Por Jamil Salloum Jr.
Todos
sonhamos em encontrar alguém especial. Aquele alguém que, num só golpe, se
converte em guia e transformador de vidas, através do exemplo pessoal. O
jornalista americano Mitch Albon encontrou esse alguém na pessoa do prof.
Morris Schwartz, conforme relatou no livro “A
Última Grande Lição”, mais tarde transformado em filme. O grande esoterista
russo G. I. Gurdjieff conheceu alguns e os apresentou na obra “Encontros com Homens Notáveis”, também
transformado em filme.
O
homem sobre o qual escrevo nunca sentou num banco universitário. Seu estudo
restringia-se a um elementar primário. Seu nome era desconhecido do mundo, da
mídia, dos doutos e ilustres. Nunca escreveu livro algum. Não dominava a “arte
do bem falar” e amava a solidão. Fugia da exposição pessoal e encontrava
satisfação na regra que adotou para si: o anonimato. Nada tinha de
extraordinário na aparência. Um rosto comum entre outros. Trabalhou por mais de
50 anos em sua pequena oficina mecânica, numa cidade do interior do Paraná.
Mestre em sua arte, o conserto de carburadores, alcançou renome profissional no
restrito, e hoje quase extinto, mundo dos carros anteriores à injeção eletrônica.
Uma vida comum, comuníssima, diria a maioria.Já desaparecido deste mundo,
partiu como chegou: simples e sem alarde. Mas esse homem, em particular, não
será esquecido.
Edgard
não consertava só carros. Consertava vidas. Vibrava em um diapasão que o
converteu na pessoa mais extraordinária que já encontrei. Não professava
nenhuma religião, mas dava aulas sobre o que vinha a ser a autêntica
religiosidade. Jamais acreditaria, naqueles meus vicejantes 19 anos, do alto da
pose de “intelectualóide”, se me contassem as coisas que viria a presenciar
junto a um simples mecânico de automóveis. De simples, só sua postura, não
suas realizações. De fato, vi coisas extraordinárias... coisas cujo ceticismo
moderno, filho de um mundo materialista que plasma um absurdo cotidiano, jamais
poderia admitir. Portanto, não espanta se minha narrativa for taxada de
insólita, exagera e mesmo impossível. Mas vi e vivi, e ninguém jamais poderá me
colocar a dúvida.
Quando
falamos em mecânicos, imediatamente vem à cabeça a imagem de unia suja, com um
não menos sujo habitante, desorganizada e com uma constelação de pôsteres de
mulheres nuas. A mecânica do “Seu Edgard” – como era chamado por todos – já
surpreendia o visitante na entrada. Ficava nos fundos de sua residência e para
se chegar até ela era-se obrigado a cruzar um comprido canteiro de bem cuidadas
rosas, de várias tonalidades, plantadas e cultivadas com ternura. Ao final do
caminho, aos fundos, adentrava-se em uma pequena casinha de madeira bege.
Limpa, clara e organizada, tinha as paredes cobertas por um verdadeiro arsenal
de ferramentas, nacionais e importadas, criteriosamente catalogadas,
classificadas e penduradas lado a lado na parede, compondo um impressionante
mostruário. Cartazes com temática ecológica substituíam os eróticos, comuns em
oficinas.
Nesse
ambiente não usual para mecânicas, um sorridente ancião de cabelos prateados,
vestindo jeans e camisa absolutamente
limpos, se apressava em receber o cliente. O carro estragado era devolvido,
funcionando impecavelmente, em poucas horas. Mas isso não tem nada de
extraordinário; singular talvez. O assombro residia em “outra coisa”.
Ao
conhecer e ficar íntimo desse homem, de espanto em espanto fui me acostumando
aos outros tipos de “consertos” a que o mecânico se dedicava. Sorrio ao pensar
na imagem que o leitor já formou de meu biografado: um curandeiro, com posturas
e gestos estranhos, unguentos e sortilégios. Nada poderia ser menos verdadeiro.
Este homem simples, de fala simples, de gestos simples e de vida simples,
ajudava de maneira simples, sem alarde. E quando menos se esperava o
extraordinário ocorria: um ânimo transformado, a resposta do problema
febrilmente procurada, uma vida redirecionada e... um mal-estar físico curado!
