Por
Ruy Rocha Jr.
Desde a tragédia de
11 de setembro de 2001, a popularidade dos filmes de heróis, em suas muitas
formas, aumentou muito. É natural que os super-heróis dos quadrinhos supram
essa necessidade, e os filmes baseados em quadrinhos quebraram novos recordes
de bilheteria. O supre-herói tornou-se mais uma vez um ícone. Mas Hollywood
aproveita essa oportunidade para fazer mais do que apenas nos entreter. Alguns
dos filmes recentes trazem mensagens filosóficas que podem iluminar nossa vida.
Em especial, os filmes dos X-mem abordam a filosofia da natureza humana, de
maneira que podemos recorrer à obra do grande estudioso de Mitologia, Joseph
Campbell, bem como algumas teorias contemporâneas a respeito das decisões
éticas. 1
A explosão de tantos fatos
preocupantes anda causando enorme estupefação na mente coletiva, ainda mais
quando a desorientação atinge níveis alarmantes em todas as esferas da
sociedade planetária. Mas o que afinal está acontecendo? A violência teria
tomado conta do cotidiano humano? Por que tanto avanço tecnológico não atenua
os gravíssimos problemas que despontam ininterruptamente mundo afora?
Não pretendo desviar o foco
para uma discussão sociológica sobre as angustias modernas, ao contrário, as
ideias que se seguem são imprescindíveis para entendermos como a mitologia
cumpre papel determinante na decodificação do oculto.
Carl Gustav Jung dizia que
os meios de comunicação contemporâneos exibem as grandes calamidades antes que
aconteçam, isso seria fruto de mensagens atemporais em sincronicidade com o
mundo objetivo.
A reflexão é interessante
porque desnubla uma força sutil interagindo em nossa subjetividade, bem como
alerta que todo acontecimento futuro pode ser alterado. O homem constrói sua
individuação dia após dia, inspirado por vibrações inacessíveis aos que não
excederam seu Ego. Entretanto os que
o fazem, despertam o que Jung chamou de Self
(si-mesmo).
Isso é algo a se pensar,
pois a intuição deveria mensurar as escolhas da humanidade que, ao invés de
subir a escada de Jacó, trilha o labirinto do Minotauro. Em contrapartida,
existe um indiscutível resgate de valores há tempos esquecidos. Anteriormente
eles vicejavam nas alegorias mitológicas que a mente humana criou ao longo de
sua evolução.
Uma delas diz respeito ao
herói inato, intimamente acondicionado no imaginário humano, mas continuamente
revisitado nos últimos tempos. Será que voltamos a cultuar o heroísmo por
escapismo? Por que tantos filmes do gênero fazem sucesso numa época
teoricamente marcada pelo ceticismo? Talvez a resposta esteja associada com a
perda momentânea dos referenciais que norteiam a humanidade.
Esses conceitos foram
abandonados ao léu das clivagens que fragmentam as idiossincrasias sob a égide
de modelos monolíticos, que não permitem reflexões mais criativas ou abertas às
possibilidades simbólicas. Responder a
questões tão complexas não é tarefa fácil, entretanto, tais desdobramentos
abrem precedentes para discorrermos sobre a importância dos arquétipos no
cotidiano. O cinema experimentou nos
últimos anos um fôlego sem precedentes com a adaptação dos super-heróis da
Marvel para a telona.
Pudera, nunca vivemos um
período de estiagem moral como atualmente, e para comprovar a persuasão do Ter, basta ligar o televisor ou ler os
periódicos matinais.
Joseph Campbell - brilhante
mitólogo corresponsável pelo sucesso da saga Guerra nas Estrelas - dizia que
cada ser humano traz a figura do herói no seu inconsciente. Como ele, Jung
acreditava que determinados símbolos e imagens interiores residem na psique desde
os primórdios da aventura humana, convergindo quase sempre em temas religiosos
universais, desdobrados em alegorias metafóricas: os mitos, as cosmogonias, as teofanias e as hierofanias.
Será que essas construções não são a manifestação consciente do inconsciente coletivo? Isso explicaria
porque reverenciamos tanto os heróis das lendas antigas, retratados como a luz,
símbolo da verdade e esperança.
Não é a toa que os ícones
dos santos católicos têm sobre a cabeça o disco solar, representando a virtude
alcançada pela visão beatífica(**), obtida como dádiva da vitória da Ordem
(Luz) sobre o Caos (Trevas). Quem não se lembra da presença física e moral de
John Wayne? Como explicar que uma figura tão provinciana experimentasse tanto
sucesso nos quatro cantos do mundo?
