sexta-feira, 26 de fevereiro de 2016

EROS & PSIQUÉ




Colaboração: Angela Zoellner, SRC. (publicitária e professora)


Diferentemente da fábula, da lenda ou da ficção, o mito relata uma história verdadeira, ocorrida nos tempos primordiais quando, com a interferência de entes sobrenaturais, uma realidade passou a existir. Mito é, pois, a narrativa de uma criação: conta-nos de que modo algo, que não era, começou a ser.

Através do conceito de arquétipo, Carl Jung abriu para a psicologia a possibilidade de perceber nos mitos diferentes caminhos simbólicos para a formação da Consciência Coletiva. Nesse sentido, todos os símbolos existentes numa cultura e atuantes nas suas instituições são marcos do grande caminho da humanidade, das trevas para a luz, do inconsciente para o consciente.

Os mitos gregos sobreviveram aos séculos, e continuam tendo significação em nossos dias, porque relatam experiências inerentes aos seres humanos em qualquer época. O mito de Eros e Psique, relatado por Lúcio Apuleio (125-170 d.C.) em Metamorfoses, relata a história do amor de uma belíssima mortal pelo deus do Amor, filho de Afrodite. Porém, o caminho que Psiqué percorre para conquistá-lo é um rito iniciático que provoca o despertar da sua consciência e, ao mesmo tempo, conduz à formação da sua individualidade.

Eros (grego éros) é o amor personificado. A palavra significa ‘‘o desejo incoercível dos sentidos”. Psiqué (grego psykhé) é a alma personificada. A palavra significa tanto ‘‘sopro’‘ quanto ‘‘princípio vital”.

RESUMO DO MITO

Apesar de tanta beleza, Psiqué não era amada, pois todos se aproximavam dela. como se fosse uma das imortais, irremediavelmente só, sem marido e sem amor. Começou a odiar em si mesma a beleza que constituía ó encantamento de nações inteiras. O pai recorrendo ao Oráculo de Apolo na expectativa de que a filha obtivesse um marido, recebeu uma terrível resposta. Psiqué deveria ser exposta num rochedo escarpado, onde um terrível monstro se uniria a ela nas núpcias da morte.

Psique sem desejar, tinha despertado a ira de Afrodite, cujos templos e cultos haviam sido abandonados por todos. que agora adoravam aquela que consideravam a encarnação da deusa da Beleza. Irritada, Afrodite pede a Eros, seu filho, que faça Psiqué se apaixonar pelo mais horrendo dos homens. Quando vai cumprir a missão, Eros se apaixona, salva Psiqué da morte no rochedo, levá-a para seu palácio paradisíaco e faz dela sua mulher.

Porém, o deus só se junta a ela durante a noite e desaparece antes do amanhecer. Isolada de todos, Psiqué vive unicamente para os encontros com seu amante noturno.

Suas irmãs, casadas com homens a quem odiavam, descobrem que Psiqué não havia morrido no rochedo. Apesar dos protestos de Eros, ele autoriza a vinda das irmãs a seu palácio. Com a inveja típica das mulheres insatisfeitas, planejam destruir a felicidade de Psiqué assim que descobrem que ela, apesar de grávida, nunca havia visto o rosto do amante. Conseguem convencer Psiqué a iluminar-lhe o rosto e depois lhe cortar a cabeça, um símbolo de castração sublimado. Mas ao fazê-lo, Psiqué descobre que o homem a quem ama é Eros, o próprio deus do Amor. Loucamente apaixonada, começa a beijá-lo e, sem querer, derrama em seu ombro o óleo fervente do candeeiro. Descoberto e ferido, Eros foge e vai se curar no palácio da mãe. Desesperada, Psiqué tenta se matar, mas é impedida por Pã, o velho sábio, que a aconselha a reconquistar seu amor.

Afrodite ao saber da paixão do filho, não o poupa de sua fúria e consegue com Zeus, o senhor supremo do Olimpo, que Hermes, o mensageiro dos deuses, anuncie ao mundo que uma de suas escravas havia fugido. Perseguida, Psiqué resolve se entregar à sogra, que lhe inflige todos os tormentos. Depois disso, impõe os quatro famosos trabalhos.

