Por Roberto
Ahmad Cattani
Ó Senhor! Nos
faça ver as coisas como elas são!
Hadîth do Profeta Mohammad
Meu coração tornou-se capaz de todas as formas:
É pasto para as gazelas e mosteiro para monges cristãos,
E templo para ídolos e a Caba do peregrino muçulmano,
E as tábuas da Torá e o livro
do Alcorão.
Eu sigo a religião do Amor: qualquer direção
Que tomarem
os camelos do Amor,
Lá está minha religião e minha fé.
Ibn ’Arabî, Tarjumân al-ashwâq
O grande orientalista espanhol Miguel Asìn Palacios demonstrou,
em 1919, que A Alquimia da Felicidade
representou nada menos do que uma das fontes principais de inspiração de Dante para
a Divina Comédia. Por
outro lado, o italiano Carlo Saccone, especialista em mística islâmica,
escreveu que este livro de Ibn ’Arabî pode ser considerado “o ápice do desenvolvimento
do tema da viagem extática na literatura árabe”. Se acrescentarmos que Ibn ’Arabî mereceu no Islã os títulos de ash-Sheikh al-akbar, “o maior mestre”, e
muhyi-d-din, “o vivificador da religião”,
influenciando toda a espiritualidade muçulmana até hoje, teremos uma idéia da importância
do livro.
Num ensaio sobre Ibn ’Arabî, Seyyed Hossein Nasr escreve:
“A mística islâmica durante séculos limitou-se a guias práticos para os seguidores
do Caminho espiritual, ou à simples expressão do nível de realização que cada sufi
havia alcançado. A exposição de princípios
e teorias metafísicas era reduzida ao mínimo. (...) Com Ibn ’Arabî, de repente surge
uma doutrina completa, metafísica, cosmológica, antropológica e até psicológica,
de dimensões monumentais. (...) Ele tornou-se o expositor por excelência da gnose
no Islã. (...) Graças a Ibn ’Arabî, o esoterismo
islâmico tinha condição de fornecer as únicas doutrinas que podiam garantir a preservação
da Tradição. (...) Por intermédio de Ibn ’Arabî, o que sempre fora a verdade interior
do sufismo ficou formulado de uma forma que acabou dominando a vida intelectual
e espiritual do Islã desde então”.1
A escola chamada wahdat
al-wujûd, da “Unicidade da Realidade”, fundada por Ibn ’Arabî, afirma a unidade
transcendente do Ser. Escreve Ibn ’Arabî no Risâlat
al-ahadîyah (Tratado da Unidade):
“Ninguém O vê a não ser Ele mesmo – nem profeta, nem enviado, nem santo perfeito,
nem anjo algum podem conhecê-Lo. Seu
Profeta é Ele, e Seu Enviado é Ele, e Sua Palavra é Ele. Ele
enviou Ele próprio com Si mesmo para Si”.
A escola wahdat al-wujûd
via na criação uma teofania (tajallî).
Os arquétipos de todas as coisas são aspectos dos Nomes
e das Qualidades de Deus e existem em estado latente no Intelecto divino. Deus
lhes dá existência manifestando-os, mas o que vemos no mundo sensível não é nada
mais do que a sombra dos arquétipos (note-se o paralelismo com as “sombras” da Caverna
de Platão). A wahdat al-wujûd classifica
como fundamentais quatro Pilares (arkân)
ou Atributos divinos: Vontade, Conhecimento, Poder e Fala; e acrescenta mais três
(Vida, Generosidade e Eqüidade) para formar os “sete principais”, que se juntam
para formar o nome Allah, o Nome Todo-Compreensivo (al-ism al-jâmi’) que representa a Essência divina. Destes sete derivam
todos os demais Nomes e Atributos divinos.
Partindo da afirmação de unicidade de Deus, o Lâ ilâha illâ’Llâh, não há divindade a não
ser Deus, a escola afirma: “Não há realidade, não há beleza, não há poder, que não
sejam a realidade, a beleza, o poder absolutos”. Esta fé “primordial”, fonte de
toda metafísica muçulmana, proclama a inanidade dos seres criados perante o Infinito
e integra o individual no universal. Para a escola de Ibn ’Arabî, o objetivo da
metafísica é chegar ao conhecimento da unicidade divina, assim como o intento da
cosmologia é afirmar a unicidade da existência.
