domingo, 3 de abril de 2016

O RETORNO DOS HERÓIS





Por Ruy Rocha Jr.

Desde a tragédia de 11 de setembro de 2001, a popularidade dos filmes de heróis, em suas muitas formas, aumentou muito. É natural que os super-heróis dos quadrinhos supram essa necessidade, e os filmes baseados em quadrinhos quebraram novos recordes de bilheteria. O supre-herói tornou-se mais uma vez um ícone. Mas Hollywood aproveita essa oportunidade para fazer mais do que apenas nos entreter. Alguns dos filmes recentes trazem mensagens filosóficas que podem iluminar nossa vida. Em especial, os filmes dos X-mem abordam a filosofia da natureza humana, de maneira que podemos recorrer à obra do grande estudioso de Mitologia, Joseph Campbell, bem como algumas teorias contemporâneas a respeito das decisões éticas. 1

A explosão de tantos fatos preocupantes anda causando enorme estupefação na mente coletiva, ainda mais quando a desorientação atinge níveis alarmantes em todas as esferas da sociedade planetária. Mas o que afinal está acontecendo? A violência teria tomado conta do cotidiano humano? Por que tanto avanço tecnológico não atenua os gravíssimos problemas que despontam ininterruptamente mundo afora?

Não pretendo desviar o foco para uma discussão sociológica sobre as angustias modernas, ao contrário, as ideias que se seguem são imprescindíveis para entendermos como a mitologia cumpre papel determinante na decodificação do oculto.

Carl Gustav Jung dizia que os meios de comunicação contemporâneos exibem as grandes calamidades antes que aconteçam, isso seria fruto de mensagens atemporais em sincronicidade com o mundo objetivo.

A reflexão é interessante porque desnubla uma força sutil interagindo em nossa subjetividade, bem como alerta que todo acontecimento futuro pode ser alterado. O homem constrói sua individuação dia após dia, inspirado por vibrações inacessíveis aos que não excederam seu Ego. Entretanto os que o fazem, despertam o que Jung chamou de Self (si-mesmo).

Isso é algo a se pensar, pois a intuição deveria mensurar as escolhas da humanidade que, ao invés de subir a escada de Jacó, trilha o labirinto do Minotauro. Em contrapartida, existe um indiscutível resgate de valores há tempos esquecidos. Anteriormente eles vicejavam nas alegorias mitológicas que a mente humana criou ao longo de sua evolução.

Uma delas diz respeito ao herói inato, intimamente acondicionado no imaginário humano, mas continuamente revisitado nos últimos tempos. Será que voltamos a cultuar o heroísmo por escapismo? Por que tantos filmes do gênero fazem sucesso numa época teoricamente marcada pelo ceticismo? Talvez a resposta esteja associada com a perda momentânea dos referenciais que norteiam a humanidade.

Esses conceitos foram abandonados ao léu das clivagens que fragmentam as idiossincrasias sob a égide de modelos monolíticos, que não permitem reflexões mais criativas ou abertas às possibilidades simbólicas.  Responder a questões tão complexas não é tarefa fácil, entretanto, tais desdobramentos abrem precedentes para discorrermos sobre a importância dos arquétipos no cotidiano.  O cinema experimentou nos últimos anos um fôlego sem precedentes com a adaptação dos super-heróis da Marvel para a telona.

Pudera, nunca vivemos um período de estiagem moral como atualmente, e para comprovar a persuasão do Ter, basta ligar o televisor ou ler os periódicos matinais.

Joseph Campbell - brilhante mitólogo corresponsável pelo sucesso da saga Guerra nas Estrelas - dizia que cada ser humano traz a figura do herói no seu inconsciente. Como ele, Jung acreditava que determinados símbolos e imagens interiores residem na psique desde os primórdios da aventura humana, convergindo quase sempre em temas religiosos universais, desdobrados em alegorias metafóricas: os mitos, as cosmogonias, as teofanias e as hierofanias. Será que essas construções não são a manifestação consciente do inconsciente coletivo? Isso explicaria porque reverenciamos tanto os heróis das lendas antigas, retratados como a luz, símbolo da verdade e esperança.