Como primeira tarefa, Afrodite manda trazer diversos tipos de grãos, faz com eles um monte e ordena a Psiqué que os separe por espécie. Tarefa para o mesmo dial A jovem nem tenta pois isso seria impossível. Uma formiguinha que por ali passava, indignada com a crueldade da deusa, convoca um batalhão de formigas que realizam o trabalho.

A segunda tarefa consistia em trazer flocos de lã de ouro dos carneiros ferozes. Desesperada, Psiqué resolve se jogar num rio, mas um junco humilde lhe ensina como cumprir a ordem. Explica que os carneiros possuem poderes mágicos e destruidores porque, enquanto o calor os aquece, são possuídos de uma raiva feroz. Ela não deve se aproximar deles durante o dia, mas ao anoitecer pode recolher os flocos de lã presos nos arbustos.

A terceira tarefa era trazer uma jarra cheia tom a água que alimentava dois rios infernais, Psiqué não tinha nenhuma esperança de poder cumpri-la porque a fonte brotava de um penhasco íngreme e era guardada por dois terríveis dragões. Enquanto pensa em se matar, surge a águia de Zeus, símbolo espiritual masculino, que realiza a tarefa para ela.

No quarto trabalho, Afrodite dá a Psiqué uma caixinha, ordena-lhe que desça ao Hades e peça a Perséfone, esposa de Plutão, um pouquinho de beleza imortal. É então que Psiqué compreende que está sendo enviada à morte. Sobe a uma torre muito alta a fim de se jogar lá de cima. A torre, porém, explica-lhe como se precaver na longa caminhada pelas trevas.

Uma vez percorrido um bom trecho, encontrará um burriqueiro coxo, conduzindo um asno igualmente coxo, carregado de lenha, o burriqueiro vai pedir-lhe que apanhe algumas achas caídas no chão, mas ela deve ignorar o pedido e seguir em frente. Em plena travessia dos rios infernais, um velho erguerá do fundo das águas a mão podre e implorará para que ela o puxe para dentro do barco de Caronte, mas Psiqué não deve se deixar vencer pela piedade ilícita. No caminho do palácio de Perséfone e Plutão, umas velhas fiandeiras irão solicitar sua ajuda. Deve prosseguir seu caminho.

Na mansão do Hades, Perséfone convidará para sentar e participar de um lauto jantar. Deverá recusar ambas as gentilezas. Depois de expor o motivo da viagem e tendo recebido a encomenda de Afrodite, deve voltar imediatamente, mas em hipótese alguma poderá abrir a caixinha.

Psiqué faz tudo como a torre disse. Na volta, é tornada de grande curiosidade: ‘‘Sou mesmo uma tola. Trago comigo a beleza divina e até agora não peguei um pouquinho para mim, a fim de conquistar o meu lindíssimo amante.” Assim dizendo, abre a caixinha que não contém nenhuma beleza imortal e, sim: o sono da morte, que se apodera dela.

Eros já curado do ferimento, morto de saudades da esposa e adivinhando o que se passava encontra Psiqué, recoloca na caixinha o som letárgico e desperta sua Bela Adormecida com o leve toque de uma de suas flechas. Repreende-a delicadamente e pede que conclua sua última tarefa. Ele fará o resto.

Enquanto Psiqué leva a caixinha à mãe de Eros, este pede ajuda a Zeus. O senhor do Olimpo ordena a Hermes que convoque todos os deuses para uma assembléia onde revela seu julgamento: ‘‘Eros escolheu uma donzela e roubou-lhe a virgindade. Que ele a possua, que ela o conserve para sempre, que ele goze de seu amor e tenha Psiqué em seus braços por toda a eternidade.”