Para Ibn ’Arabî, a criação e a existência do mundo e dos
seres nascem da Compaixão (ar-rahmah)
de Deus: a Compaixão é a base do Ser, o princípio da manifestação.2 No Futûhât
al-makkiyah, Ibn ’Arabî afirma que o “sopro expirado pelo Compadecido” equivale
à “concessão da existência”.3 “É por isto que os sufis dizem que cada
átomo do universo é uma ‘teofania’ do Ser divino”, escreve S.H. Nasr. E cada ser,
cada átomo, “cada espécie, tudo que está no mundo criado caminha para seu próprio
fim, pois o objetivo de todas as coisas é a perfeição. A realização da viagem até
Deus não é exclusividade do homem”.4 A viagem até Deus em vida é o tema
central deste livro.
O que é o mi’râj, tema central de A Alquimia da Felicidade
O primeiro versículo da sura 17 do Alcorão, de forma bastante
obscura, recita: “Glorificado seja Aquele que, durante a noite, transportou o Seu
servo do Templo inviolável ao Templo longínquo, cujo recinto abençoamos, para mostrar-lhe
alguns dos Nossos sinais. Sabei que Ele é o Ouvinte, o Vidente”. O que está mencionado
sucintamente aqui é a misteriosa viagem noturna do Profeta Mohammad, levado da Sagrada
Mesquita de Meca até aquela de Jerusalém, e daí para os céus, até a Presença de
Deus. Esta viagem arcana é denominada em árabe mi’râj, assunção celeste.
Segundo o relato posterior do Profeta aos seus seguidores,
“eu estava dormindo no recinto sagrado quando o Arcanjo Gabriel veio me sacudir
com o pé até eu acordar e levantar. Ele me
fez montar um bicho que parecia uma mula com asas, e cada passo dela chegava até
onde meus olhos podiam enxergar”.5 Montado em Burâq e escoltado por Gabriel,
Mohammad parte de Meca e chega em poucos
instantes a Jerusalém, onde é recebido por um grupo de profetas, entre os quais
Abraão, Moisés e Jesus, e todos rezam juntos. Do Templo de Jerusalém, Mohammad é levado por Burâq e guiado
pelo Arcanjo através dos sete Céus, onde ele encontra novamente oito Profetas (aqueles
mesmos que ensinarão o adepto na ascensão da Alquimia da Felicidade), desta vez despojados de suas aparências corpóreas
e “incorporando
suas realidades celestiais”. Aos companheiros de fé, na volta,
Mohammad contou que ele chegou “até a distância de três tiros de arco da Presença
Divina”. Sobre os Paraísos que ele visitou,
ele disse: “Uma parcela de Paraíso do tamanho de um arco é melhor que tudo o que
há debaixo do sol, desde que se levanta até que se põe”.6
O ápice da ascensão de Mohammad é a Árvore de Lótus do Limite
Último, conforme contou o Profeta: “As raízes da Árvore de Lótus estão no Trono
(de Deus), e ela marca o limite do conhecimento de qualquer sábio, seja ele Arcanjo
ou Profeta-Mensageiro. Mais adiante é um mistério
oculto, ignorado de qualquer um que não seja Deus”.7 A Luz Divina desce
sobre a Árvore e a envolve num esplendor insustentável, mas o Profeta não baixa
os olhos, e sustenta o clarão sem pestanejar.
Debaixo da Árvore de Lótus, o Profeta-Mensageiro recebe a
Revelação que constitui o credo fundamental do Islã: “O Mensageiro crê no que foi
revelado por seu Senhor, e todos os crentes crêem em Allah, em Seus anjos, em Seus
livros e em Seus mensageiros. Nós não fazemos distinção
entre Seus mensageiros. Disseram: escutamos e obedecemos. Só anelamos a Tua
indulgência, ó Senhor nosso! A ti será o retorno!”.8
O último episódio da viagem celeste de Mohammad pode deixar
perplexo o leitor pouco acostumado com o pragmatismo islâmico em termos de doutrina
e ética: ainda debaixo da Árvore, o Profeta recebe de Deus a ordem para que os muçulmanos
rezem cinqüenta vezes por dia. Na volta, durante a descida,
Mohammad pára para despedir-se de Moisés, e este pergunta-lhe quantas orações lhe
foram ordenadas. Quando o Profeta responde-lhe, Moisés diz: “A oração congregacional
é um fardo pesado, volte lá e peça ao Senhor para aliviar a carga para ti e para
o teu povo”. Três vezes Mohammad volta, e três vezes Deus diminui o número de preces
obrigatórias. Finalmente, ele consegue “apenas cinco, para cada dia e cada noite”.