Não é a toa que os ícones dos santos católicos têm sobre a cabeça o disco solar, representando a virtude alcançada pela visão beatífica(**), obtida como dádiva da vitória da Ordem (Luz) sobre o Caos (Trevas). Quem não se lembra da presença física e moral de John Wayne? Como explicar que uma figura tão provinciana experimentasse tanto sucesso nos quatro cantos do mundo?

Cabe lembrar que somente carisma não sustentaria a alegoria do mocinho, é preciso mais.

Embora ele nunca tenha sido um cowboy na vida real, é impossível desassociar o mito do homem verdadeiro, isso ocorre pelo fato de Wayne encarnar um modelo idílico almejado por contingentes de todas as civilizações. Na verdade a figura solitária de um homem montado em seu cavalo é um legado universal, que Hollywood teve a feliz sensibilidade de imortalizá-lo em obras memoráveis. Alguns dirão românticas, algo que concordo em partes, mas, o que vem ao caso nos ícones culturais é a essência do símbolo que representam, e não sua história objetiva. Todavia outro elemento deve se somar a esse triunfo, visto que as lentes do diretor John Ford eternizaram a estonteante locação de Monument Valley no imaginário dos fãs de Western, incluindo ainda o mito do pistoleiro errante acima do bem e do mal.

Não lembra as histórias dos cavaleiros medievais?

Foi com esses trunfos que Ford habilmente complementou a metáfora do herói norte-americano, valendo-se de criticas veladas à colonização do oeste, no entanto, resgatando a essência das hierofanias do passado, e inserindo-as na arte cinematográfica de recontar velhas histórias. Volta e meia os heróis retornam – de uma forma ou de outra - porque precisamos novamente de suas mensagens subliminares, ainda mais quando a vida cotidiana fragmenta identidades individuais. Para compreendermos melhor esse universo lúdico explanado em poucas palavras, empreenderemos uma incursão nas origens simbólicas da figura do herói arquetípico, imortalizado em símbolos do inconsciente coletivo da civilização humana. O que significa a palavra símbolo?  

Símbolo, Arquétipo e Inconsciente Coletivo: a trajetória ternária do Herói

“O herói é alguém que deu a própria vida por algo maior que ele mesmo”.2

A palavra Símbolo, como explica José Severino Croatto3, origina-se etimologicamente da palavra grega Symbállein, um duplo trocadilho: Bállein e Syn. Quando traduzirmos os dois vocábulos unidos, obtemos a expressão lançar (bállein) junto (Sym), ou pôr junto, percebe-se aqui um elemento partido buscando unidade através de uma relação de proximidade/reconhecimento.

Ysê Tardan-Masquelier resume o que entendemos por símbolo e sua função nos mistérios antigos assim:

“... nos cultos mistéricos, os símbolos designam objetos que tem valor de sinais sagrados, acumulando a energia dos deuses quando estão presentes”.4

Ysé Tardan-Masqulier ensina que Jung também definia a palavra como a junção de dois opostos que estabelecem relação de proximidade/ reconhecimento.

Como exemplo simplista destas complexas noções, lembremos quando adentramos a uma sala de exibição cinematográfica multiplex. Inicialmente temos que comprar um ingresso duplo, ficando um ticket com o recepcionista do cinema e outro conosco, sendo este último a única comprovação do pagamento da entrada. Juntos eles fecham o emblema que identificará a possibilidade de acesso e saída da sala de projeção. A palavra Símbolo significa conceitualmente uma imagem –  ou arquétipo – que une ou religa algo, já no caso do herói a imagem traz vários ideais unidos. Os arquétipos deixam de ser individuais para se tornarem coletivos quando convergem para temas religiosos de significado mundial, o que o Dr. Jung chamou de inconsciente coletivo. Determinados exemplos como a imagem mítica do sol - reverenciado nas lendas gregas como Apolo e nas egípcias como Osíris - facilitam a compreensão da intrínseca relação entre arquétipo e Inconsciente Coletivo, servindo igualmente de combustível para as alegorias do herói.

Os seres humanos têm essa jornada traçada na psique através dos mitos, porém, em alguns momentos, o heroísmo neles revelado integra-se ao imaginário arquetípico que enaltecemos nas diversos variantes do mito do herói.

Na dedicatória que Antoine faz a seu amigo Léon Werth em “O Pequeno Príncipe”, a viagem parece clara, pois Saint-Exupéry reforça a mensagem contida no livro: “Só se vê bem com o coração. O essencial é invisível aos olhos”.