Com a aprovação dos imortais, Zeus ordena a Hermes que rapte Psiqué da terra para o céu. Assim que ela chega, oferece-lhe uma taça de ambrosia, a bebida da imortalidade. Depois de um esplêndido banquete, e sob as bênçãos de Afrodite, Eros e Psiqué se ‘‘re-unem” para sempre. Tiveram uma menina chamada Volúpia, que quer dizer, o prazer, a bem-aventurança.

lNTERPRETAÇÃO DAS QUATRO TAREFAS

Na primeira tarefa, os grãos simbolizam a promiscuidade do estágio primitivo da consciência. Por isso as criaturas que vêm ajudar são as formigas, símbolos do mundo dos instintos. Com a ajuda delas Pisqué consegue ordenar a promiscuidade, porque possui em si um princípio inconsciente que lhe permite selecionar, penetrar, correlacionar, avaliar, e assim encontrar seu próprio caminho. Em seu primeiro trabalho, ela alcançou o nível da seletividade.

Na segunda tarefa, os carneiros do sol simbolizam o tirânico poder espiritual masculino, como qual o feminino não pode se defrontar. O junco a aconselha a ser paciente, a aguardar o momento propício. Nem sempre é dia alto e o sol é abrasador. À noite, o princípio masculino se aproxima do feminino, que precisa apenas consultar seus instintos para conseguir uma relação amorosa com ele. No relacionamento entre Eros e Psiqué, ele determinou que seus encontros seriam sempre à noite, escondidos de todos, especialmente de sua poderosa mãe. Mas para Psiqué-grávida esse acordo se tornou intolerável, uma vez que o amor, como expressão da totalidade do feminino, não é possível nas trevas. Na segunda tarefa, ela conseguiu amansar o princípio masculino hostil na ligação erótica do que poderia ser destrutivo.

Na terceira tarefa, a característica essencial da fonte é que ela une o superior e o inferior. O líquido representa a corrente da energia vital, que é impossível capturar ou conter Psiqué, como jarro feminino, deverá fazer parar o fluxo da vida, dar forma e repouso ao que é informe e eternamente fluido. O problema apresentado por Afrodite à nora, e que ela resolve, é o de encarcerar, conter a energia do inconsciente, sem ser por ela despedaçada. A águia segurando a jarra representa a já masculino-feminina espiritualidade de Psiqué. Num único ato, ela ‘‘recebe’‘  como mulher, isto é ‘‘recolhe” um jarro, e concebe mas, ao mesmo tempo, compreende e sabe como um homem. Na terceira tarefa, ela alcançou a reconciliação com o masculino, que lhe permite estabelecer a comunicação com o mundo espiritual masculino.

Até aqui, em planos diferentes, Psiqué executou as tarefas indiretamente e com a cooperação do masculino, mas não como um ser masculino. Forçada a construir o lado masculino da sua natureza, ela permaneceu fiel à sua feminilidade, o que fica bem claro no quarto trabalho. As três tarefas são executadas com a assistência de ajudantes, ou seja, por forças internas da inconsciência da heroína. O último terá que ser executado por ela mesma. Nos primeiros trabalhos, ela lutou com o princípio masculino; na quarta tarefa, realizada nas trevas do inconsciente, lutará com o princípio feminino central, com Afrodite-Perséfone.

Na quarta tarefa, a torre-conselheira, vista como um recinto-mandala, é feminina. Ao mesmo tempo, é fálica, masculina. Além dessa significação bissexual, é construída por mãos humanas, representando o trabalho coletivo e espiritual dos homens. Símbolo do conhecimento humano, é chamada ‘‘a torre que vê longe’‘.

Atender ao pedido do burriqueiro coxo de pegar a acha, um símbolo fálico, seria prender-se para sempre, na outra vida, ao sensualismo animalesco e a uma tarefa inútil. Ajudar o cadáver pode ser entendido como o perigo de ser possuído pelo homem morto, ou seja, pelo espírito ancestral. As fiandeiras, símbolos da Grande Mãe, são as Queres ou Parcas que tecem os fios da vida e da morte. Se Psiqué as ajudasse, seria mais uma dos que povoam os reinos de Plutão. As ofertas de Perséfone, sentar e comer, representam atitudes de intimidade e identidade que estabelecem uma permanência, uma fixação.