Ainda assim, Moisés insiste que é muito, mas Mohammad dessa vez rebate que está
com vergonha de voltar mais uma vez. “E foi
assim que a quem executa as cinco orações em boa fé e com a consciência da bondade
de Deus serão atribuídos os méritos de cinqüenta orações”.9
A Laylat al-mi’râj,
a Noite da Viagem Noturna, representa simbolicamente o correspondente simétrico
celeste da Noite da Descida do Alcorão na Terra, a Laylat al-qadr: numa é o Profeta que é levado até o Céu para receber
a mensagem divina, na outra é a mensagem divina que é trazida até ele. Da mesma
forma, F. Schuon lembra que o Profeta é designado com o nome Mohammad quando se
refere ao mistério da Revelação, com a Descida, enquanto é designado como Ahmad
(com a idêntica raiz etimológica, as letras m-h-d,
raiz que indica a generosidade), quando se refere ao mistério da Ascensão.10
Uma descrição muito mais detalhada da viagem celeste do
Profeta Mohammad encontra- se no Líber Scalae
Machometi,11 tradução latina de 1264 de um original árabe hoje perdido,
mas certamente conhecido por Ibn ’Arabî. “A ‘imitação’ desta experiência visionária
e extática do profeta do Islã representará durante alguns séculos um objetivo
constante e um incentivo profundo para as mais altas expressões
da espiritualidade muçulmana: por isto, considera-se o mi’râj como uma imagem arquetípica fundamental da cultura religiosa
que tem suas raízes no verbo corânico (...) Entre os sufis e os gnósticos islâmicos,
impõe-se rapidamente o anseio de imitação da ascensão celeste: Mohammad é percebido
como o modelo de herói místico, e o seu mi’râj
como o protótipo de todas as êxtases visionárias”.12 Abû Yazîd Bistâmî,
grande mestre sufi do Khorasã, por exemplo, atribuiu-se uma ascensão in spiritu,
através das mesmíssimas etapas que as do Profeta. A significação esotérica do mi’râj para os sufis é a de que ao homem
que alcançou o conhecimento total e perfeito (como o adepto da Alquimia da Felicidade), mesmo mergulhado
na “noite dos sentidos” (o sono do Profeta perto da Caba, ou a “selva oscura” de Dante), é dado ver antecipadamente
(em vida) o seu Senhor e pregustar a beatitude final.
As etapas e as “estações” místicas (maqâmât) da alma progredindo para a realização
e a perfeição, com o tempo, distanciaram-se do simbolismo cosmológico da viagem
celeste (céus, estações planetárias, Paraísos), para se tornarem paradigmas metodológicos
e didáticos dos caminhos espirituais (Tariqat)
ensinados pelos mestres sufis aos aspirantes e aos discípulos e dos estados da alma,
em muitos casos rigorosamente codificados,13 sendo um deles a alquimia
espiritual.
Segundo ’Alî, companheiro e sucessor do Profeta Mohammad,
“a alquimia é a irmã da profecia”, e veremos neste livro que Ibn ’Arabî chama Jesus
de “mestre da Alquimia”.14 Bastam estes elementos para mostrar que a
alquimia da qual fala o presente livro não é um embrião de pesquisa científica físico-química
ante litteram, como de fato foi em vários
casos (nos tratados de ar-Râzî, por exemplo, ainda no século IX); ou pior, os delírios
da alquimia vulgar, perpetrada por personagens ambíguos entremeando conhecimentos
secretos e cobiça na busca de um método para fabricar metal precioso partindo de
metais comuns.
A alquimia de Ibn ’Arabî é puramente espiritual e visionária:
“Conheço a alquimia pelo caminho da revelação intuitiva, e não pelo atalho de um
conhecimento aprendido”, escreveu – e poucos ousariam afirmar o mesmo en connaissance de cause. Esta alquimia inteiramente
interiorizada é irmã, isso sim, da Kimyya
mística de um Jâbir Ibn Hayyân15 e da grande alquimia européia, de um
Nicolas Flamel ou de um Atanasius Kircher, mas não se identifica com elas. Estas
representam uma forma de mística que usa o processo (físico e químico) de trabalho
sobre a matéria como suporte simbólico e psíquico para as operações espirituais.
“O que é o fogo transformador da matéria, na perspectiva
do homem encaminhado para a purificação, a não ser a oração incessante? E o que
é a fornalha, a não ser o coração do operante?”16 O laboratório nesta
ótica é o lugar da Obra e da oração, o “lab-oratório” conforme a bela expressão
de Jean Canteins.17
Nesta perspectiva, a “transmutação” alquímica opera-se
sobre a alma, não (ou melhor não só) sobre os metais. A busca e a Obra, por meio
de um processo que pode durar a vida inteira, são a tentativa do alquimista de identificar-se,
por meio do Método e com a ajuda de Deus, com o Ser, de transmutar a alma decaída
(o metal “vil”) no espírito primordial, puro e divino (o ouro “sublime”). A alma
humana é tratada como se fosse uma substância bruta que deve ser filtrada, destilada,
depurada, queimada, calcinada, sublimada, volatilizada e reconstituída, para tornar-se
espírito.
