sábado, 27 de fevereiro de 2016

O MECÂNICO DE ALMAS







Por Jamil Salloum Jr.

Todos sonhamos em encontrar alguém especial. Aquele alguém que, num só golpe, se converte em guia e transformador de vidas, através do exemplo pessoal. O jornalista ame­ricano Mitch Albon encontrou esse alguém na pessoa do prof. Morris Schwartz, conforme relatou no livro “A Última Grande Lição”, mais tarde transformado em filme. O grande esote­rista russo G. I. Gurdjieff conheceu alguns e os apresentou na obra “Encontros com Homens Notáveis”, também transformado em filme.

O homem sobre o qual escrevo nunca sentou num banco universitário. Seu estudo restringia-se a um elementar primário. Seu nome era desconhecido do mundo, da mídia, dos doutos e ilustres. Nunca escreveu livro algum. Não dominava a “arte do bem falar” e amava a solidão. Fugia da exposição pessoal e encontrava satisfação na regra que adotou para si: o anonimato. Nada tinha de extraordinário na aparência. Um rosto comum entre outros. Trabalhou por mais de 50 anos em sua peque­na oficina mecânica, numa cidade do interior do Paraná. Mestre em sua arte, o conserto de carburadores, alcançou renome profissional no restrito, e hoje quase extinto, mundo dos carros anteriores à injeção eletrônica. Uma vida comum, comuníssima, diria a maioria.Já desaparecido deste mundo, partiu como che­gou: simples e sem alarde. Mas esse homem, em particular, não será esquecido.

Edgard não consertava só carros. Conser­tava vidas. Vibrava em um diapasão que o converteu na pessoa mais extraordinária que já encontrei. Não professava nenhuma religião, mas dava aulas sobre o que vinha a ser a autêntica religiosidade. Jamais acreditaria, naqueles meus vicejantes 19 anos, do alto da pose de “intelectualóide”, se me contassem as coisas que viria a presenciar junto a um sim­ples mecânico de automóveis. De simples, só sua postura, não suas realizações. De fato, vi coisas extraordinárias... coisas cujo ceticismo moderno, filho de um mundo materialista que plasma um absurdo cotidiano, jamais poderia admitir. Portanto, não espanta se minha narrativa for taxada de insólita, exagera e mesmo impossível. Mas vi e vivi, e ninguém jamais poderá me colocar a dúvida.

Quando falamos em mecânicos, imediatamente vem à cabeça a imagem de unia suja, com um não menos sujo habitante, desorganizada e com uma constelação de pôsteres de mulheres nuas. A mecânica do “Seu Edgard” – como era chamado por todos – já surpreendia o visitante na entrada. Ficava nos fundos de sua residência e para se chegar até ela era-se obrigado a cruzar um comprido canteiro de bem cuidadas rosas, de várias tonalidades, plantadas e cultivadas com ter­nura. Ao final do caminho, aos fundos, aden­trava-se em uma pequena casinha de madeira bege. Limpa, clara e organizada, tinha as paredes cobertas por um verdadeiro arsenal de ferramentas, nacionais e importadas, criterio­samente catalogadas, classificadas e pendu­radas lado a lado na parede, compondo um impressionante mostruário. Cartazes com temática ecológica substituíam os eróticos, comuns em oficinas.

Nesse ambiente não usual para mecânicas, um sorridente ancião de cabelos prateados, vestindo jeans e camisa absolutamente limpos, se apressava em receber o cliente. O carro estragado era devolvido, funcionando impeca­velmente, em poucas horas. Mas isso não tem nada de extraordinário; singular talvez. O assombro residia em “outra coisa”.

Ao conhecer e ficar íntimo desse homem, de espanto em espanto fui me acostumando aos outros tipos de “consertos” a que o mecâ­nico se dedicava. Sorrio ao pensar na imagem que o leitor já formou de meu biografado: um curandeiro, com posturas e gestos estranhos, unguentos e sortilégios. Nada poderia ser menos verdadeiro. Este homem simples, de fala simples, de gestos simples e de vida simples, ajudava de maneira simples, sem alarde. E quando menos se esperava o extraordinário ocorria: um ânimo transformado, a resposta do problema febrilmente procurada, uma vida redirecionada e... um mal-estar físico curado! Era interessante observar como numa conversa puramente de negócios com um novo cliente, este, sem saber o porquê, expunha para o mecânico toda sua vida, seus problemas e angústias. E, para sua surpresa, ouvia um conselho direto ou pedagogicamente adminis­trado. Sentia uma força desconhecida invadir o ser, abria um sorriso e saía feliz. A indispo­sição física, se havia, tinha sumido.