Era interessante observar como numa conversa puramente de negócios com um novo
cliente, este, sem saber o porquê, expunha para o mecânico toda sua vida, seus
problemas e angústias. E, para sua surpresa, ouvia um conselho direto ou
pedagogicamente administrado. Sentia uma força desconhecida invadir o ser,
abria um sorriso e saía feliz. A indisposição física, se havia, tinha sumido.
De
clientes a amigos, “Seu Edgard” vivia rodeado por um pequeno séquito. Vi não só
pessoas sem instrução, mas médicos, advogados, juízes, professores,
engenheiros, matemáticos e até padres pedindo conselhos àquele mecânico. Todos
sentados nos pequenos bancos de madeira marrom da extraordinária oficina.
Entre um conserto de carburador, um ajuste na marcha, um aperto de parafuso, o
telefone tocava e alguém desesperado conseguia auxílio nas palavras daquele
homem.
Papus,
esoterista francês, disse: “existem
pessoas humildes, sem qualificação acadêmica e experiência médica, para quem o
Céu é tão acessível que os doentes são curados por seu pedido e o sentimento
ruim em seus corações encontra amor e compaixão através do seu contato.” Eu
comprovei a veracidade destas palavras. De fato, as vibrações da oficina
daquele homem se igualavam, e por vezes transcendiam, a de muitos templos,
mosteiros, sinagogas e outros lugares dedicados à prece e à meditação. Não dava
mais vontade de sair de lá! Clientes que
vinham para ficar 15 minutos ficavam horas, sem saber o motivo.
Vi vidas
arruinadas serem resgatadas de um abismo sem esperanças; famílias praticamente destruídas
restauradas e harmonizadas; saúdes comprometidas retornarem ao normal. Vi gente
importante chorar que nem criança e beijar as mãos calejadas de um homem que
conhecera há poucas horas, que havia consertado algo mais do que seu suntuoso
carro. E vi mais outras tantas coisas ...
Ainda
que não tenha conseguido imprimir no leitor a verdadeira dimensão deste homem,
não poderia relatar o resto sem correr o risco de chocar alguns, dada a
inverossimilhança de determinados acontecimentos. Não seria facilmente aceito.
Fica aqui a homenagem e o tributo a uma pessoa extraordinária. Sei que “Seu
Edgard” me perdoará, de onde estiver agora, pela violação de uma vida
inteiramente reservada. E sei que não aceitaria essa publicação se estivesse
neste plano, dado seu amor pela solidão. No entanto, após sua partida à “outra
margem”, acredito que o relato desta simples, mas grandiosa vida, poderá servir
de inspiração a muitos. E que o resto permaneça “sub rosa”.
Não
quero passar a impressão que o homem cuja vida aqui esbocei era um santo,
isento de falhas, imperfeições e limitações. Pelo contrário. Tinha o que
chamava, recorrentemente, de “minhas grandes falhas”. Contudo, das pessoas
falíveis que compõem o mundo, foi a mais sincera e extraordinária que
encontrei. E em sua simplicidade conseguiu muito mais do que a complexidade
comportamental que tanto caracteriza a era hodierna.
Para
encerrar, vêm à memória as palavras do Imperator Ralph M. Lewis, em seu notável
livro “O Santuário do Eu”, que se
aplicam perfeitamente ao mecânico de almas: “Se quiserem conhecer um místico, não limitem sua pesquisa aos mosteiros
e templos, mas procurem também nas estradas e nos caminhos, nas cidades e
cabanas e no acotovelamento e agitação dos grandes centros cosmopolitas do
mundo. Quando virem um homem ativo, estudioso, compassivo, amado por seus
amigos e vizinhos, tolerante no campo religioso e que pode mostrar-lhes a
magnificência e a força cósmicas nas coisas mais simples, terão encontrado um
místico. Com estas qualidades, quer ele esteja em uma batina sacerdotal ou
macacão de operário, é um místico”.
Eu
encontrei alguém assim.
FONTE: SALLOUM JR, Jamil. O mecânico de almas. In O Rosacruz. n. 265. 3º trimestre 2008. Curitiba:
AMORC-GLP, 2008. p. 38
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