Cabe lembrar que somente
carisma não sustentaria a alegoria do mocinho, é preciso mais.
Embora ele nunca tenha sido
um cowboy na vida real, é impossível desassociar o mito do homem verdadeiro,
isso ocorre pelo fato de Wayne encarnar um modelo idílico almejado por
contingentes de todas as civilizações. Na verdade a figura solitária de um
homem montado em seu cavalo é um legado universal, que Hollywood teve a feliz
sensibilidade de imortalizá-lo em obras memoráveis. Alguns dirão românticas,
algo que concordo em partes, mas, o que vem ao caso nos ícones culturais é a
essência do símbolo que representam, e não sua história objetiva. Todavia outro
elemento deve se somar a esse triunfo, visto que as lentes do diretor John Ford
eternizaram a estonteante locação de Monument Valley no imaginário dos fãs de
Western, incluindo ainda o mito do pistoleiro errante acima do bem e do mal.
Não lembra as histórias dos
cavaleiros medievais?
Foi com esses trunfos que
Ford habilmente complementou a metáfora do herói norte-americano, valendo-se de
criticas veladas à colonização do oeste, no entanto, resgatando a essência das
hierofanias do passado, e inserindo-as na arte cinematográfica de recontar
velhas histórias. Volta e meia os heróis retornam – de uma forma ou de outra -
porque precisamos novamente de suas mensagens subliminares, ainda mais quando a
vida cotidiana fragmenta identidades individuais. Para compreendermos melhor
esse universo lúdico explanado em poucas palavras, empreenderemos uma incursão
nas origens simbólicas da figura do herói arquetípico, imortalizado em símbolos
do inconsciente coletivo da
civilização humana. O que significa a palavra símbolo?
Símbolo,
Arquétipo e Inconsciente Coletivo: a trajetória ternária do Herói
“O herói é alguém que deu a
própria vida por algo maior que ele mesmo”.2
A palavra Símbolo, como explica
José Severino Croatto3, origina-se etimologicamente da palavra grega
Symbállein, um duplo trocadilho:
Bállein e Syn. Quando traduzirmos os dois vocábulos unidos, obtemos a expressão
lançar (bállein) junto (Sym), ou pôr junto, percebe-se aqui um
elemento partido buscando unidade através de uma relação de
proximidade/reconhecimento.
Ysê Tardan-Masquelier resume
o que entendemos por símbolo e sua função nos mistérios antigos assim:
“... nos cultos mistéricos,
os símbolos designam objetos que tem valor de sinais sagrados, acumulando a
energia dos deuses quando estão presentes”.4
Ysé Tardan-Masqulier ensina
que Jung também definia a palavra como a junção de dois opostos que estabelecem
relação de proximidade/ reconhecimento.
Como exemplo simplista
destas complexas noções, lembremos quando adentramos a uma sala de exibição
cinematográfica multiplex. Inicialmente temos que comprar um ingresso duplo,
ficando um ticket com o recepcionista do cinema e outro conosco, sendo este
último a única comprovação do pagamento da entrada. Juntos eles fecham o
emblema que identificará a possibilidade de acesso e saída da sala de projeção.
A palavra Símbolo significa conceitualmente uma imagem – ou arquétipo – que une
ou religa algo, já no caso do herói a imagem traz vários ideais unidos. Os
arquétipos deixam de ser individuais para se tornarem coletivos quando
convergem para temas religiosos de significado mundial, o que o Dr. Jung chamou
de inconsciente coletivo.
Determinados exemplos como a imagem mítica do sol - reverenciado nas lendas
gregas como Apolo e nas egípcias como Osíris - facilitam a compreensão da
intrínseca relação entre arquétipo e Inconsciente
Coletivo, servindo igualmente de combustível para as alegorias do herói.
Os seres humanos têm essa
jornada traçada na psique através dos mitos, porém, em alguns momentos, o
heroísmo neles revelado integra-se ao imaginário arquetípico que enaltecemos
nas diversos variantes do mito do herói.
Na dedicatória que Antoine
faz a seu amigo Léon Werth em “O Pequeno Príncipe”, a viagem parece clara, pois
Saint-Exupéry reforça a mensagem contida no livro: “Só se vê bem com o coração.