A alquimia árabe, ou muçulmana, nasceu no século VII da
nossa era, ainda no primeiro século do Islã, e continua ainda na nossa época,18
com treze séculos de prática e de transmissão oral e escrita ininterrupta. O maior
alquimista de todos os tempos, segundo a tradição, foi um sufi xiita, Jâbir Ibn
Hayyân (conhecido no Ocidente medieval por Geber). A tradução em latim dos textos
alquímicos árabes a partir do século XII19 suscitou na Europa um interesse
cada vez maior pela alquimia. No Ocidente cristão, podemos citar grandes alquimistas
como Roger Bacon, Alberto, o Grande, Arnold de Villanova, Ramón Llull, na época
medieval; Paracelso, Agrippa, Basilius Valentin, Robert Fludd, Johann Valentin Andreae,
Michael Maier, da Renascença até o Iluminismo, e Eugène Canseliet em tempos recentes.20
Tanto para o Islã como para o Cristianismo, que vêem geralmente
no mundo e nos fenômenos naturais algo decaído e afastado de Deus, a alquimia trouxe
uma concepção sacralizada e uma visão espiritual da Natureza e uma reflexão sobre
os mistérios do mundo material como símbolo e projeção na terra do cosmo e dos grandes
sistemas: “Na alquimia a Natureza é sagrada, e todas as operações praticadas sobre
ela têm efeito sobre a alma do alquimista, em virtude da analogia entre microcosmo
e macrocosmo. (...) A concepção gnóstica do cosmos traz consigo uma visão da Natureza
como símbolo e o apreço das ciências que tratam os fenômenos naturais não como fatos,
mas como reflexo dos níveis superiores da realidade. Consideradas sob este aspecto
simbólico, a alquimia e a astrologia são os suportes cósmicos da contemplação gnóstica”.21
A alquimia contribuiu também para as duas grandes religiões,
“uma linguagem completa da alma, descrevendo seu itinerário do estado de caos até
a iluminação final: um processo de evolução que Ibn ’Arabî batizou de Alquimia da Felicidade”,22 descrevendo-o
em detalhe neste livro. Assim, por exemplo, neste livro Ibn ’Arabî vale-se do termo
árabe “manzil” para as “moradias celestes”
onde param os peregrinos, como sinônimo e equivalente de “maqâm”, que é usado especificamente no esoterismo islâmico para indicar
as “Estações espirituais”, as etapas da Via iniciatória:23 “As Moradias
espirituais levam este nome só no caso em que sejam etapas na Via onde descer (‘nuzûl’) antes de seguir caminho, sem intenção
de fixar-se lá”.24
Ibn ’Arabî faz menção na Alquimia da Felicidade de três processos alquímicos ou etapas fundamentais
da Grande Obra: a “obra ao negro” (nigredo
em latim), a “obra ao branco” (albedo)
e a “obra ao vermelho” (subdividida em citrinitas
e iosis). Para entender melhor as categorias
de Ibn ’Arabî, vejamos o que cada uma destas fases alquímicas simboliza: “Na obra
ao negro, o homem afasta-se da ilusão cósmica, para mergulhar no oceano cósmico,
que é fêmea. É uma espécie de morte, uma ‘descida ao inferno’. É a preparação do
mercúrio, a matéria sutil do mundo. (...) Na obra ao branco, o alquimista serve-se
dos aspectos sutis potenciais da matéria para alcançar a luz do Intelecto. Na frente
dele, a “matéria” cósmica torna-se transparente na pureza virginal da Alma do Mundo
(...). A obra ao branco é um estádio intermediário, assim como a prata coloca-se
entre os metais inferiores e o ouro. O branco é a síntese de todas as cores,
assim é também a obra ao branco, uma integração que prepara a matéria a seu destino
espiritual final. A obra ao vermelho é a etapa final da purificação da alma, que
se transforma em ouro na luz do Espírito que a envolve e a atravessa. (...) Esta é a fase da “união química”
final, onde o enxofre “fixa” o mercúrio, onde o Sol conjunge a Lua, onde o Espírito
desposa a alma”.25
Como escreve René Guénon em “L’ésotérisme islamique”,26 “as várias ciências cosmológicas,
a alquimia, a astrologia, e até a ciência das letras, traduzem as mesmas verdades
em linguagens próprias às diferentes ordens de realidade, unidas entre elas pela
lei da analogia universal, fundamento de qualquer correspondência simbólica”.
A viagem celeste dos dois personagens de A Alquimia da Felicidade baseia-se nas concepções
astronômicas e astrológicas da cultura árabe da época de Ibn ’Arabî, que eram então
entre as mais adiantadas e sofisticadas no mundo (junto com aquelas da Índia e da
China).