De clientes a amigos, “Seu Edgard” vivia rodeado por um pequeno séquito. Vi não só pessoas sem instrução, mas médicos, advo­gados, juízes, professores, engenheiros, matemáticos e até padres pedindo conselhos àquele mecânico. Todos sentados nos peque­nos bancos de madeira marrom da extraordinária oficina. Entre um conserto de carbu­rador, um ajuste na marcha, um aperto de parafuso, o telefone tocava e alguém deses­perado conseguia auxílio nas palavras daquele homem.

Papus, esoterista francês, disse: “existem pessoas humildes, sem qualificação acadêmica e experiência médica, para quem o Céu é tão aces­sível que os doentes são curados por seu pedido e o sentimento ruim em seus corações encontra amor e compaixão através do seu contato.” Eu com­provei a veracidade destas palavras. De fato, as vibrações da oficina daquele homem se igualavam, e por vezes transcendiam, a de muitos templos, mosteiros, sinagogas e outros lugares dedicados à prece e à meditação. Não dava mais vontade de sair de lá!  Clientes que vinham para ficar 15 minutos ficavam horas, sem saber o motivo.

Vi vidas arruinadas serem resgatadas de um abismo sem esperanças; famílias praticamente destruídas restauradas e harmonizadas; saúdes comprometidas retornarem ao normal. Vi gente importante chorar que nem criança e beijar as mãos calejadas de um homem que conhecera há poucas horas, que havia consertado algo mais do que seu suntuoso carro. E vi mais outras tantas coisas ...

Ainda que não tenha conseguido impri­mir no leitor a verdadeira dimensão deste homem, não poderia relatar o resto sem correr o risco de chocar alguns, dada a inverossimilhança de determinados aconteci­mentos. Não seria facilmente aceito. Fica aqui a homenagem e o tributo a uma pessoa extraordinária. Sei que “Seu Edgard” me perdoará, de onde estiver agora, pela violação de uma vida inteiramente reservada. E sei que não aceitaria essa publicação se estivesse neste plano, dado seu amor pela solidão. No entanto, após sua partida à “outra margem”, acredito que o relato desta simples, mas grandiosa vida, poderá servir de inspiração a muitos. E que o resto permaneça “sub rosa”.

Não quero passar a impressão que o homem cuja vida aqui esbocei era um santo, isento de falhas, imperfeições e limitações. Pelo contrário. Tinha o que chamava, recor­rentemente, de “minhas grandes falhas”. Contudo, das pessoas falíveis que compõem o mundo, foi a mais sincera e extraordinária que encontrei. E em sua simplicidade conseguiu muito mais do que a complexidade comporta­mental que tanto caracteriza a era hodierna.

Para encerrar, vêm à memória as palavras do Imperator Ralph M. Lewis, em seu notável livro “O Santuário do Eu”, que se aplicam perfeitamente ao mecânico de almas: “Se quiserem conhecer um místico, não limitem sua pesquisa aos mosteiros e templos, mas procurem também nas estradas e nos caminhos, nas cidades e cabanas e no acotovelamento e agitação dos grandes centros cosmopolitas do mundo. Quando virem um homem ativo, estudioso, compassivo, amado por seus amigos e vizinhos, tolerante no campo religioso e que pode mostrar-lhes a magnifi­cência e a força cósmicas nas coisas mais simples, terão encontrado um místico. Com estas quali­dades, quer ele esteja em uma batina sacerdotal ou macacão de operário, é um místico”.

Eu encontrei alguém assim.

FONTE: SALLOUM JR, Jamil. O mecânico de almas. In O Rosacruz. n. 265. 3º trimestre 2008. Curitiba: AMORC-GLP, 2008. p. 38


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