 A Léon Werth: Peço perdão às crianças por dedicar este livro a uma pessoa grande. Tenho um bom motivo: essa pessoa grande é o melhor amigo que possuo. Entretanto, tenho um outro motivo: essa pessoa grande é capaz de compreender todas as coisas, até mesmo os livros de criança. Tenho ainda um terceiro: essa pessoa grande mora na França e ele tem fome e frio. Ela precisa de consolo. Se todos esses motivos não bastam, eu dedico então esse livro à criança que essa pessoa grande já foi. Todas as pessoas grandes foram um dia crianças – mas poucas se lembram disso. Corrijo, portanto, a dedicatória: A Léon Werth, quando ele era criança.5     

As crianças são mais suscetíveis a sensibilidade, fato pelo qual reconhecem o rumo certo com mais clareza. A partida do pequeno príncipe de seu planetinha é uma das inúmeras parábolas que demonstram a busca do eu interior.

Esse caminho idealizado é capaz de influenciar percurso individual, induzindo cada um à trajetória do herói. Sendo assim é provável que todos nós – objetivamente ou subjetivamente – concluamos o mesmo itinerário dos ícones heróicos. Depois de percorrer o labirinto, cada individuo romperá o casulo que aprisiona a pureza original, entendendo claramente qual missão fora lhe outorgada nesta existência. Deve-se igualmente lembrar que tal empreitada varia, principalmente quando se entende que covardia e coragem são apenas palavras transitórias. E no frigir dos ovos o que parece nobre para alguns, trata-se apenas de algo habitual para outros.

O herói – como arquétipo – nada mais é do que a coesão das utopias a que aspiramos enquanto indivíduos, devidamente transmutadas em propósitos coletivos, agrupados no inconsciente coletivo dos mitos e alegorias, ou seja, nos símbolos lançados juntos, que se separam e depois se religam. Contudo é improvável que esse nível de consciência se estabeleça sem ruptura, como também é impossível determinar qual surge primeiro, o fato que inspira o mito ou o contrário. Ambos travam uma sincronia excedente ao que a mente objetiva capta, ficando ao léu do oculto toda racionalização da questão em voga.

É através da viagem simbólica da partida/retorno que o herói inato desabrochará, transcendendo os limites de sua humanidade no intuito da realização de algo muito maior, ou seja, do encontro consigo mesmo. Isso, colocado de chofre, pode causar pasmaceira, entretanto, e a bem da verdade, a vida costuma imitar a arte e vice versa.

Numa época tumultuada como a nossa, entendemos o simbolismo como sinal da busca pela resposta para as vicissitudes humanas, bem como para o vazio existencial do homem frente à finitude do tempo. Novamente Joseph Campbell decodifica as mensagens que se ocultam por trás das figuras heróicas, dedicando algumas páginas de sua principal obra para demonstrar que todos os heróis fazem uma jornada cíclica6. Ela envolveria três fases principais: a partida, uma iniciação e um retorno, que Campbell define assim:

O percurso padrão da aventura mitológica do herói é uma magnificação da forma representada nos rituais de passagem: separação-iniciação-retorno – que podem ser considerados a unidade nuclear do monomito. 7

Na partida o herói recebe um “chamado”8 que o convoca para abandonar sua casa e partir rumo a uma indescritível aventura iniciática. Esse convite confere a possibilidade dele atravessar o limiar de um umbral que o conduzirá a um mundo maior. Neste ponto limítrofe de mundos, ele cumprirá sua “iniciação”9 através de um bom número de provações.

Após mostrar-se digno do seu status, o “retorno”10 poderá ser empreendido, pois, nessa fase o herói já transcendeu a dualidade, e achou nela a resposta para sua singularidade. Isso envolve uma transformação de consciência que o torna “Mestre de Dois Mundos”, alguém que cumpriu adequadamente seu fado. A apoteose faz dele um ser uno com seus propósitos, e único em seus feitos. O inconsciente coletivo é constituído de imagens individuais que se tornaram símbolos coletivos, passando a se revelar continuamente nos mitos universais. Por isso os primeiros arquétipos do herói correspondiam a deuses ou seres diretamente ligados a eles, e nem poderia ser diferente, já que as primeiras manifestações culturais estavam em concordância com o pensamento vigente na antiguidade. Deuses cadenciavam o singular modus vivendi dos antigos, que necessitavam de rituais, preces e purificações diárias, pois até o cultivo da agricultura vinculava-se a vontade divina. Jung reforça que arquétipos são imagens primordiais, e talvez por isso os primeiros heróis da história não sejam humanos. A imperfeição jamais habilitaria um homem comum para a transcendência, quanto mais para a trajetória do herói, e isso tornou os ritos de passagem um mecanismo essencial no apresto dos poucos chamados a percorrerem esse caminho.

