sábado, 27 de fevereiro de 2016

ECLESIASTES: A ARTE DE VIVER BEM





Por Sérgio Carlos Covello, FRC


A idéia de que o delito acarreta inevitavelmente o castigo e a retidão traz sempre a recompensa está arraigada no inconsciente coletivo da humanidade e expressa um antigo ideal de justiça.

Essa teoria da retribuição permeia grande parte dos livros sagrados, especialmente os que compõem a Bíblia, onde talvez se tenha formado com mais ênfase. Em Provérbios 10, 3-4, por exemplo, lê-se que “O Senhor não deixa ter fome o justo, mas rechaça a avidez dos perversos. O que trabalha com mão remissa empobrece, mas a mão dos diligentes vem a enriquecer-se”. Também em Jó, 16-17: “Se o perverso amontoar prata como pó, e acumular vestes como barro, ele os acumulará, mas o justo é que os vestirá, e o inocente repartirá a prata”.

Ocorre que, na prática, isso nem sempre se verifica, pois a sociedade é constituída principalmente de pessoas egóicas só preo­cupadas com seu próprio interesse e tudo fazem para sobrepujar seus semelhantes tanto no campo profissional como no campo cultural, artístico, político e sobretudo econômico. Além disso, muitas desgraças naturais como doenças e acidentes aconte­cem a pessoas boas, enquanto pessoas de conduta não muito elogiável desfrutam de perfeita saúde e longevidade. Ante tais fatos, muitos buscam explicar as injustiças do mundo com a noção antiga de vidas passadas e débito cármico, ou, então, se atormentam e acabam perdendo a fé e a esperança, conven­cendo-se de que a vida é, na melhor das hipóteses, uma piada de mau gosto.

Há, contudo, na Bíblia, um pequeno livro que ensina a ver as coisas como são e não como gostaríamos que fossem, mostrando que a teoria da retribuição é uma das ilusões de que o homem deve desfazer-se, se quiser viver bem. Trata-se do Livro do Eclesiastes que, por fazer análise nua e crua da realidade, desconcerta os leitores e é visto com reser­vas por teólogos e exegetas apegados a convicções religiosas. Mas pelo fato de descon­certar é que promove a maturidade consciencial de quem o lê. “De sua leitura – diz Maillot – ninguém sai incólume, mas adulto ou pronto para vir a sê-lo”. Não é por outro motivo que o texto ganhou foros de palavra de Deus e é sempre citado em pregações católicas e evangélicas e mesmo em exposições meramente filosóficas.

Eclesiastes, em he­braico, coélet, significa pregador, aquele que fala e promove debates nas assembléias ou reuniões públicas, um sábio que, a exemplo de Sócrates, Platão e Platino, praticou profissionalmente a sabedoria, ensinando-a aos outros: “Eu apliquei meu coração a conhecer, a indagar e a procurar a sabedoria e a razão das coisas” (1:13). No posfácio, há a informação de que “o Pregador, além de sábio, ainda ensinou ao povo o conhecimento, e, atentando e esqua­drinhando, compôs muitos provérbios” (12:9).

Não se sabe, todavia, o nome do prega­dor, pois ele se esconde na figura de Salo­mão: “Palavras do Eclesiastes, filho de Davi, rei de Jerusalém” - diz o escritor no intróito. Mas, a obra foi escrita muito tempo depois do sábio rei, provavelmente entre os séculos 3° e 2° a.C.

A pergunta que o Eclesiastes se propõe responder no livro é: “Que proveito tira o homem de todo o trabalho com que se afadiga debaixo do sol?”.

Trata-se de pergunta intrigante que todos nós nos fazemos depois da adolescência, ainda que inconscientemente.

Observador perspicaz, homem vivido e experiente, ele responde de pronto, logo no início da obra: tudo é vaidade, vaidade de vaidades (1:2).

Vaidade (ou vento) é, no discurso do Eclesiastes, o que não tem substância, o que é efêmero e insatisfatório. Numa tradução menos literária, porém mais fiel ao original, o pensamento nuclear do livro pode resumir-se numa sentença: Tudo é vazio e fome de vento!

Para esse filósofo-pregador, a vida humana é decepcionante. Nada do que os homens costumam almejar satisfaz. A própria sabedoria (cultura), tão encarecida no consenso geral, embora seja mais proveitosa do que a ignorância, passa como o vento, e no fim de contas, tanto o sábio como o estulto têm o mesmo destino – o esquecimento, sucedendo-lhes, sem distinção, tanto coisas boas como coisas más. O trabalho também é vento, porque muitas vezes o seu produto (a remuneração, o lucro) é deixado para outrem sem nenhum merecimento: “todos os seus dias (do trabalhador) são dores e o seu trabalho desgosto” (3:23). Nada escapa aos olhos críticos do pregador, nem a riqueza nem os prazeres: “Quem ama o dinheiro, jamais dele se farta: e quem ama a abundância nunca se farta da renda”. Além disso, - pondera - a fartura do rico não o deixa dormir e, no entanto, ao morrer nada poderá levar de seu trabalho . É também, pura vaidade realizar grandes feitos, sobressair com obras grandiosas entre seus semelhantes, pois isso só traz cansaço.

