Colaboração: Angela Zoellner, SRC.
(publicitária e professora)
Diferentemente
da fábula, da lenda ou da ficção, o mito relata uma história verdadeira,
ocorrida nos tempos primordiais quando, com a interferência de entes
sobrenaturais, uma realidade passou a existir. Mito é, pois, a narrativa de uma
criação: conta-nos de que modo algo, que não era, começou a ser.
Através
do conceito de arquétipo, Carl Jung abriu para a psicologia a possibilidade de
perceber nos mitos diferentes caminhos simbólicos para a formação da
Consciência Coletiva. Nesse sentido, todos os símbolos existentes numa cultura
e atuantes nas suas instituições são marcos do grande caminho da humanidade,
das trevas para a luz, do inconsciente para o consciente.
Os
mitos gregos sobreviveram aos séculos, e continuam tendo significação em nossos
dias, porque relatam experiências inerentes aos seres humanos em qualquer
época. O mito de Eros e Psique, relatado por Lúcio Apuleio (125-170 d.C.) em
Metamorfoses, relata a história do amor de uma belíssima mortal pelo deus do
Amor, filho de Afrodite. Porém, o caminho que Psiqué percorre para conquistá-lo
é um rito iniciático que provoca o despertar da sua consciência e, ao mesmo
tempo, conduz à formação da sua individualidade.
Eros
(grego éros) é o amor personificado.
A palavra significa ‘‘o desejo incoercível dos sentidos”. Psiqué (grego psykhé) é a alma personificada. A
palavra significa tanto ‘‘sopro’‘ quanto ‘‘princípio vital”.
RESUMO DO MITO
Apesar
de tanta beleza, Psiqué não era amada, pois todos se aproximavam dela. como se
fosse uma das imortais, irremediavelmente só, sem marido e sem amor. Começou a
odiar em si mesma a beleza que constituía ó encantamento de nações inteiras. O
pai recorrendo ao Oráculo de Apolo na expectativa de que a filha obtivesse um
marido, recebeu uma terrível resposta. Psiqué deveria ser exposta num rochedo
escarpado, onde um terrível monstro se uniria a ela nas núpcias da morte.
Psique
sem desejar, tinha despertado a ira de Afrodite, cujos templos e cultos haviam
sido abandonados por todos. que agora adoravam aquela que consideravam a
encarnação da deusa da Beleza. Irritada, Afrodite pede a Eros, seu filho, que
faça Psiqué se apaixonar pelo mais horrendo dos homens. Quando vai cumprir a
missão, Eros se apaixona, salva Psiqué da morte no rochedo, levá-a para seu
palácio paradisíaco e faz dela sua mulher.
Porém,
o deus só se junta a ela durante a noite e desaparece antes do amanhecer.
Isolada de todos, Psiqué vive unicamente para os encontros com seu amante
noturno.
Suas
irmãs, casadas com homens a quem odiavam, descobrem que Psiqué não havia
morrido no rochedo. Apesar dos protestos de Eros, ele autoriza a vinda das
irmãs a seu palácio. Com a inveja típica das mulheres insatisfeitas, planejam
destruir a felicidade de Psiqué assim que descobrem que ela, apesar de grávida,
nunca havia visto o rosto do amante. Conseguem convencer Psiqué a iluminar-lhe
o rosto e depois lhe cortar a cabeça, um símbolo de castração sublimado. Mas ao
fazê-lo, Psiqué descobre que o homem a quem ama é Eros, o próprio deus do Amor.
Loucamente apaixonada, começa a beijá-lo e, sem querer, derrama em seu ombro o
óleo fervente do candeeiro. Descoberto e ferido, Eros foge e vai se curar no palácio
da mãe. Desesperada, Psiqué tenta se matar, mas é impedida por Pã, o velho
sábio, que a aconselha a reconquistar seu amor.
Afrodite
ao saber da paixão do filho, não o poupa de sua fúria e consegue com Zeus, o
senhor supremo do Olimpo, que Hermes, o mensageiro dos deuses, anuncie ao mundo
que uma de suas escravas havia fugido. Perseguida, Psiqué resolve se entregar à
sogra, que lhe inflige todos os tormentos. Depois disso, impõe os quatro
famosos trabalhos.