O essencial é invisível aos olhos”.
A Léon Werth: Peço perdão às crianças por
dedicar este livro a uma pessoa grande. Tenho um bom motivo: essa pessoa grande
é o melhor amigo que possuo. Entretanto, tenho um outro motivo: essa pessoa
grande é capaz de compreender todas as coisas, até mesmo os livros de criança.
Tenho ainda um terceiro: essa pessoa grande mora na França e ele tem fome e
frio. Ela precisa de consolo. Se todos esses motivos não bastam, eu dedico
então esse livro à criança que essa pessoa grande já foi. Todas as pessoas
grandes foram um dia crianças – mas poucas se lembram disso. Corrijo, portanto,
a dedicatória: A Léon Werth, quando ele era criança.5
As crianças são mais
suscetíveis a sensibilidade, fato pelo qual reconhecem o rumo certo com mais
clareza. A partida do pequeno príncipe de seu planetinha é uma das inúmeras
parábolas que demonstram a busca do eu interior.
Esse caminho idealizado é
capaz de influenciar percurso individual, induzindo cada um à trajetória do
herói. Sendo assim é provável que todos nós – objetivamente ou subjetivamente –
concluamos o mesmo itinerário dos ícones heróicos. Depois de percorrer o
labirinto, cada individuo romperá o casulo que aprisiona a pureza original,
entendendo claramente qual missão fora lhe outorgada nesta existência. Deve-se
igualmente lembrar que tal empreitada varia, principalmente quando se entende
que covardia e coragem são apenas palavras transitórias. E no frigir dos ovos o
que parece nobre para alguns, trata-se apenas de algo habitual para outros.
O herói – como arquétipo –
nada mais é do que a coesão das utopias a que aspiramos enquanto indivíduos,
devidamente transmutadas em propósitos coletivos, agrupados no inconsciente coletivo dos mitos e
alegorias, ou seja, nos símbolos lançados juntos, que se separam e depois se
religam. Contudo é improvável que esse nível de consciência se estabeleça sem
ruptura, como também é impossível determinar qual surge primeiro, o fato que
inspira o mito ou o contrário. Ambos travam uma sincronia excedente ao que a
mente objetiva capta, ficando ao léu do oculto toda racionalização da questão
em voga.
É através da viagem
simbólica da partida/retorno que o
herói inato desabrochará, transcendendo os limites de sua humanidade no intuito
da realização de algo muito maior, ou seja, do encontro consigo mesmo. Isso,
colocado de chofre, pode causar pasmaceira, entretanto, e a bem da verdade, a
vida costuma imitar a arte e vice versa.
Numa época tumultuada como a
nossa, entendemos o simbolismo como sinal da busca pela resposta para as
vicissitudes humanas, bem como para o vazio existencial do homem frente à
finitude do tempo. Novamente Joseph Campbell decodifica as mensagens que se
ocultam por trás das figuras heróicas, dedicando algumas páginas de sua
principal obra para demonstrar que todos os heróis fazem uma jornada cíclica6.
Ela envolveria três fases principais: a partida, uma iniciação e um retorno,
que Campbell define assim:
O percurso padrão da
aventura mitológica do herói é uma magnificação da forma representada nos
rituais de passagem: separação-iniciação-retorno – que podem ser considerados a
unidade nuclear do monomito. 7
Na partida o herói recebe um
“chamado”8 que o convoca para abandonar sua casa e partir rumo a uma
indescritível aventura iniciática. Esse convite confere a possibilidade dele
atravessar o limiar de um umbral que o conduzirá a um mundo maior. Neste ponto
limítrofe de mundos, ele cumprirá sua “iniciação”9 através de um bom
número de provações.
Após mostrar-se digno do seu
status, o “retorno”10 poderá ser empreendido, pois, nessa fase o
herói já transcendeu a dualidade, e achou nela a resposta para sua
singularidade. Isso envolve uma transformação de consciência que o torna
“Mestre de Dois Mundos”, alguém que cumpriu adequadamente seu fado. A apoteose
faz dele um ser uno com seus propósitos, e único em seus feitos. O inconsciente coletivo é constituído de
imagens individuais que se tornaram símbolos coletivos, passando a se revelar
continuamente nos mitos universais. Por isso os primeiros arquétipos do herói
correspondiam a deuses ou seres diretamente ligados a eles, e nem poderia ser
diferente, já que as primeiras manifestações culturais estavam em concordância
com o pensamento vigente na antiguidade. Deuses cadenciavam o singular modus vivendi dos antigos, que necessitavam
de rituais, preces e purificações diárias, pois até o cultivo da agricultura
vinculava-se a vontade divina. Jung reforça que arquétipos são imagens
primordiais, e talvez por isso os primeiros heróis da história não sejam
humanos. A imperfeição jamais habilitaria um homem comum para a transcendência,
quanto mais para a trajetória do herói, e isso tornou os ritos de passagem um
mecanismo essencial no apresto dos poucos chamados a percorrerem esse caminho.