O tempo passa e as sociedades mudam, são reconfiguradas, sofrem mutações acompanhadas de avanços/retrocessos, com concordantes resgates culturais, variáveis ao nível de sua consciência social, podendo tanto suprimir quanto adicionar fundamentos nas suas especificidades sócio-culturais. Este diferencial recompõe mitos, transformando a estrutura sem modificar sua essência. Por isso quando interpretamos o mito de Osíris e Ísis, estamos igualmente retomando a mística simbólica Solar/Lunar

O Sol permanece sempre igual, sem qualquer espécie de “devir”. A Lua, em contrapartida, é um astro que cresce, decresce e desaparece, um astro cuja vida está submetida à lei universal do devir, do nascimento e da morte. Como o homem, a Lua tem uma “história” patética, porque a sua decrepitude, como a daquele, termina em morte. Durante três noites o céu estrelado fica sem Lua. Mas esta “morte” é seguida de um renascimento: a “lua nova”. O desaparecimento da Lua na obscuridade, na “morte”, nunca é definitivo. Segundo um hino babilônico dirigido a Sin, a Lua é “um fruto que cresce por si mesmo”. Ela renasce da sua própria substancia, em virtude do seu próprio destino.11

Não é curioso como os mitos assemelham-se continuamente? Basta lembrar que a morte de Osíris, dadas as proporções, é semelhante à de Jesus, e ambas remetem ao movimento de renascimento Sol/Lua. No que tange ao herói arquetípico, ele será revisitado de acordo com os fluxos históricos de cada nação, pois, os homens constroem suas normas coletivamente, baseando-se inicialmente na experiência individual, para depois consolidá-las em níveis mais abrangentes.

Na Idade Média, os heróis tiveram contornos mais sutis que seus antecessores da antiguidade, porém, em vários momentos a antiga tradição do direito divino influenciou os monarcas medievais, que outorgavam a si mesmos um poder de cura derivado da vontade divina. Trovadores cantaram versos sobre seus ícones, heróis investidos da efusão cristã, e personagens como Rolando e El Cid surgiram dessa tradição oral que os incorporou no imaginário épico medieval.

Foi só no século das luzes que ocorreu outra mudança sensível, todavia, a crença em uma força motriz apenas migrou do âmbito religioso para o cientifico e político. O herói clássico – com sua trajetória ternária – foi migrando de cavaleiros para pistoleiros, navegantes para cientistas etc. Não descreverei todos os heróis da história por entender que tal empreitada resultaria num gigantesco tratado, que o brilhante Campbell já presenteou com suas duas obras monumentais: “O Herói de mil faces” e “O poder do mito”.

No entanto todas essas referências preservaram a mesma essência, a não ser no que diz respeito ao sagrado, ou seja, o arquétipo do herói associado a um Deus. De tempos em tempos os heróis retornam em releituras culturais, atualmente tal fenômeno ocorre com a exaltação do super herói. Por quê? O processo que classifico como o retorno dos heróis trata-se do modo como a atual civilização resgata seus mitos heróicos, sem se desvencilhar da leitura tradicional das cosmogonias, teogonias e hierofanias, que acentuam a ligação do herói com uma força superior. Quem sabe a resposta verdadeira seja que eles não regressam, mas que apenas residem em nosso paradigmático Inconsciente Coletivo. Porém só os acessamos quando não damos conta da oscilação existencial, ocasionada pela volatilidade dos valores que constantemente renegamos. Foi após o crash da bolsa de valores norte-americana, origem da grande depressão, que surgiu nos EUA um dos mais instigantes personagens contemporâneos.