Como
primeira tarefa, Afrodite manda trazer diversos tipos de grãos, faz com eles um
monte e ordena a Psiqué que os separe por espécie. Tarefa para o mesmo dial A
jovem nem tenta pois isso seria impossível. Uma formiguinha que por ali
passava, indignada com a crueldade da deusa, convoca um batalhão de formigas
que realizam o trabalho.
A segunda
tarefa consistia em trazer flocos de lã de ouro dos carneiros ferozes. Desesperada,
Psiqué resolve se jogar num rio, mas um junco humilde lhe ensina como cumprir a
ordem. Explica que os carneiros possuem poderes mágicos e destruidores porque, enquanto
o calor os aquece, são possuídos de uma raiva feroz. Ela não deve se aproximar deles
durante o dia, mas ao anoitecer pode recolher os flocos de lã presos nos arbustos.
A terceira
tarefa era trazer uma jarra cheia tom a água que alimentava dois rios infernais,
Psiqué não tinha nenhuma esperança de poder cumpri-la porque a fonte brotava de
um penhasco íngreme e era guardada por dois terríveis dragões. Enquanto pensa em
se matar, surge a águia de Zeus, símbolo espiritual masculino, que realiza a tarefa
para ela.
No quarto
trabalho, Afrodite dá a Psiqué uma caixinha, ordena-lhe que desça ao Hades e peça
a Perséfone, esposa de Plutão, um pouquinho de beleza imortal. É então que Psiqué
compreende que está sendo enviada à morte. Sobe a uma torre muito alta a fim de
se jogar lá de cima. A torre, porém, explica-lhe como se precaver na longa caminhada
pelas trevas.
Uma vez
percorrido um bom trecho, encontrará um burriqueiro coxo, conduzindo um asno igualmente
coxo, carregado de lenha, o burriqueiro vai pedir-lhe que apanhe algumas achas caídas
no chão, mas ela deve ignorar o pedido e seguir em frente. Em plena travessia dos
rios infernais, um velho erguerá do fundo das águas a mão podre e implorará para
que ela o puxe para dentro do barco de Caronte, mas Psiqué não deve se deixar vencer
pela piedade ilícita. No caminho do palácio de Perséfone e Plutão, umas velhas fiandeiras
irão solicitar sua ajuda. Deve prosseguir seu caminho.
Na mansão
do Hades, Perséfone convidará para sentar e participar de um lauto jantar. Deverá
recusar ambas as gentilezas. Depois de expor o motivo da viagem e tendo recebido
a encomenda de Afrodite, deve voltar imediatamente, mas em hipótese alguma poderá
abrir a caixinha.
Psiqué
faz tudo como a torre disse. Na volta, é tornada de grande curiosidade: ‘‘Sou mesmo
uma tola. Trago comigo a beleza divina e até agora não peguei um pouquinho para
mim, a fim de conquistar o meu lindíssimo amante.” Assim dizendo, abre a caixinha
que não contém nenhuma beleza imortal e, sim: o sono da morte, que se apodera dela.
Eros
já curado do ferimento, morto de saudades da esposa e adivinhando o que se passava
encontra Psiqué, recoloca na caixinha o som letárgico e desperta sua Bela Adormecida
com o leve toque de uma de suas flechas. Repreende-a delicadamente e pede que conclua
sua última tarefa. Ele fará o resto.
Enquanto
Psiqué leva a caixinha à mãe de Eros, este pede ajuda a Zeus. O senhor do
Olimpo ordena a Hermes que convoque todos os deuses para uma assembléia onde
revela seu julgamento: ‘‘Eros escolheu uma donzela e roubou-lhe a virgindade. Que
ele a possua, que ela o conserve para sempre, que ele goze de seu amor e tenha
Psiqué em seus braços por toda a eternidade.”
Com a
aprovação dos imortais, Zeus ordena a Hermes que rapte Psiqué da terra para o céu.
