Por Sérgio Carlos
Covello, FRC
A idéia
de que o delito acarreta inevitavelmente o castigo e a retidão traz sempre a
recompensa está arraigada no inconsciente coletivo da humanidade e expressa um
antigo ideal de justiça.
Essa
teoria da retribuição permeia grande parte dos livros sagrados, especialmente
os que compõem a Bíblia, onde talvez se tenha formado com mais ênfase. Em
Provérbios 10, 3-4, por exemplo, lê-se que “O
Senhor não deixa ter fome o justo, mas rechaça a avidez dos perversos. O que
trabalha com mão remissa empobrece, mas a mão dos diligentes vem a
enriquecer-se”. Também em Jó, 16-17: “Se
o perverso amontoar prata como pó, e acumular vestes como barro, ele os
acumulará, mas o justo é que os vestirá, e o inocente repartirá a prata”.
Ocorre
que, na prática, isso nem sempre se verifica, pois a sociedade é constituída
principalmente de pessoas egóicas só preocupadas com seu próprio interesse e
tudo fazem para sobrepujar seus semelhantes tanto no campo profissional como no
campo cultural, artístico, político e sobretudo econômico. Além disso, muitas
desgraças naturais como doenças e acidentes acontecem a pessoas boas, enquanto
pessoas de conduta não muito elogiável desfrutam de perfeita saúde e
longevidade. Ante tais fatos, muitos buscam explicar as injustiças do mundo com
a noção antiga de vidas passadas e débito cármico, ou, então, se atormentam
e acabam perdendo a fé e a esperança, convencendo-se de que a vida é, na
melhor das hipóteses, uma piada de mau gosto.
Há,
contudo, na Bíblia, um pequeno livro que ensina a ver as coisas como são e não
como gostaríamos que fossem, mostrando que a teoria da retribuição é uma das
ilusões de que o homem deve desfazer-se, se quiser viver bem. Trata-se do Livro do Eclesiastes que, por fazer
análise nua e crua da realidade, desconcerta os leitores e é visto com reservas
por teólogos e exegetas apegados a convicções religiosas. Mas pelo fato de
desconcertar é que promove a maturidade consciencial de quem o lê. “De sua leitura – diz Maillot – ninguém sai incólume, mas adulto ou pronto
para vir a sê-lo”. Não é por outro motivo que o texto ganhou foros de
palavra de Deus e é sempre citado em pregações católicas e evangélicas e mesmo
em exposições meramente filosóficas.
Eclesiastes, em
hebraico, coélet, significa
pregador, aquele que fala e promove debates nas assembléias ou reuniões
públicas, um sábio que, a exemplo de Sócrates, Platão e Platino, praticou profissionalmente
a sabedoria, ensinando-a aos outros: “Eu
apliquei meu coração a conhecer, a indagar e a procurar a sabedoria e a razão das
coisas” (1:13). No posfácio, há a informação de que “o Pregador, além de sábio, ainda ensinou ao povo o conhecimento, e,
atentando e esquadrinhando, compôs muitos provérbios” (12:9).
Não
se sabe, todavia, o nome do pregador, pois ele se esconde na figura de Salomão:
“Palavras do Eclesiastes, filho de Davi,
rei de Jerusalém” - diz o escritor no intróito. Mas, a obra foi escrita
muito tempo depois do sábio rei, provavelmente entre os séculos 3° e 2° a.C.
A
pergunta que o Eclesiastes se propõe responder no livro é: “Que proveito tira o homem de todo o trabalho
com que se afadiga debaixo do sol?”.
Trata-se
de pergunta intrigante que todos nós nos fazemos depois da adolescência, ainda
que inconscientemente.
Observador
perspicaz, homem vivido e experiente, ele responde de pronto, logo no início da
obra: tudo é vaidade, vaidade de vaidades (1:2).
Vaidade (ou
vento) é, no discurso do Eclesiastes, o que não tem substância, o que é efêmero
e insatisfatório. Numa tradução menos literária, porém mais fiel ao original, o
pensamento nuclear do livro pode resumir-se numa sentença: Tudo é vazio e fome de vento!
Para
esse filósofo-pregador, a vida humana é decepcionante. Nada do que os homens
costumam almejar satisfaz. A própria sabedoria (cultura), tão encarecida no
consenso geral, embora seja mais proveitosa do que a ignorância, passa como o
vento, e no fim de contas, tanto o sábio como o estulto têm o mesmo destino – o
esquecimento, sucedendo-lhes, sem distinção, tanto coisas boas como coisas más.