Ressignificações no mundo contemporâneo

O Super-homem nasceu em 1933 e inicialmente era um vilão, porém, Joe Shuster e Jerry Siegel – seus criadores – perceberam logo de cara que estavam diante de algo com enorme potencial editorial, o que fez que o estreante logo se tornasse um herói nato.

Os genitores desse herói singular eram judeus vivendo numa América assolada pela grande depressão de 1929, num país onde a imensa maioria tem profundas ligações com o cristianismo protestante. Oriundo de uma fuga do planeta Kripton, que assistiu a morte de seu sol vermelho, o “homem de aço” aterrissou em nosso planeta direto para os braços de pais adotivos, Jonathan e Martha Kent. Clark Kent foi criado numa cidadezinha do meio-oeste dos EUA, abrigo do mais conservador sonho americano, algo não muito distante de histórias bíblicas de impacto, como a do libertador Moisés. A descoberta de sua missão ocorreu, segundo a versão cinematográfica dirigida por Richard Donner, quando o jovem Clark, após a morte do pai, vai para o Ártico, lugar onde um artefato de cristal de Kripton edifica a fortaleza da solidão. No longínquo setentrional, sua razão de existir ganha significado real: lutar pela verdade e ser a luz dos homens.

A exposição de Kal-El – nome Kriptoniano do Super – à luz de nosso sol amarelo alterou sua estrutura celular, rendendo-lhe super-poderes espetaculares, inclusive o de poder voar.

Até aqui nada aparentemente surpreendente, se não fosse o fato da trajetória do super-bebê ter sido premeditada por seu pai Jor-El, um renomado cientista Kriptoniano. Ser enviado pelo pai não lembra outra alegoria?

Quem assistiu a “Superman: O retorno” deve se lembrar das palavras iniciais de Jor-El: “O filho se torna o pai e o pai se torna o filho”. O sobrenome El resgata dois termos12, que traduzem veementemente a noção hebraica de Deus, Elohim no plural sintetiza todos os atributos divinos, indicando que Deus “É o Absoluto por completo”. Já El designa a singularidade e pessoalidade de Deus, tornando-o Uno e acessível.

“El quer dizer “deus”, mas também significa “brilho”.13

Reza a lenda que Apolo era um deus solar, capaz de ver o futuro e curar doenças com o brilho de seus raios. Será que o mito solar inserido na epopéia de Apolo não se repete?

O cristianismo contém igualmente algumas peculiaridades que exaltam Jesus de forma análoga ao que nos referimos:

“Eu sou a Luz do mundo, Aquele que vem em meu seguimento não andará nas trevas; ele terá a Luz que conduz a vida”. João 8:12.

“Enquanto estou no mundo, eu sou a Luz do mundo”. João 9:5.

“... Sou o rebento e a descendência de Davi, a brilhante estrela da manhã”.      Apocalipse 22:16.

El evoluiu com o tempo para YHVH, o nome de Jesus tem origem neste Tetragrama, mas denominações pessoais contêm muito mais do que se imagina.

A águia é associada, na astrologia, ao signo de Escorpião, que é um dos signos fixos do zodíaco, assim como Touro, Leão e Aquário. Os ocultistas também identificam esses signos com as quatro letras do Tetragrama sagrado YHVH, sendo a águia relacionada ao primeiro H. Em termos gerais, a águia simboliza as alturas (e, portanto, a transcendência), a luz, o espírito e o poder da imaginação.14                       

Se você associou o Super-Homem a Jesus não ficou louco, é isso mesmo, lembre-se que os quatro evangelistas são representados pelos animais descritos na citação.

Podemos empreender inúmeras analogias, existem quatro elementos, número do Tetragrama, Jesus seria a quinta essência, o Verbo de Deus, mas basta lembrar que ambas as histórias conciliam componentes derivados de outras culturas.

Um outro expoente contemporâneo revela abertamente os segredos da origem das fábulas modernas. Quem assistiu ao seriado do Capitão Marvel recorda que Billy Batson usava a palavra Shazam para se transformar, um acróstico para os nomes dos imortais: Salomão, Hércules, Atlas, Zeus, Aquiles e Mercúrio. Quando a transformação se consumava e o herói aparecia, estava claramente investido dos mais altos poderes de cada personalidade implícita no acrônimo. Billy adquiria a sabedoria de Salomão, a força de Hércules, a coragem de Aquiles, o poder de Zeus, o vigor de Atlas e a velocidade de Mercúrio. 