Assim que ela chega, oferece-lhe uma taça de ambrosia, a bebida da
imortalidade. Depois de um esplêndido banquete, e sob as bênçãos de Afrodite,
Eros e Psiqué se ‘‘re-unem” para sempre. Tiveram uma menina chamada Volúpia,
que quer dizer, o prazer, a bem-aventurança.
lNTERPRETAÇÃO DAS QUATRO TAREFAS
Na
primeira tarefa, os grãos simbolizam a promiscuidade do estágio primitivo da
consciência. Por isso as criaturas que vêm ajudar são as formigas, símbolos do
mundo dos instintos. Com a ajuda delas Pisqué consegue ordenar a promiscuidade,
porque possui em si um princípio inconsciente que lhe permite selecionar,
penetrar, correlacionar, avaliar, e assim encontrar seu próprio caminho. Em seu
primeiro trabalho, ela alcançou o nível da seletividade.
Na
segunda tarefa, os carneiros do sol simbolizam o tirânico poder espiritual masculino,
como qual o feminino não pode se defrontar. O junco a aconselha a ser paciente,
a aguardar o momento propício. Nem sempre é dia alto e o sol é abrasador. À noite,
o princípio masculino se aproxima do feminino, que precisa apenas consultar seus
instintos para conseguir uma relação amorosa com ele. No relacionamento entre Eros
e Psiqué, ele determinou que seus encontros seriam sempre à noite, escondidos de
todos, especialmente de sua poderosa mãe. Mas para Psiqué-grávida esse acordo se
tornou intolerável, uma vez que o amor, como expressão da totalidade do feminino,
não é possível nas trevas. Na segunda tarefa, ela conseguiu amansar o princípio
masculino hostil na ligação erótica do que poderia ser destrutivo.
Na terceira
tarefa, a característica essencial da fonte é que ela une o superior e o inferior.
O líquido representa a corrente da energia vital, que é impossível capturar ou conter
Psiqué, como jarro feminino, deverá fazer parar o fluxo da vida, dar forma e repouso
ao que é informe e eternamente fluido. O problema apresentado por Afrodite à nora,
e que ela resolve, é o de encarcerar, conter a energia do inconsciente, sem ser
por ela despedaçada. A águia segurando a jarra representa a já masculino-feminina
espiritualidade de Psiqué. Num único ato, ela ‘‘recebe’‘ como mulher, isto é ‘‘recolhe” um jarro, e concebe
mas, ao mesmo tempo, compreende e sabe como um homem. Na terceira tarefa, ela alcançou
a reconciliação com o masculino, que lhe permite estabelecer a comunicação com o
mundo espiritual masculino.
Até aqui,
em planos diferentes, Psiqué executou as tarefas indiretamente e com a cooperação
do masculino, mas não como um ser masculino. Forçada a construir o lado masculino
da sua natureza, ela permaneceu fiel à sua feminilidade, o que fica bem claro no
quarto trabalho. As três tarefas são executadas com a assistência de ajudantes,
ou seja, por forças internas da inconsciência da heroína. O último terá que ser
executado por ela mesma. Nos primeiros trabalhos, ela lutou com o princípio masculino;
na quarta tarefa, realizada nas trevas do inconsciente, lutará com o princípio feminino
central, com Afrodite-Perséfone.
Na quarta
tarefa, a torre-conselheira, vista como um recinto-mandala, é feminina. Ao mesmo
tempo, é fálica, masculina. Além dessa significação bissexual, é construída por
mãos humanas, representando o trabalho coletivo e espiritual dos homens. Símbolo
do conhecimento humano, é chamada ‘‘a torre que vê longe’‘.
Atender
ao pedido do burriqueiro coxo de pegar a acha, um símbolo fálico, seria prender-se
para sempre, na outra vida, ao sensualismo animalesco e a uma tarefa inútil. Ajudar
o cadáver pode ser entendido como o perigo de ser possuído pelo homem morto, ou
seja, pelo espírito ancestral. As fiandeiras, símbolos da Grande Mãe, são as Queres
ou Parcas que tecem os fios da vida e da morte. Se Psiqué as ajudasse, seria mais
uma dos que povoam os reinos de Plutão. As ofertas de Perséfone, sentar e comer,
representam atitudes de intimidade e identidade que estabelecem uma permanência,
uma fixação.