As desigualdades da vida são inafastáveis, e as riquezas e os aplausos nem sempre se relacionam com o mérito: “Vi perversos receberem sepultura e entrarem no descanso, ao passo que os que freqüentavam o lugar santo, foram esquecidos na cidade, onde fizeram o bem” (8:10). Sobre a terra, há “justos a quem sucede segundo as obras dos perversos, e perversos a quem sucede segundo as obras dos justos” (8:14). A sorte parece ser a mesma para todos (justos e injustos, puros e impuros, bons e maus), pois tudo acontece por acaso. Daí, não ser necessariamente dos ligeiros o prêmio, nem dos valentes a vitória, nem dos sábios o pão, nem tampouco dos prudentes os bens materiais e dos habilidosos o favor.

O discurso do Eclesiastes é um banho de água fria nos que acreditam que fazer o bem é garantia de receber o bem, de que o trabalho traz o prêmio, de que a cultura garante o êxito profissional ou social, e de que as riquezas e os prazeres trazem a verdadeira felicidade.

Mas, a despeito dessas agruras, o homem pode viver bem desfrutando com alegria o fruto de seu trabalho, sem se preocupar com recompensa ou reconhecimento, sem fazer comparações, sem se indignar com as injustiças do acaso. O comer e o beber com moderação dão-lhe alegria, e o recrear-se é sempre salutar, visto que de nada vale ruminar a tristeza, senão somente para piorar a vida.

Do texto extrai-se uma lição superior que todo místico deve conhecer: o mundo (do ego) pode dar alegrias que são passageiras, da mesma forma como dá muitas tristezas que também são passageiras. A felicidade quem se dá é o próprio homem, transcendendo o ego e alcançando o centro divino, pois “Deus fez os homens retos, mas eles buscaram muitas invenções” (17:19). Note-se que não foi o homem sozinho que se distanciou de sua natureza divina, mas o homem em convívio com os outros homens (eles buscaram muitas invenções). O grupo social passou a discriminar, a pôr rótulos, a estabelecer regras nem sempre justas, e o ser humano se deixou iludir, apegando-se a coisas, pessoas, pensando encontra mundo exterior.

O homem desperto, cuja consciência se expandiu, sabe que há tempo para nascer e para morrer, para plantar e para colher, e é inútil não se conformar com essa lei do universo.

O pregador não é apenas filósofo, mas também um arguto psicólogo, e por isso dá conselhos sábios para uma vida equilibrada:

Não sejas demasiadamente justo, nem exageradamente sábio. Por que te destruirias a ti mesmo?”(7:16).

Não apliques o teu coração a todas as palavras que se dizem” (7:21).

Quem somente observa o tempo nunca semeará, e o que olha para as nuvens nunca segará” (11:4).

Vai, pois, come com alegria o teu pão e bebe gostosamente o teu vinho, pois Deus já de antemão se agrada de tuas obras” (9:7).

Em todo tempo sejam alvas as tuas vestes, e jamais falte óleo sobre a tua cabeça” (9:8).

Goza a vida com a mulher que amas todos os dias de sua vida fugaz, os quais Deus te deu debaixo do sol, porque esta é a tua porção nesta vida pelo trabalho com que te afadigaste debaixo do sol” (9:9).

Afasta, pois, do teu coração o desgosto e remove de tua carne a dor” (11:10).

Longe de ser homem desiludido e desesperado, como querem alguns intérpretes, o Eclesiastes é um pregador da alegria que se extrai dos prazeres moderados, dos bons pensamentos e da contemplação da natureza. Para os que têm olhos para ver e inteligência para compreender, esse pequeno grande livro faz entender que o desespero, a revolta, a indignação não mudam a ordem das coisas, e para nada servem. Afinal, “o que é torto não se pode endireitar, e o que falta, não se pode calcular” (1:15), mas desfrutar sem apego das alegrias disponíveis e aceitar com compreensão as agruras é suma sabedoria.


FONTE: COVELLO, Sérgio Carlos. Eclesiastes: a arte de viver bem. In: O Rosacruz. n. 251. 1° trimestre 2005. Curitiba: AMORC-GLP, 2005. p. 42-45.

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