Na ciência islâmica, assim como em grego e latim, em que
astronomia e astrologia são usadas indistintamente, o termo nujûm vale para uma e a outra, e os dois
tipos de pesquisas são estreitamente relacionados. O estudo dos corpos celestes
inclui seus movimentos, seus períodos, mas também suas “faculdades” e seus efeitos,
já que eles são considerados “sedes” de várias propriedades da Alma Universal,
causa de toda transformação no mundo da procriação e da corrupção. “Da mesma forma
que a alquimia, a astrologia integrou-se ao esoterismo islâmico e à pratica espiritual
muçulmana e cristã, porque ela perpetuava, veiculada pelo hermetismo, alguns aspectos
de um simbolismo muito primordial: (...) a polarização ‘subjetiva’ da astrologia
hermética – quer dizer, o fato de que a posição terrestre do ser humano serve como
referência para todos os movimentos dos astros – simboliza aqui o papel central do homem no conjunto cósmico, para
o qual o homem é ao mesmo tempo desenvolvimento final e centro de gravidade.”27
Para os muçulmanos, “há no Alcorão o germe de uma cosmologia
e de uma cosmografia completas, que os sufis, os filósofos e os pesquisadores
muçulmanos foram completando passo a passo, partindo das menções sintéticas de sete
céus e sete terras, do Pedestal (kursî)
e do Trono (’arsh), da montanha cósmica
(Qâf) e da árvore das origens. A descrição
do cosmo, no Alcorão e nas ciências cosmológicas muçulmanas, não inclui unicamente
os domínios corporal e terrestre, mas todas as manifestações formais, e por isso
também o mundo angélico: muitos tratados populares de cosmografia árabe eram construídos
a partir de uma teoria dos anjos, considerados ao mesmo tempo forças em ação para
guiar o mundo natural e modelos para a emulação dos homens”.28 Para o
grupo de eruditos de Basra (Iraque) do século 10, conhecido como Ikhwân al-Safâ,
de quem Ibn ’Arabî tomou muitas noções e formulações cosmológicas, o Universo inclui
“todos os seres espirituais e materiais que povoam a imensidade dos céus, constituindo
o reino da multiplicidade abrangendo as esferas, as estrelas, os elementos e seus
produtos, e finalmente o homem”.
A astronomia-astrologia muçulmana adota a teoria das esferas
celestes formulada por Ptolomeu no Almageste,
superando-a graças aos conhecimentos matemáticos e ao “realismo” pragmático do pensamento
islâmico: alguns astrônomos, como al-Bîrûnî, chegaram a formular a concepção do
movimento da terra em volta do sol e da revolução elíptica dos planetas. Mas, como
escreve S.H. Nasr, “nenhum deles atreveu-se a romper com a ordem do mundo medieval;
isto teria acarretado não somente uma revolução na astronomia, mas uma convulsão
geral dos espaços religioso, filosófico e social. Não podemos, de forma alguma,
subestimar a influência da revolução astronômica sobre o espírito humano; enquanto
a hierarquia do conhecimento permaneceu intacta, a scientia foi cultivada no âmbito da sapientia, e uma certa ‘limitação’ do domínio físico era aceita, para
preservar a liberdade de florescimento do domínio espiritual. O ‘muro’ do cosmo
era protegido, para salvaguardar a mensagem simbólica que a visão cósmica ‘limitada’
trazia para a humanidade. É como se os antigos sábios e eruditos pressentissem que
o derrubamento daquela ‘muralha’ comportaria o desmoronamento do sentido simbólico
do cosmo”29 – e, por conseqüência, de todo o edifício da cultura e da
concepção tradicional do mundo.
Ibn ’Arabî engloba de alguma forma a verdade essencial
da visão heliocêntrica no seu edifício cosmogônico: como Ptolomeu e como a Idade
Média toda, ele atribui ao sol, que ele compara ao “pólo” (qutb) e ao “coração do mundo” (qalb
’al-âlam), uma posição central na hierarquia das esferas celestes; mas ele amplifica
o sistema de Ptolomeu numa visão mística colocando o sol não só no meio das esferas
dos planetas, mas também simetricamente no centro do céu das estrelas fixas, do
céu não-estrelado, e das duas esferas supremas do Pedestal divino e do Trono divino.30
Eis algumas correspondências cosmológicas, no contexto
da Alquimia da Felicidade:31
Em relação ao determinismo astrológico e à controvérsia
entre liberdade humana e destino, o Alcorão afirma: “Sabei que não existe criatura
que Ele não segure pelo topete. Na verdade, meu Senhor está no caminho reto”. Escreve
T. Burckhardt: “Como o ‘Caminho divino’, a direção indo de um ser terrestre qualquer
até um ponto determinado da abóbada celeste é ao mesmo tempo única para cada um
e uma para todos. (...) Há direções ‘objetivas’, isto é, iguais para todos os seres
no mesmo instante temporal, e direções que podemos chamar de ‘subjetivas’, porque
são determinadas pelo zênite e pelo nadir individuais, as direções do espaço que
são a base do horóscopo”.