O tempo passa e as
sociedades mudam, são reconfiguradas, sofrem mutações acompanhadas de avanços/retrocessos, com concordantes
resgates culturais, variáveis ao nível de sua consciência social, podendo tanto
suprimir quanto adicionar fundamentos nas suas especificidades sócio-culturais.
Este diferencial recompõe mitos, transformando a estrutura sem modificar sua
essência. Por isso quando interpretamos o mito de Osíris e Ísis, estamos
igualmente retomando a mística simbólica Solar/Lunar.
O Sol permanece
sempre igual, sem qualquer espécie de “devir”. A Lua, em contrapartida, é um
astro que cresce, decresce e desaparece, um astro cuja vida está submetida à
lei universal do devir, do nascimento e da morte. Como o homem, a Lua tem uma
“história” patética, porque a sua decrepitude, como a daquele, termina em
morte. Durante três noites o céu estrelado fica sem Lua. Mas esta “morte” é
seguida de um renascimento: a “lua nova”. O desaparecimento da Lua na
obscuridade, na “morte”, nunca é definitivo. Segundo um hino babilônico
dirigido a Sin, a Lua é “um fruto que cresce por si mesmo”. Ela renasce da sua
própria substancia, em virtude do seu próprio destino.11
Não é curioso como os mitos
assemelham-se continuamente? Basta lembrar que a morte de Osíris, dadas as
proporções, é semelhante à de Jesus, e ambas remetem ao movimento de
renascimento Sol/Lua. No que tange ao herói arquetípico, ele será revisitado de
acordo com os fluxos históricos de cada nação, pois, os homens constroem suas
normas coletivamente, baseando-se inicialmente na experiência individual, para
depois consolidá-las em níveis mais abrangentes.
Na Idade Média, os heróis
tiveram contornos mais sutis que seus antecessores da antiguidade, porém, em
vários momentos a antiga tradição do direito divino influenciou os monarcas
medievais, que outorgavam a si mesmos um poder de cura derivado da vontade
divina. Trovadores cantaram versos sobre seus ícones, heróis investidos da
efusão cristã, e personagens como Rolando e El Cid surgiram dessa tradição oral
que os incorporou no imaginário épico medieval.
Foi só no século das luzes
que ocorreu outra mudança sensível, todavia, a crença em uma força motriz
apenas migrou do âmbito religioso para o cientifico e político. O herói
clássico – com sua trajetória ternária – foi migrando de cavaleiros para pistoleiros,
navegantes para cientistas etc. Não descreverei todos os heróis da história por
entender que tal empreitada resultaria num gigantesco tratado, que o brilhante
Campbell já presenteou com suas duas obras monumentais: “O Herói de mil faces”
e “O poder do mito”.
No entanto todas essas
referências preservaram a mesma essência, a não ser no que diz respeito ao
sagrado, ou seja, o arquétipo do herói associado a um Deus. De tempos em tempos
os heróis retornam em releituras culturais, atualmente tal fenômeno ocorre com
a exaltação do super herói. Por quê? O processo que classifico como o retorno
dos heróis trata-se do modo como a atual civilização resgata seus mitos
heróicos, sem se desvencilhar da leitura tradicional das cosmogonias, teogonias e hierofanias, que acentuam a ligação do
herói com uma força superior. Quem sabe a resposta verdadeira seja que eles não
regressam, mas que apenas residem em
nosso paradigmático Inconsciente Coletivo.
Porém só os acessamos quando não damos conta da oscilação existencial, ocasionada
pela volatilidade dos valores que constantemente renegamos. Foi após o crash da bolsa de valores
norte-americana, origem da grande depressão, que surgiu nos EUA um dos mais
instigantes personagens contemporâneos.