O Super-Homem – como o Capitão Marvel – possui força, rapidez, sabedoria e todas as particularidades comuns aos heróis da antiguidade, somando-se a isso as características devocionais do mito cristão-solar, que apresenta Jesus Cristo como a luz dos homens, e enviado do Pai (Abbá), pois, a ressurreição iniciada na sexta-feira termina no domingo, dia do Sol (Sun Day). Desde os mais remotos tempos o calendário semanal reproduzia os nomes dos sete principais planetas conhecidos na antigüidade, e o Sol, embora hoje se saiba que não é um planeta, era o primeiro. Não se pode esquecer que o imperador Constantino, sumo pontífice do deus Mitra, trocou seu monograma do Sol Invictus por outro com as letras gregas P e X, que significam respectivamente as iniciais de Jesus ou, em outra interpretação a primeira letra do seu nome sobrepondo a letra X, que representaria literalmente o Sol.

Como o Mitraísmo cultuava o deus da luz e do sol, ele promovia, na noite de 24 para 25 de dezembro, a solenidade chamada Natali Invictus Solis (Nascimento do Sol Vitorioso; consta aqui, o nome em latim, pois a cerimônia como todo Mitraísmo, foi transmitida aos romanos, no século I a.C.). Sendo, essa noite, no hemisfério norte, a mais comprida do ano (solstício de inverno), ofereciam-se durante toda ela, sacrifícios propiciatórios pela volta da luz do sol e do calor. O Cristianismo, aproveitando esse ritual, fixou, simbolicamente no dia 25 de dezembro, o nascimento de Jesus, identificando-o com a luz do mundo (Sol).15             

A apropriação de antigos mitos nas histórias dos super-heróis é um fato, que Dennis O’Neil explicou detalhadamente assim:

Para responder, lamento ter de falar do outro modo como consideraremos os super-heróis: memes, o que também requer uma definição. Aqui vai. Segundo o impecável Oxford English Dictionary, meme é um elemento de uma cultura que pode ser considerado transmitido por meios não genéticos de uma cultura que pode ser considerado transmitido por meios não genéticos, em especial a imitação. 16

Meme é a forma mutável como personagens são reconfigurados ao longo do tempo, e essa reformulação mantém os mitos originais vivos em novas histórias, ou se preferirem, em hierofanias atualizadas. O super-herói velocista Flash não lembra Hermes, o mensageiro dos deuses? A Mulher-maravilha não é uma adaptação da deusa Ártemis (Diana para os romanos)? Ela não evoca o mito das amazonas?

Ignorar que as mudanças conservam determinados elementos inerentes a ação do tempo é um erro, pois tudo que morre, renasce, seja de um jeito ou de outro. É notório que os escritores se valem de releituras conceituais adaptadas à contemporaneidade, fato que ocorreu anteriormente na construção do cristianismo, que cunhou seus mitos baseando-se na Babilônia, Grécia e em todas as culturas que o antecederam.

O imaginário cristão contém a viagem do herói, o mito solar dos antigos pagãos, e todos os elementos que constroem a nêmesis das releituras míticas explicitadas nos super-heróis, o que sugere que nunca precisamos tanto de heróis como hoje.

Assim como os heróis frequentam o cinema, os livros, as histórias em quadrinhos e o mundo do entretenimento em geral, também a violência circula na mídia, seja nos filmes de catástrofes, zumbis, apocalipses e desgraças. Entendo esse embate como reflexo do que ocorre no mundo espiritual, a alma humana foi colocada na sala dos espelhos, diante do que fizemos e criamos. O aquecimento global e outras anomalias na biodiversidade não são uma cruel vingança de Deus, mas a resposta da natureza face ao descaso humano.

As chagas, guerras e ameaças só cessarão quando o homem reencontrar a força do Verbo, refazendo a trajetória do herói. Interessante refletir sobre a frase, justamente pelo tempo que vivemos... Sagrado, liturgia, Deus. Muito se fala... Qual será o Deus? Do nosso coração? Ou das guerras em seu nome, das curas, da fé das massas, embevecidas pelo mágico, instantâneo, fútil. Deus é nosso respeito pelo outro, suas idéias, seus valores. Mas respeitar não significa relativizar, haverá confronto, mas dialético. Sei lá, acho que leio muito gibi...