O “Enviado”, guia
espiritual supremo
Na Alquimia da Felicidade,
o peregrino do “mi’râj” é guiado pelos
céus pelo “Enviado”, que lhe abre o caminho até a Presença divina, da mesma forma
que São Bernardo guia Dante nos últimos Cantos do Paradiso. Este Enviado, ou Pólo,
do qual nada se fala neste livro a não ser quanto à função de guia que ele exerce,
representa uma figura essencial para o esoterismo islâmico e especialmente para
Ibn ’Arabî e para os místicos xiitas. Em várias obras, entre as quais o citado Tarjumân al-ashwâq, Ibn ’Arabî atribui a
si mesmo a função de “tradutor” da mensagem do Pólo para os crentes.
“No mi’râj, escreve
Saccone, encontra-se toda a especulação posterior sobre o ‘homem perfeito’ ou ‘homem
universal’ (al-insân al-kâmil), que representa
o fundamento de tanta reflexão de caráter místico e filosófico no Islã medieval,
de Avicena a Suhravardî, de Ibn ’Arabî até seus epígonos modernos. Os verdadeiros
protagonistas do mi’râj são, de um lado,
um ‘homem perfeito’, ou melhor o protótipo dos ‘homens perfeitos’ segundo a mística
islâmica; e por outro lado, um guia celeste.”
No livro Fusûs al-hikam,32
Ibn ’Arabî assim descreve o Enviado: “Esse ser do qual falamos detém os nomes de
‘Homem’ (insân) e de ‘Califa’ (khalîfa): (...) ele é para Deus o que é a
pupila para o olho: graças a ele, Deus olha para as criaturas e faz-lhes misericórdia,
através dele Ele preserva Suas criaturas, como o sigilo preserva os tesouros.
(...) O mundo não cessa de ser preservado enquanto o Homem Perfeito reside nele”.
O Homem Perfeito é “o Pólo (qutb), o centro,
o ápice da hierarquia espiritual, o ordenador espiritual do mundo, a fonte da sabedoria
universal, o receptáculo de toda ciência, o modelo da fé e do Islã”.33
Ele é o “Homem Universal (al-insân al-kâmil),
que representa simbolicamente o ser total, incondicionado e transcendente em relação
a todos os modos particulares e determinados de existência, e até em relação à Existência
pura e simples”.34 O Homem Universal é a condição interior da realização
espiritual efetiva, completa, permanente e perfeita.35
Ele é também o herdeiro espiritual direto do Profeta Mohammad,
o único que possa reivindicar este título espiritual, o mais alto possível depois
do ciclo da Profecia: “Da mesma forma que o Profeta Mohammad, na sua qualidade de
Sigilo da Profecia, é o mais perfeito de todos os profetas, assim o Santo que herda
dele o seu estado e seu conhecimento, ou seja, o Herdeiro mohamadiano (al-wârith al-muhammadî) é superior a todos
os outros Herdeiros dos outros Profetas”,36 conforme diz o Alcorão: “Dentre
os Enviados, Nós fizemos alguns excelerem mais que outros” (2.253). Todos os demais
profetas, assim como os santos, participam da natureza do Homem universal e de sua
função cósmica.
O homem em geral, graças à posição central que Deus lhe
deu no cosmos (califa), tem individualmente a possibilidade de identificar-se ao
Homem universal, embora os estados superiores do ser só possam realizar-se plenamente
no gnóstico ou no sufi que chegue ao final do Caminho. Este duplo aspecto do Homem
universal, de modelo ou de guia (como neste livro) da vida espiritual e de arquétipo
do cosmos, revestiu uma função essencial na mística muçulmana antes e depois de
Ibn ’Arabî.37
Os antecedentes da
narração da viagem celeste
O precedente arquetípico da narração de Ibn ’Arabî é,
como já mencionamos, o mi’râj de Mohammad,
conforme é citado no Alcorão, como foi contado pelo Profeta aos companheiros e como
foi assumindo cada vez mais amplitude e detalhes na tradição oral e escrita (o também
já mencionado Liber Scalae Machometi).
Mas é interessante ver como evoluíram o conceito e o símbolo da ascensão celeste
na mística islâmica até o ápice representado pela Alquimia da Felicidade.