Ressignificações
no mundo contemporâneo
O Super-homem nasceu em 1933
e inicialmente era um vilão, porém, Joe Shuster e Jerry Siegel – seus criadores
– perceberam logo de cara que estavam diante de algo com enorme potencial
editorial, o que fez que o estreante logo se tornasse um herói nato.
Os genitores desse herói
singular eram judeus vivendo numa América assolada pela grande depressão de
1929, num país onde a imensa maioria tem profundas ligações com o cristianismo
protestante. Oriundo de uma fuga do planeta Kripton,
que assistiu a morte de seu sol vermelho, o “homem de aço” aterrissou em nosso
planeta direto para os braços de pais adotivos, Jonathan e Martha Kent. Clark
Kent foi criado numa cidadezinha do meio-oeste dos EUA, abrigo do mais
conservador sonho americano, algo não muito distante de histórias bíblicas de
impacto, como a do libertador Moisés. A descoberta de sua missão ocorreu,
segundo a versão cinematográfica dirigida por Richard Donner, quando o jovem
Clark, após a morte do pai, vai para o Ártico, lugar onde um artefato de
cristal de Kripton edifica a
fortaleza da solidão. No longínquo setentrional, sua razão de existir ganha
significado real: lutar pela verdade e ser a luz dos homens.
A exposição de Kal-El – nome Kriptoniano do Super – à luz de nosso sol amarelo alterou sua
estrutura celular, rendendo-lhe super-poderes espetaculares, inclusive o de
poder voar.
Até aqui nada aparentemente
surpreendente, se não fosse o fato da trajetória do super-bebê ter sido
premeditada por seu pai Jor-El, um
renomado cientista Kriptoniano. Ser
enviado pelo pai não lembra outra alegoria?
Quem assistiu a “Superman: O
retorno” deve se lembrar das palavras iniciais de Jor-El: “O filho se torna o pai e o pai se torna o filho”. O sobrenome
El resgata dois termos12,
que traduzem veementemente a noção hebraica de Deus, Elohim no plural sintetiza todos os atributos divinos, indicando
que Deus “É o Absoluto por completo”. Já El
designa a singularidade e pessoalidade de Deus, tornando-o Uno e acessível.
“El quer dizer “deus”, mas
também significa “brilho”.13
Reza a lenda que Apolo era
um deus solar, capaz de ver o futuro e curar doenças com o brilho de seus
raios. Será que o mito solar inserido na epopéia de Apolo não se repete?
O cristianismo contém
igualmente algumas peculiaridades que exaltam Jesus de forma análoga ao que nos
referimos:
“Eu sou a Luz do mundo,
Aquele que vem em meu seguimento não andará nas trevas; ele terá a Luz que
conduz a vida”. João 8:12.
“Enquanto estou no mundo, eu
sou a Luz do mundo”. João 9:5.
“... Sou o rebento e a
descendência de Davi, a brilhante estrela da manhã”. Apocalipse 22:16.
El
evoluiu com o tempo para YHVH, o nome
de Jesus tem origem neste Tetragrama, mas denominações pessoais contêm muito
mais do que se imagina.
A águia é associada,
na astrologia, ao signo de Escorpião, que é um dos signos fixos do zodíaco,
assim como Touro, Leão e Aquário. Os ocultistas também identificam esses signos
com as quatro letras do Tetragrama sagrado YHVH, sendo a águia relacionada ao
primeiro H. Em termos gerais, a águia simboliza as alturas (e, portanto, a
transcendência), a luz, o espírito e o poder da imaginação.14
Se você associou o
Super-Homem a Jesus não ficou louco, é isso mesmo, lembre-se que os quatro
evangelistas são representados pelos animais descritos na citação.
Podemos empreender inúmeras
analogias, existem quatro elementos, número do Tetragrama, Jesus seria a quinta
essência, o Verbo de Deus, mas basta lembrar que ambas as histórias conciliam
componentes derivados de outras culturas.
Um outro expoente
contemporâneo revela abertamente os segredos da origem das fábulas modernas.
Quem assistiu ao seriado do Capitão Marvel recorda que Billy Batson usava a
palavra Shazam para se transformar, um acróstico para os nomes dos imortais:
Salomão, Hércules, Atlas, Zeus, Aquiles e Mercúrio. Quando a transformação se
consumava e o herói aparecia, estava claramente investido dos mais altos
poderes de cada personalidade implícita no acrônimo. Billy adquiria a sabedoria
de Salomão, a força de Hércules, a coragem de Aquiles, o poder de Zeus, o vigor de Atlas e a velocidade de Mercúrio.
