o
jornal suíço “Allgemeine Schweizer Zeitung”, e viaja três meses pela Itália. Ao
regressar, trabalha num antiquário em Wattenwyl, na Suíça, e seu romance
“Hermann Lauscher” é publicado. Em 1903, volta a viajar pela Itália, desta vez,
acompanhado pela fotógrafa Maria Bernoulli. Ao mesmo tempo, publica sua obra
“Peter Camenzind” (1904), seu primeiro romance cujo enredo contém muitos
paralelos biográficos. “Peter Camenzind” torna-se um best-seller, Hesse casa
com Maria Bernoulli e compra uma propriedade em Gaienhofen, no Lago de
Constança, na divisa da Alemanha com a Suíça.
Às margens do lago, a
criatividade literária de Hermann Hesse desenvolve-se em bom ritmo. Em 1906
publica “Debaixo das Rodas” e em 1910 “Gertrudes”, novela escrita em primeira
pessoa, na qual o autor narra os infortúnios de uma dolorosa experiência de
amor. Entre 1905 e 1911 nascem os seus três filhos, Bruno, Heiner e Martin.
Para distrair-se Hermann Hesse pratica a jardinagem. Na área que circunda a
casa, Hesse planta árvores, arbustos e cultiva rosas. Muito do que plantou na
época continua a vicejar até hoje sob os cuidados de uma sociedade mantenedora
que tem o zelo de conservar a propriedade e cultivar as mesmas plantas, rosas e
flores que Hesse cultivara.
Em 1911 Hesse parte para uma
viagem à Índia. Queria conhecer o lugar no qual a mãe nascera e onde os pais
trabalharam. A viagem estende-se à Indonésia e à China. Ao regressar publica
“Da Índia”. Essa viagem à Índia o decepciona por não encontrar lá o que os pais
idolatravam.
Enquanto isso Maria Bernoulli
começa a ter problemas psíquicos. Hermann Hesse demonstra não ser capaz de
lidar e viver com uma situação dessas. Chega à conclusão que, para dar
continuidade à sua ocupação literária, precisa de sossego. Maria é internada
num hospital psiquiátrico e os três filhos são entregues à tutela de parentes e
amigos. Resolve mudar-se para a Suíça. Deixa a propriedade e seus bens em
Gaienhofen, leva consigo apenas a sua escrivaninha, vai à Berna onde aloja-se
na Casa Welti. Em 1914 publica “Rosshalde”, romance no qual fala do fracasso do
matrimônio de um casal de artistas. A obra traz marcantes traços biográficos.
Em toda a literatura alemã Hesse é o autor que mais traços autobiográficos
incluiu em sua obra.
No início da Primeira Guerra
Mundial, Hermann Hesse se engaja em projetos e serviços humanitários. Um de
seus trabalhos foi a criação de um grupo que se ocupou com a remessa de livros
para presos em campos de concentração. Em 1915 publica “Knulp”, obra na qual o
autor mostra ao leitor o quanto o homem depende de convenções sociais.
Em 1916 Hermann Hesse é
acometido de uma crise nervosa que o prende por meses no sanatório Sonnmatt, em
Lucerna, na Suíça. Tem início uma profunda amizade com o psicanalista J. B.
Lang. Nesse estado de espírito publica um artigo contra a guerra sob o
pseudônimo de Emil Sinclair e começa a ocupar-se regularmente com a pintura
aquarelista.
O
guru dos hippies
Em 1919 publica “O Regresso
de Zaratustra”, obra dirigida aos jovens: “O mundo não está aí para ser
melhorado. Mas vocês estão aí para serem vocês mesmos. Vocês estão aí a fim de
que este mundo sombrio, com esse acorde e com esse tom de vocês, fique mais
rico. Seja você mesmo e o mundo tornar-se-á mais belo e mais rico”.
Paralelamente Hermann Hesse muda-se para a Casa Camuzzi, em Montagnola, no
Tessino, onde permanece até 1931.