O trabalho também é vento, porque muitas vezes o seu produto (a remuneração, o
lucro) é deixado para outrem sem nenhum merecimento: “todos os seus dias (do trabalhador) são dores e o seu trabalho desgosto”
(3:23). Nada escapa aos olhos críticos do pregador, nem a riqueza nem os
prazeres: “Quem ama o dinheiro, jamais
dele se farta: e quem ama a abundância nunca se farta da renda”. Além
disso, - pondera - a fartura do rico não o deixa dormir e, no entanto, ao morrer
nada poderá levar de seu trabalho . É também, pura vaidade realizar grandes
feitos, sobressair com obras grandiosas entre seus semelhantes, pois isso só
traz cansaço.
As
desigualdades da vida são inafastáveis, e as riquezas e os aplausos nem sempre
se relacionam com o mérito: “Vi perversos
receberem sepultura e entrarem no descanso, ao passo que os que freqüentavam o
lugar santo, foram esquecidos na cidade, onde fizeram o bem” (8:10). Sobre
a terra, há “justos a quem sucede segundo
as obras dos perversos, e perversos a quem sucede segundo as obras dos justos”
(8:14). A sorte parece ser a mesma para todos (justos e injustos, puros e
impuros, bons e maus), pois tudo acontece por acaso. Daí, não ser
necessariamente dos ligeiros o prêmio, nem dos valentes a vitória, nem dos
sábios o pão, nem tampouco dos prudentes os bens materiais e dos habilidosos o
favor.
O
discurso do Eclesiastes é um banho de água fria nos que acreditam que fazer o
bem é garantia de receber o bem, de que o trabalho traz o prêmio, de que a
cultura garante o êxito profissional ou social, e de que as riquezas e os prazeres
trazem a verdadeira felicidade.
Mas,
a despeito dessas agruras, o homem pode viver bem desfrutando com alegria o fruto
de seu trabalho, sem se preocupar com recompensa ou reconhecimento, sem fazer comparações, sem se indignar com as injustiças
do acaso. O comer e o beber com moderação dão-lhe alegria, e o recrear-se é sempre
salutar, visto que de nada vale ruminar a tristeza, senão somente para piorar a
vida.
Do texto
extrai-se uma lição superior que todo místico deve conhecer: o mundo (do ego) pode
dar alegrias que são passageiras, da mesma forma como dá muitas tristezas que também
são passageiras. A felicidade quem se dá é o próprio homem, transcendendo o ego
e alcançando o centro divino, pois “Deus fez
os homens retos, mas eles buscaram muitas invenções” (17:19). Note-se que não
foi o homem sozinho que se distanciou de sua natureza divina, mas o homem em convívio
com os outros homens (eles buscaram muitas
invenções). O grupo social passou a discriminar, a pôr rótulos, a estabelecer
regras nem sempre justas, e o ser humano se deixou iludir,
apegando-se a coisas, pessoas, pensando encontra mundo exterior.
O homem
desperto, cuja consciência se expandiu, sabe que há tempo para nascer e para morrer,
para plantar e para colher, e é inútil não se conformar com essa lei do universo.
O pregador
não é apenas filósofo, mas também um arguto psicólogo, e por isso dá conselhos sábios
para uma vida equilibrada:
“Não sejas demasiadamente justo, nem exageradamente
sábio. Por que te destruirias a ti mesmo?”(7:16).
“Não apliques o teu coração a todas as palavras
que se dizem” (7:21).
“Quem somente observa o tempo nunca semeará, e
o que olha para as nuvens nunca segará” (11:4).
“Vai, pois, come com alegria o teu pão e bebe
gostosamente o teu vinho, pois Deus já de antemão se agrada de tuas obras” (9:7).
“Em todo tempo sejam alvas as tuas vestes, e jamais
falte óleo sobre a tua cabeça” (9:8).
“Goza a vida com a mulher que amas todos os dias
de sua vida fugaz, os quais Deus te deu debaixo do sol, porque esta é a tua porção
nesta vida pelo trabalho com que te afadigaste debaixo do sol” (9:9).
“Afasta, pois, do teu coração o desgosto e remove
de tua carne a dor” (11:10).
Longe
de ser homem desiludido e desesperado, como querem alguns intérpretes, o Eclesiastes
é um pregador da alegria que se extrai dos prazeres moderados, dos bons pensamentos
e da contemplação da natureza. Para os que têm olhos para ver e inteligência para
compreender, esse pequeno grande livro faz entender que o desespero, a revolta,
a indignação não mudam a ordem das coisas, e para nada servem. Afinal, “o que é torto não se pode endireitar, e o que
falta, não se pode calcular” (1:15), mas desfrutar sem apego das alegrias disponíveis
e aceitar com compreensão as agruras é suma sabedoria.
FONTE: COVELLO,
Sérgio Carlos. Eclesiastes: a arte de viver bem. In: O Rosacruz. n. 251. 1° trimestre 2005. Curitiba: AMORC-GLP,
2005. p. 42-45.
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