O Super-Homem – como o
Capitão Marvel – possui força, rapidez, sabedoria e todas as particularidades
comuns aos heróis da antiguidade, somando-se a isso as características
devocionais do mito cristão-solar, que apresenta Jesus Cristo como a luz dos
homens, e enviado do Pai (Abbá),
pois, a ressurreição iniciada na sexta-feira termina no domingo, dia do Sol
(Sun Day). Desde os mais remotos tempos o calendário semanal reproduzia os
nomes dos sete principais planetas conhecidos na antigüidade, e o Sol, embora
hoje se saiba que não é um planeta, era o primeiro. Não se pode esquecer que o
imperador Constantino, sumo pontífice do deus Mitra, trocou seu monograma do Sol Invictus por outro com as letras
gregas P e X, que significam respectivamente as iniciais de Jesus ou, em outra
interpretação a primeira letra do seu nome sobrepondo a letra X, que
representaria literalmente o Sol.
Como o Mitraísmo
cultuava o deus da luz e do sol, ele promovia, na noite de 24 para 25 de dezembro,
a solenidade chamada Natali Invictus Solis (Nascimento do Sol Vitorioso; consta
aqui, o nome em latim, pois a cerimônia como todo Mitraísmo, foi transmitida
aos romanos, no século I a.C.). Sendo, essa noite, no hemisfério norte, a mais
comprida do ano (solstício de inverno), ofereciam-se durante toda ela,
sacrifícios propiciatórios pela volta da luz do sol e do calor. O Cristianismo,
aproveitando esse ritual, fixou, simbolicamente no dia 25 de dezembro, o
nascimento de Jesus, identificando-o com a luz do mundo (Sol).15
A apropriação de antigos
mitos nas histórias dos super-heróis é um fato, que Dennis O’Neil explicou
detalhadamente assim:
Para responder,
lamento ter de falar do outro modo como consideraremos os super-heróis: memes,
o que também requer uma definição. Aqui vai. Segundo o impecável Oxford English
Dictionary, meme é um elemento de
uma cultura que pode ser considerado transmitido por meios não genéticos de uma
cultura que pode ser considerado transmitido por meios não genéticos, em
especial a imitação. 16
Meme é a forma mutável como
personagens são reconfigurados ao longo do tempo, e essa reformulação mantém os
mitos originais vivos em novas histórias, ou se preferirem, em hierofanias atualizadas. O super-herói
velocista Flash não lembra Hermes, o mensageiro dos deuses? A Mulher-maravilha
não é uma adaptação da deusa Ártemis (Diana para os romanos)? Ela não evoca o
mito das amazonas?
Ignorar que as mudanças
conservam determinados elementos inerentes a ação do tempo é um erro, pois tudo
que morre, renasce, seja de um jeito ou de outro. É notório que os escritores
se valem de releituras conceituais adaptadas à contemporaneidade, fato que
ocorreu anteriormente na construção do cristianismo, que cunhou seus mitos
baseando-se na Babilônia, Grécia e em todas as culturas que o antecederam.
O imaginário cristão contém
a viagem do herói, o mito solar dos antigos pagãos, e todos os elementos que
constroem a nêmesis das releituras
míticas explicitadas nos super-heróis, o que sugere que nunca precisamos tanto
de heróis como hoje.
Assim como os heróis
frequentam o cinema, os livros, as histórias em quadrinhos e o mundo do
entretenimento em geral, também a violência circula na mídia, seja nos filmes
de catástrofes, zumbis, apocalipses e desgraças. Entendo esse embate como
reflexo do que ocorre no mundo espiritual, a alma humana foi colocada na sala
dos espelhos, diante do que fizemos e criamos. O aquecimento global e outras
anomalias na biodiversidade não são uma cruel vingança de Deus, mas a resposta
da natureza face ao descaso humano.
As chagas, guerras e ameaças
só cessarão quando o homem reencontrar a força do Verbo, refazendo a trajetória
do herói. Interessante refletir sobre a frase, justamente pelo tempo que
vivemos... Sagrado, liturgia, Deus. Muito se fala... Qual será o Deus? Do nosso
coração? Ou das guerras em seu nome, das curas, da fé das massas, embevecidas
pelo mágico, instantâneo, fútil. Deus é nosso respeito pelo outro, suas idéias,
seus valores. Mas respeitar não significa relativizar, haverá confronto, mas
dialético. Sei lá, acho que leio muito gibi...