Ainda em 1919 Hesse publica
“Demian”, sob o pseudônimo de Emil Sinclair, e faz amizade com Ruth Wenger, com
a qual acaba se casando. O casamento dura apenas três anos, de 1924 a 1927. Em
1921 Hesse começa a escrever “Sidarta”, o qual teve que interromper em virtude
de um bloqueio psíquico. Hesse cai em profunda depressão. Começa a sua segunda
análise psicanalítica, dessa vez, com o renomado psiquiatra C. G. Jung. Em 1922
termina e publica “Sidarta”, sobre o qual Henry Miller escreveu: “Sidarta é,
para mim, um medicamento mais eficiente do que o Novo Testamento”.
Nesse entretempo Hesse
publicou várias obras, entre elas, “O Lobo da Estepe” (1927). No mesmo ano
Ninon Dolbin aloja-se na Casa Camuzzi, aparentemente como secretária. Em 1931
Hesse começa a escrever “O Jogo das Contas de Vidro” e se casa com Ninon
Dolbin. Em 1931 Hesse muda-se para a “Casa Rossa”, uma mansão construída por um
abastado admirador, H.C. Bodmer, que deu a Hesse o direito de ocupá-la até a sua
morte. No muro da porta de entrada Hermann Hesse prendeu uma tabuleta com os
seguintes dizeres: “Não recebo visitas”. Certo dia subiu à montanha seu amigo
Thomas Mann. Este, ao ler os dizeres, deu meia-volta. Conta-se que nunca mais
os dois escritores voltaram a se encontrar. A “Casa Rossa” hoje é propriedade
particular.
Em 1943, doze anos após
iniciá-lo, publica sua obra máxima “O Jogo das Contas de Vidro”. Em 1946
Hermann Hesse é agraciado com o Prêmio Nobel de Literatura.
Não é possível comentar
todas as obras de Hesse num texto relativamente breve. Além disso, há resenhas
de seus livros em mais de cinquenta línguas. Por esta razão procuramos dar
especial ênfase ao homem Hermann Hesse, pois é imprescindível conhecê-lo para
podermos compreender e fruir o conteúdo, a beleza e a profundidade de sua obra.
Hermann Hesse ainda era vivo
e sua obra já tinha sido traduzida para 34 idiomas. “Parece-me que os japoneses
são os que melhor me entendem e os que menos me entendem são os americanos. Mas
esse também não é o meu mundo. Nunca chegarei lá”, comentou logo após ter
recebido o Nobel. Em meados dos anos 1950, o editor Siegfried Unseld recomprou
os direitos sobre a obra de Hermann Hesse por 2 mil dólares. Assinado o
contrato, Unseld e o antigo editor foram para o almoço, durante o qual o
americano disse: “Se o sr. quiser rescindir esse contrato tão desvantajoso,
podemos cancelá-lo”. Unseld não o cancelou e, passados dez anos, as obras de
Hermann Hesse tornaram-se sucesso também nos Estados Unidos quando a juventude
hippie, à procura de novas alternativas de vida, confrontou-se com os textos de
Hesse, este passou a ser visto como uma espécie de guru. Outro fator que
contribuiu para o sucesso de Hesse nos Estados Unidos foi a banda “Steppenwolf”
(Lobo da Estepe), que adotou o nome do livro e fez com que a obra influenciasse
várias gerações.
Hermann Hesse, além de
dedicar-se a seus textos, empenhava grande parte de seu tempo em responder
cartas de leitores. Nesse particular, supera Johann Wolfgang von Goethe
(1749-1832), o grande autor clássico da literatura alemã, que escreveu mais de
30 mil cartas. Hermann Hesse escreveu mais de 40 mil, a maioria delas ainda
estão preservadas. Não apenas trocava correspondência com renomados homens da
literatura, como Thomas Mann, Stefan Zweig e Romain Rolland, mas também com
políticos, chefes de Estado e com milhares de leitores que lhe escreviam
pedindo conselhos ou ajuda para problemas da alma humana. Hesse fazia questão
de responder pessoalmente às cartas que recebia. Ao responder às perguntas
pessoais de leitores, Hesse costumava apelar à moral, à ética, à tolerância e
aos fundamentos básicos do cristianismo do qual tentara livrar-se em Maulbronn.