Em conjunto,
as proibições e advertências da torre são claras: nessa fase de seu desenvolvimento,
Psiqué não pode se entregar à piedade, sob pena de não conseguir resolver a última
tarefa. Neste rito iniciático, atender a esta proibição significa alcançar a estabilidade
do ego. Se para o homem essa estabilidade se manifesta como resistência à dor, à
fome, à sede, e assim por diante, para a mulher se manifesta como resistência à
piedade. O feminino é ameaçado na estabilidade do ego pelo perigo da distração,
provocada pelos relacionamentos. Essa é a difícil tarefa de qualquer psique feminina
em seu caminho para a individuação: abandonar o desejo pelo que está próximo em
função de um objetivo distante e abstrato. Por esse motivo, a proibição de ter piedade
traduz a luta de Psiqué contra a natureza feminina.
Psiqué
conseguiu se sair bem das tarefas. Mas na volta do Hades, abriu a caixinha da beleza
imortal. Por quê? A beleza imortal é a beleza árida e frígida da virgindade estéril,
sem amor pelo homem, como determina a matrilinhagem. É a sedução do narcisismo,
da virgem encerrada no amor de si mesma. Colocar o creme da beleza imortal nas mãos
da nora é uma armadilha típica de Afrodite, que conhece como ninguém a feminilidade.
Que mulher resistiria a essa tentação?
Ignorando
a advertência da torre, Psiqué abre a caixinha e cai em sono profundo. Ela fracassa.
Psiqué-grávida não está preocupada com a fertilidade da natureza, mas com a fertilidade
do encontro individual. Enquanto na esfera matrilinear a gravidez conduz à união
entre mãe e filha, aqui o despertar de Psiqué conduz ao encontro do amor e da consciência.
Psiqué fracassa, e precisava fracassar, porque é uma psique feminina. Ela decidiu,
ao abrir a caixinha, não entregar à Grande Mãe aquilo que conseguiu a tão duras
penas.
O aparente
fracasso de Psiqué provoca a intervenção de Eros que, de jovem aventureiro e irresponsável,
se torna um homem, o salvador. Através do aperfeiçoamento de sua feminilidade e
do seu amor, Psiqué evoca a perfeita masculinidade de Eros.
O mito
começa com o tema da beleza. Quando era chamada de ‘‘A Nova Afrodite”, Psiqué considerava
esse dom uma desgraça. Mas agora, para se tornar ainda mais bela para Eros, está
disposta a atrair sobre si a maior das desgraças. Psiqué é uma mortal que ama um
deus e está em conflito com as deusas. Ela quer se tornar igual a seu amante divino.
De modo muito feminino, intuiu que seu sacrifício final comoveria Eros e o forçaria
a salvá-la. Ao abrir mão de seu desenvolvimento espiritual para retornar à beleza
que a tornaria atraente para Eros, ela não está realmente regredindo, mas sendo
fiel à sua natureza feminina. Ela assim se concilia com a beleza de sua própria
natureza que, depois de seu desenvolvimento, não é mais uma beleza fechada em si
mesma, nem a beleza sedutora de Afrodite, mas a beleza da mulher que ama, que deseja
ser bela para ser amada por Eros e por mais ninguém.
O casamento
de Psiqué com Eros, visto sob o ângulo feminino, significa que a faculdade de amar
da alma individual é divina e a transformação pelo amor é um mistério que deifica.
O trajeto de Psiqué até a imortalidade mostra que, se o amor e a alma humanos conquistaram
seu lugar no Olimpo, isso não se deve a um herói destemido mas a uma mulher apaixonada.
Sugestão de leitura complementar
O Poder do Mito, Joseph Campbell, editora Palas Athena
Esse
livro é fruto de uma série de conversas mantidas entre Joseph Campbell e o jornalista
Bill Moyers, numa brilhante combinação de sabedoria e humor. O casamento, os nascimentos
virginais, a trajetória do herói, o sacrifício, o ritual e até os personagens heróicos
do filme Guerra nas Estrelas são aqui tratados de maneira original. Campbell afirmava
que os mitos passados nos ajudam a compreender o presente e a nós mesmos.
She, Robert A.Johnson,
editora Mercuryo
Qual
o verdadeiro significado de ser mulher? Quais são os caminhos para a feminilidade
realizada? Há, mesmo, componentes masculinos na personalidade de uma mulher? Escritores
e cientistas, há muito, veem no antiquíssimo Mito de Eros e Psique a perfeita descrição
do crescimento feminino em direção à individuação completa e adulta.
FONTE: AMORC-CULTURAL. 3º trimestre
2001. Curitiba: AMORC-GLP, 2001. p. 4-11
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