Avicena (Ibn Sina, 980-1037), uma das maiores personalidades
da cultura islâmica de todos os tempos, conta – dois séculos antes de Ibn ’Arabî
– uma viagem iniciatória no seu conto visionário Hayy ibn Yaqzân.38 O grande médico e filósofo persa está
entre os primeiros a substituir o Profeta com um “ego” espiritualizado como protagonista
da ascensão. Avicena imagina o encontro da sua alma visionária com o próprio duplo
angélico, e a viagem que estes realizam rumo ao “Oriente místico”. Aliás, esta é
outra característica original do mi’râj
aviceniano: a viagem, mesmo mantendo a orientação qualitativa e hierárquica das
etapas de purificação, não se estende na vertical, da terra ao céu, mas na horizontal,
de um Ocidente sombrio dominado por formas bestiais, natureza hostil, desastres
e povos bárbaros e violentos até o Oriente paradisíaco. Avicena (cuja obra-prima,
“al-Shifa’ ”, é a maior enciclopédia do
conhecimento humano escrita por um homem em todos os tempos) é também o criador
de um desenvolvimento paralelo do mesmo tema: a “viagem dos pássaros” – metáfora
transparente das almas –, numa viagem de purificação e busca através de sete
terras, ou vales, ou jardins, que substituem os sete céus originais. Esta narração
alegórica do mi’râj em forma de conto
teve um grande sucesso na literatura espiritual muçulmana, especialmente persa,
com variantes de alguns dos autores místicos mais importantes, como al-Ghazâlî,
Attar e Suhravardî.
Outro percurso místico na linha do mi’râj é a obra de um poeta e místico contemporâneo
e conterrâneo de Ibn ’Arabî, Ibn Tufayl, que retoma o título do livro de Avicena
e até os personagens, transformando-o num “romance filosófico” de auto-educação
e auto-iniciação: por ser de concepção muito mais individualista que os anteriores,
o Hayy ibn Yaqzân de Ibn Tufayl fez muito
sucesso na Europa,39 em versões latinas e hebraicas, da Renascença até
o Iluminismo, até servindo de inspiração para J.-J. Rousseau.
Nem poderia faltar uma parodia do mi’râj: o livre-pensador sírio al-Ma’arrî, na “Epístola do Perdão”
(Risâlat al-Ghufrân), imagina a peregrinação
post-mortem de um alter ego numa outra vida grotesca, povoada de poetas, eruditos,
gramáticos, doutores da lei e pregadores, sempre disputando sobre questões
fúteis, entre enxames de anjos, cortejos de hurís
(as mulheres paradisíacas que devem alegrar os bem-aventurados), diabos sarcásticos
que ironizam os prazeres carnais do Paraíso e djinns brincalhões que pregam sustos nas almas.40
O próprio Ibn ’Arabî escreveu, antes da Alquimia da Felicidade, outra descrição de
uma ascensão espiritual bem nos moldes do mi’râj
do Profeta: o “Livro da viagem noturna até a majestade do mais Generoso” (Kitâb al-isrâ’ ilâ maqâm al-asrâ), em que
o “Maior Mestre” hispano-árabe conta sua experiência mística num estilo, conforme
ele próprio declara, que mistura “alegoria e verdade literal”. Para percorrer a
distância entre a Andaluzia e Jerusalém, “símbolo místico da luz e da certeza”,
Ibn ’Arabî afirma ter adotado “o Islã como montaria, a ascese como nutrição e a
renúncia como viático”. No caminho, o visionário peregrino encontra um personagem
“de aspecto divino” enviado por Deus como guia e mentor, que o leva até a Árvore
de Lótus, “símbolo da fé e da virtude, os seus frutos saciam [os místicos], e sua
proximidade aperfeiçoa todas as mais sublimes faculdades humanas”.
“Le cose tutte quante
hanno ordine tra loro,
e questo è forma
che l’universo a Dio fa
simigliante.
Qui veggion l’alte creature
l’orma
de l’etterno valore, il
qual è fine
al quale è fatta la toccata
norma.
Ne l’ordine ch’io dico
sono accline
tutte nature, per diverse
sorti,
più al principio loro
e nem vicine;
onde si muovono a diversi
porti
per lo gran mar de l’essere,
e ciascuna
con istinto a lei
dato che la porti.”
Dante, Paradiso, Canto I
Acreditamos que algumas explicações eruditas e ilustrações
históricas, espirituais e técnicas eram realmente úteis e necessárias para compreender
e desfrutar a riqueza e a amplitude do texto de Ibn ’Arabî, da mesma forma que não
é possível entender e apreciar plenamente a Divina
Comédia sem conhecer o contexto que Dante ilustra. Porém, qualquer esclarecimento
não deve – e nem pode – encobrir o essencial deste livro: sua altíssima inspiração,
sua poesia, sua força evocativa e, no fundo, seu mistério.