Até agora apenas parte de
suas cartas foram publicadas em dois volumes, está previsto o lançamento de uma
edição completa de sua correspondência que deverá abranger um total de dez
volumes.
Apenas “ler” Hesse não é
suficiente. Para entendê-lo é necessário “encontrá-lo” e a melhor maneira de
encontrá-lo é aprofundar-se em sua biografia. Em Calw, sua cidade natal, o
município criou o Museu Hesse, no qual encontra-se grande parte de seu acervo.
Sua casa em Gaienhofen, que hoje está como ele a deixara, também foi
transformada em museu, e em Montagnola, nas montanhas do Lago Lugano, encontra-se
a terceira parte de seu acervo.
A
única arma que Hesse usou foi a caneta
É oportuno mencionar um
detalhe pouco conhecido da vida de Hermann Hesse: o autor foi grande admirador
e profundo conhecedor dos contistas da Renascença Italiana. Em 1920 Hesse selecionou
e publicou uma coletânea de 16 contos de autores italianos sob o título
“Novellino”, na qual encontram-se cinco títulos de Franco Sacchetti, quatro de
Giovanni Fiorentino, dois de Masuccio Salernitano, um de Nicolau Maquiavel, e
quatro de autores anônimos. O título de Nicolau Maquiavel é “Belfagor” e foi
Hesse que, pela primeira vez, publicou-o em língua alemã. O “Novellino” de
Hesse foi republicado na Alemanha numa versão atualizada em 2012.
Otto Maria Carpeaux, ao
caracterizar Hesse, escreveu: “A vida de Hesse foi um caminho de sucessivas
autolibertações, através de revoltas do individualista contra a escola, contra
a família, contra o cristianismo, contra o estilo burguês de vida, contra a
guerra, contra a Europa e contra todos os tabus que o lar, a sociedade, a
religião e o Estado querem impor”. A caracterização de Carpeaux é correta.
Falta apenas um detalhe: a única arma que Hesse usou foi a caneta.
Quem caminha pelas ruas de
Calw encontra Hesse como eu o encontrei. Lá está ele, no meio da ponte sobre o
Nagold, seu lugar preferido quando menino, em estátua de bronze em tamanho
natural, com o seu inseparável chapéu à mão. O escultor deu-lhe um rosto
tranquilo, talvez até feliz, e quando nos acercamos temos a impressão que Hesse
fala conosco: “Desci por estes barrancos do rio quando menino junto com outros
de minha idade. Subíamos na balsa e os balseiros levavam-nos alguns quilômetros
rio abaixo onde, numa curva, deixavam-nos saltar à margem donde regressávamos a
pé”. A expressão de felicidade estampada em seu rosto parece dizer: “Hoje sei
muito bem que nada na vida repugna tanto ao homem do que seguir pelo caminho
que o conduz a si mesmo”.
Hermann Hesse morreu em 9 de
agosto de 1962, em Montagnola, aos 75 anos. Transcorridos 50 anos, a data foi
devidamente lembrada em 9 de agosto de 2012 com cerimônias, festejos, palestras
e conferências realizadas durante todo o último trimestre do cinquentenário de
seu falecimento ao redor do mundo. Suas obras continuam vivas e hoje, mais do
que no passado, o número de leitores e admiradores de Hermann Hesse aumenta em
todos os quadrantes. Especialmente na Europa, Estados Unidos, Japão, China,
Índia e Coreia do Sul. Hesse continua sendo um autor de interesse universal.
Talvez seja esta a verdadeira razão pela qual Hermann Hesse nos cumprimenta com
um sorriso feliz lá do alto da ponte de sua cidade natal.
WELZEL,
Edgar. Hermann Hesse: o guru dos
hippies. Disponível em: <http://www.revistabula.com/4688-hermann-hesse-o-guru-dos-hippies/>
. Acesso em: 18 abr. 2016.
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