Em conjunto, as proibições e advertências da torre são claras: nessa fase de seu desenvolvimento, Psiqué não pode se entregar à piedade, sob pena de não conseguir resolver a última tarefa. Neste rito iniciático, atender a esta proibição significa alcançar a estabilidade do ego. Se para o homem essa estabilidade se manifesta como resistência à dor, à fome, à sede, e assim por diante, para a mulher se manifesta como resistência à piedade. O feminino é ameaçado na estabilidade do ego pelo perigo da distração, provocada pelos relacionamentos. Essa é a difícil tarefa de qualquer psique feminina em seu caminho para a individuação: abandonar o desejo pelo que está próximo em função de um objetivo distante e abstrato. Por esse motivo, a proibição de ter piedade traduz a luta de Psiqué contra a natureza feminina.

Psiqué conseguiu se sair bem das tarefas. Mas na volta do Hades, abriu a caixinha da beleza imortal. Por quê? A beleza imortal é a beleza árida e frígida da virgindade estéril, sem amor pelo homem, como determina a matrilinhagem. É a sedução do narcisismo, da virgem encerrada no amor de si mesma. Colocar o creme da beleza imortal nas mãos da nora é uma armadilha típica de Afrodite, que conhece como ninguém a feminilidade. Que mulher resistiria a essa tentação?

Ignorando a advertência da torre, Psiqué abre a caixinha e cai em sono profundo. Ela fracassa. Psiqué-grávida não está preocupada com a fertilidade da natureza, mas com a fertilidade do encontro individual. Enquanto na esfera matrilinear a gravidez conduz à união entre mãe e filha, aqui o despertar de Psiqué conduz ao encontro do amor e da consciência. Psiqué fracassa, e precisava fracassar, porque é uma psique feminina. Ela decidiu, ao abrir a caixinha, não entregar à Grande Mãe aquilo que conseguiu a tão duras penas.

O aparente fracasso de Psiqué provoca a intervenção de Eros que, de jovem aventureiro e irresponsável, se torna um homem, o salvador. Através do aperfeiçoamento de sua feminilidade e do seu amor, Psiqué evoca a perfeita masculinidade de Eros.

O mito começa com o tema da beleza. Quando era chamada de ‘‘A Nova Afrodite”, Psiqué considerava esse dom uma desgraça. Mas agora, para se tornar ainda mais bela para Eros, está disposta a atrair sobre si a maior das desgraças. Psiqué é uma mortal que ama um deus e está em conflito com as deusas. Ela quer se tornar igual a seu amante divino. De modo muito feminino, intuiu que seu sacrifício final comoveria Eros e o forçaria a salvá-la. Ao abrir mão de seu desenvolvimento espiritual para retornar à beleza que a tornaria atraente para Eros, ela não está realmente regredindo, mas sendo fiel à sua natureza feminina. Ela assim se concilia com a beleza de sua própria natureza que, depois de seu desenvolvimento, não é mais uma beleza fechada em si mesma, nem a beleza sedutora de Afrodite, mas a beleza da mulher que ama, que deseja ser bela para ser amada por Eros e por mais ninguém.

O casamento de Psiqué com Eros, visto sob o ângulo feminino, significa que a faculdade de amar da alma individual é divina e a transformação pelo amor é um mistério que deifica. O trajeto de Psiqué até a imortalidade mostra que, se o amor e a alma humanos conquistaram seu lugar no Olimpo, isso não se deve a um herói destemido mas a uma mulher apaixonada.

Sugestão de leitura complementar

O Poder do Mito, Joseph Campbell, editora Palas Athena
Esse livro é fruto de uma série de conversas mantidas entre Joseph Campbell e o jornalista Bill Moyers, numa brilhante combinação de sabedoria e humor. O casamento, os nascimentos virginais, a trajetória do herói, o sacrifício, o ritual e até os personagens heróicos do filme Guerra nas Estrelas são aqui tratados de maneira original. Campbell afirmava que os mitos passados nos ajudam a compreender o presente e a nós mesmos.

She, Robert A.Johnson, editora Mercuryo
Qual o verdadeiro significado de ser mulher? Quais são os caminhos para a feminilidade realizada? Há, mesmo, componentes masculinos na personalidade de uma mulher? Escritores e cientistas, há muito, veem no antiquíssimo Mito de Eros e Psique a perfeita descrição do crescimento feminino em direção à individuação completa e adulta.


FONTE: AMORC-CULTURAL. 3º trimestre 2001. Curitiba: AMORC-GLP, 2001. p. 4-11 

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