Fica a frase de gibi,
acredito piamente nela. Sabedoria? Quem sabe...
“Se lugares sagrados são
poupados das agruras da guerra... então tornem sagrados todos os lugares. E se
santos devem ser mantidos a salvo das guerras... então tornem santos todas as
pessoas”. Surfista Prateado, Requiem.
Acrescento: Se Deus é
poderoso, torne-o humano, prefiro assim, o mundo já possui muitos poderosos(as).
A morte atormentava o poeta Fernando Pessoa, tanto quanto constrange a mim. Mas
já que essa megera mal amada insiste em bater nossa porta, que nos encontre
serenos e preparados para o último umbral. As casas zodiacais têm sua razão
simbólica de existir, pois ocultam todas as qualidades que devemos somar a
nossa personalidade-alma. Ao término de sucessivas encarnações, e após
vivenciar todos os carismas inseridos nessa amalgama realidade, atingiremos a
plenitude.
No Hinduísmo o mito se
repete através da palavra Samsara, a
roda da vida e morte que nos prende ao mundo de Maia (Fantasia). De acordo com nossas escolhas pessoais, rompemos
ou nos mantemos no mesmo nível de consciência, todavia, o caminho se torna mais
frutífero quando olharmos para os heróis que sobrevivem nas
ressignificações:
“Além disso, não precisamos
correr sozinhos o risco da aventura, pois os heróis de todos os tempos a
enfrentaram antes de nós. O labirinto é conhecido em toda a sua extensão. Temos
apenas que seguir a trilha do herói, e lá, onde temíamos encontrar algo
abominável, encontraremos um deus. E lá, onde esperávamos matar alguém,
mataremos a nós mesmos. Onde imaginávamos viajar para longe, iremos ter no
centro da nossa própria existência. E lá, onde pensávamos estar só, estaremos
na companhia do mundo todo”. Joseph Campbell.
Ab Imo Corde! (***)
(*) Mestre em Ciências da Religião (Umesp), Especialista
em Globalização e Cultura (FESPSP), Licenciado em História; Contato:
professor_ruy@yahoo.com.br
(**)
Nota do autor: Segundo Nevill Drury, essa visão consiste na união suprema com o
Absoluto. Nevill DRURY, Dicionário de Magia e Esoterismo: Mais de 3.000
Verbetes sobre Tradições Místicas e Ocultas, verbete Visão Beatífica, p.363.
(***)
Do fundo do coração – Sinceramente.
NOTAS
[1]
William IRWIN, Super-Heróis e a Filosofia: Verdade, Justiça e o Caminho
Socrático, p.84.
[2]
Joseph CAMPBELL, O Poder do Mito, p.131.
[3]
José Severino CROATTO, As Linguagens da Experiência Religiosa: Uma introdução à
fenomenologia da religião, pp. 84-85.
[4]
Ysé TARDAN-MASQUELIER, C.G. Jung: a sacralidade da experiência interior,
pp.124-125.
[5]
Antoine de Saint-Exupéry, O Pequeno Príncipe, p.7.
[6]
Joseph CAMPBELL, O Herói de Mil Faces, pp. 57-248.
[7]
Joseph CAMPBELL, O Herói de Mil Faces, p.36.
[8]
Joseph CAMPBELL, O Herói de Mil Faces, pp.59-101.
[9]
Joseph CAMPBELL, O Herói de Mil Faces, pp.101-1194.
[10]
Joseph CAMPBELL, O Herói de Mil Faces, pp. 195-247.
[11]
Mircea ELIADE, Tratado de História das Religiões, p. 126.
[12]
J. A. MOTYER in: David e Pat ALEXANDER, O mundo da Bíblia, p. 157.
[13]
Philip GARDINER, GNOSE: A Verdade Sobre o Segredo do Templo de Salomão, p.132.
[14]
Nevill DRURY, Dicionário de Magia e Esoterismo: Mais de 3.000 Verbetes sobre
Tradições Místicas e Ocultas, p.14.
[15]
José Castellani, As Origens Históricas da Mística Maçônica, p. 74.
[16]
Dennis O’NEIL in: Irwin WILLIAM, Super Heróis e a Filosofia: Verdade, Justiça e
o Caminho Socrático, p.37.
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