Fica a frase de gibi, acredito piamente nela. Sabedoria? Quem sabe...

“Se lugares sagrados são poupados das agruras da guerra... então tornem sagrados todos os lugares. E se santos devem ser mantidos a salvo das guerras... então tornem santos todas as pessoas”. Surfista Prateado, Requiem.

Acrescento: Se Deus é poderoso, torne-o humano, prefiro assim, o mundo já possui muitos poderosos(as). A morte atormentava o poeta Fernando Pessoa, tanto quanto constrange a mim. Mas já que essa megera mal amada insiste em bater nossa porta, que nos encontre serenos e preparados para o último umbral. As casas zodiacais têm sua razão simbólica de existir, pois ocultam todas as qualidades que devemos somar a nossa personalidade-alma. Ao término de sucessivas encarnações, e após vivenciar todos os carismas inseridos nessa amalgama realidade, atingiremos a plenitude.

No Hinduísmo o mito se repete através da palavra Samsara, a roda da vida e morte que nos prende ao mundo de Maia (Fantasia). De acordo com nossas escolhas pessoais, rompemos ou nos mantemos no mesmo nível de consciência, todavia, o caminho se torna mais frutífero quando olharmos para os heróis que sobrevivem nas ressignificações:    

“Além disso, não precisamos correr sozinhos o risco da aventura, pois os heróis de todos os tempos a enfrentaram antes de nós. O labirinto é conhecido em toda a sua extensão. Temos apenas que seguir a trilha do herói, e lá, onde temíamos encontrar algo abominável, encontraremos um deus. E lá, onde esperávamos matar alguém, mataremos a nós mesmos. Onde imaginávamos viajar para longe, iremos ter no centro da nossa própria existência. E lá, onde pensávamos estar só, estaremos na companhia do mundo todo”. Joseph Campbell.

Ab Imo Corde! (***)


(*) Mestre em Ciências da Religião (Umesp), Especialista em Globalização e Cultura (FESPSP), Licenciado em História; Contato: professor_ruy@yahoo.com.br

(**) Nota do autor: Segundo Nevill Drury, essa visão consiste na união suprema com o Absoluto. Nevill DRURY, Dicionário de Magia e Esoterismo: Mais de 3.000 Verbetes sobre Tradições Místicas e Ocultas, verbete Visão Beatífica, p.363.

(***) Do fundo do coração – Sinceramente.

NOTAS

[1] William IRWIN, Super-Heróis e a Filosofia: Verdade, Justiça e o Caminho Socrático, p.84.

[2] Joseph CAMPBELL, O Poder do Mito, p.131.

[3] José Severino CROATTO, As Linguagens da Experiência Religiosa: Uma introdução à fenomenologia da religião, pp. 84-85.

[4] Ysé TARDAN-MASQUELIER, C.G. Jung: a sacralidade da experiência interior, pp.124-125.

[5] Antoine de Saint-Exupéry, O Pequeno Príncipe, p.7.

[6] Joseph CAMPBELL, O Herói de Mil Faces, pp. 57-248.

[7] Joseph CAMPBELL, O Herói de Mil Faces, p.36.

[8] Joseph CAMPBELL, O Herói de Mil Faces, pp.59-101.

[9] Joseph CAMPBELL, O Herói de Mil Faces, pp.101-1194.

[10] Joseph CAMPBELL, O Herói de Mil Faces, pp. 195-247.

[11] Mircea ELIADE, Tratado de História das Religiões, p. 126.

[12] J. A. MOTYER in: David e Pat ALEXANDER, O mundo da Bíblia, p. 157.

[13] Philip GARDINER, GNOSE: A Verdade Sobre o Segredo do Templo de Salomão, p.132.

[14] Nevill DRURY, Dicionário de Magia e Esoterismo: Mais de 3.000 Verbetes sobre Tradições Místicas e Ocultas, p.14.

[15] José Castellani, As Origens Históricas da Mística Maçônica, p. 74. 

[16] Dennis O’NEIL in: Irwin WILLIAM, Super Heróis e a Filosofia: Verdade, Justiça e o Caminho Socrático, p.37.


BIBLIOGRAFIA

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FONTE:


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