A inspiração da Alquimia
da Felicidade é o alento de um místico que soube atingir os níveis mais elevados
de visão espiritual e transmiti-los em inúmeras páginas claras, objetivas, detalhadas
e sistemáticas: o mi’râj dos dois peregrinos
não é o simples relato de uma viagem extática, é a construção por imagens de um
ensinamento esotérico dentro de um sistema espiritual/cosmológico/filosófico articulado
e inserido nas milhares de páginas (2.800) das Revelações da Meca. Ibn ’Arabî afirma
ter escrito toda sua gigantesca obra sob inspiração divina, com a única exceção
dos Fusûs al-Hikam,41 que o
Profeta Mohammad teria lhe ditado em sonho para que os fizesse conhecer aos fiéis.
O Sheikh al-akbar narra a peregrinação celeste do adepto e do seu companheiro com
a simplicidade e a objetividade de um viajante, que descreve um país inalcançável
para a maioria, mas que esteve e está bem na frente dos seus olhos. Os sete
céus, os templos celestes, os paraísos da Alquimia
da Felicidade não são metáforas, nem alegorias, nem teorias ilustradas: é claramente
algo que Ibn ’Arabî viu e viveu – ainda que em outro plano de consciência –, que
o marcou e elevou a um nível raramente alcançado por místicos, santos e mestres
espirituais de qualquer religião.
A poesia neste livro está menos na exposição e na forma
narrativa (no Tratado do Amor,42 por exemplo, Ibn ’Arabî alterna continuamente
prosa poética e versos) e mais na beleza intrínseca do que ele descreve: como não
ficarmos extasiados com a graça de um Paraíso que muda constantemente aos olhos
dos bem-aventurados, porque até lá no céu existe o risco do enfado, e Deus não quer
que seus beatificados fiquem entediados...
A força evocativa está na potência e na amplitude da visão
espiritual e cosmogônica evocada pelo Maior Mestre, que só a Divina Comédia talvez conseguiu superar.
E finalmente há o mistério, ou melhor, o Mistério supremo,
tudo o que Ibn ’Arabî menciona, mas não expõe, tudo o que entendemos que ele sabe,
mas não revela explicitamente, o limiar do Infinito que ele vislumbra e sugere,
aqueles Pés que ele descreve na base do Trono divino, sem levantar os olhos...
ROBERTO AHMAD CATTANI
rcattani@uol.com.br
São Paulo, março de 2002
1 Three Muslim Sages, S.H. Nasr (Caravan
Books, 1964).
2 Ibn ’Arabî and his school, W.C. Chittick,
em Islamic Spirituality (Crossroad, 1991).
5 Sirât Rasûl Allah, Ibn Ishâq, citado por
Martin Lings em Muhammad, his life based on
the earliest sources (Allen & Unwin, 1983).
6 Hadith mencionado por
al-Bukharî.
7 Ta’rîkh ar-Rusul wa ’l-Mulûk (trad. francesa La Chronique, “Les prophètes
et les rois”, Sindbad, 1984) de Tabarî.
10
The Spiritual Significance of the Substance
of the Prophet, Frithjof Schuon, em Islamic
Spirituality.
15 Le Livre du Glorieux de Jâbir Ibn Hayyân,
H. Corbin (Eranos-Jahrbuch, 1950).
18
Ver a testemunha recente de É. Zolla (op. cit.), visitando um laboratório de alquimista
no Irã, onde ele pôde saborear “ouro líquido” usado para curar o câncer da mama.
19
O diálogo do rei Khalid com o eremita Morienus, primeiro texto de alquimia árabe
traduzido para o latim, citado por Titus Burckhardt em “Considérations sur l’Alchimie” (Symboles, Arché, 1979).
27
Clé spirituelle de l’Astrologie Musulmane
d’après Mohyiddîn Ibn ’Arabî, T. Burckhardt (Arché, 1974).
35
De l’Homme Universel, extraits du livre al-Insân
al-Kâmil de al-Jîlî, T. Burckhardt (Paris, 1975).
36
L’eredità spirituale profetica, C. Casserer,
em Il Mistero dei Custodi Del Mondo (Kitâb manzil al-qutb wa maqâmu-hu wa hâlu-hu),
Ibn ’Arabî (Torino, 2001).
FONTE:
CATTANI, Roberto Ahmad. A viagem mística de Ibn ’Arabî entre ensino e mistério. Disponível em: <https://pt.scribd.com/doc/100570095/A-Viagem-Mi-stica-de-Ibn-Arabi>.
Disponível em: 17 abr. 2016.
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