Autora: Punita Miranda RMA
O cultivo de estados mentais
anormais nos quais é possível acessar um conhecimento espiritual é uma prática
antiga. ‘Explorações psíquicas’ como os estados xamânicos de transe, as
práticas de feiticeiras e videntes que traziam visões do passado e insights sobre
o futuro, as danças ritmadas e os rituais extáticos, as profecias e a
mediunidade desempenharam papel importante tanto em sociedades ‘primitivas’
quanto nas ‘civilizadas’.
Todos esses praticantes
afirmavam haver alcançado conhecimento superior e pessoal, ou ‘gnose’, em um
estado que diziam ser ‘diferente’ da consciência desperta comum. Embora hoje se
use a expressão ‘estados alterados de consciência’ (EAC) para designar um amplo
campo de manifestações e experiências psíquicas profundas, a ausência de uma
terminologia adequada ainda é um dos principais obstáculos encontrados por
estudiosos no campo do esoterismo ocidental; o outro é a dificuldade de
classificar a grande variedade de fenômenos que não podem ser diretamente
observados. No entanto, uma vez superada esta barreira mental, um horizonte
mais amplo aguarda o pesquisador, que disporá de recursos úteis para a
compreensão das dimensões ‘alteradas’ ou, em muitos casos, ‘extáticas’ dos
relatos clássicos e modernos.3
A ampla variedade de métodos
utilizados na pesquisa sobre estados alterados de consciência abrange desde a
meditação tradicional, estados espontâneos de transe e visões em sonhos até o
uso de plantas psicoativas e substâncias químicas. Existe, em geral, um
processo de indução a partir do qual a pessoa começa a transição, partindo do
estado desperto cognitivo normal até chegar ao estado alterado. As mudanças
resultantes podem ser imensas e variadas. Aquilo que se experiencia é
basicamente subjetivo, e não existe nenhum estado de consciência universal ou
uniforme que possa ser tomado como linha de base.4 À luz de tal
complexidade, não é minha intenção discutir aqui as condições necessárias para
a ocorrência dos estados alterados de consciência e as inúmeras variedades dos
mesmos; em vez disso, irei me restringir à investigação das técnicas de
imaginação ativa descobertas pelo psiquiatra suíço Carl Gustav Jung (1875-1961)
e exploradas extensamente em seu O Livro Vermelho (2013). Dado que Jung
estava interessado em tantas tradições esotéricas encontradas, em diferentes
formas, em todas as épocas e culturas, é apenas natural tomá-lo como um
influente representante da busca pela gnose no século XX.
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AS 4 ETAPAS DA IMAGINAÇÃO ATIVA
A técnica de Jung para induzir
fantasias espontâneas pode ser desenvolvida com a prática; é um treino que
consiste em exercícios sistemáticos destinados a produzir um vazio na
consciência.70
Essa técnica pode ser
dividida em quatro etapas simples:
1. É preciso livrar-se do fluxo constante de
pensamento do ego e tentar eliminar o julgamento crítico.71
2. Deve-se permitir que a imagem mental
aflore do inconsciente para o campo de percepção interior, e ela deve ser
acolhida como se fosse objetivamente real. Não se deve acelerar o processo e
nem se concentrar excessivamente nele. Esta fase é como sonhar de olhos
abertos.
3. Então, o praticante deve dar uma forma à
imagem mental percebida internamente, registrando-a por escrito. Pessoas do
tipo áudio-verbal ‘ouvem’ palavras internas, mas a imagem também pode ser
expressa por meio de pintura, escultura, pode ser escrita como música ou dança,
dependendo da propensão do indivíduo. Deve-se ter em mente que o excesso de
forma mata o conteúdo. As imagens poderão se transformar, se desenvolver, mas
não se deve deixar que se alterem como um caleidoscópio. Barbara Hannah detalha
essa explicação: ‘Se a primeira imagem é um pássaro, por exemplo, e se for
deixada por conta própria, num relâmpago ela se transformará em um leão, num
navio no mar ou numa cena de batalha. A técnica consiste em manter a atenção
sobre a primeira imagem e não deixar fugir o pássaro até que ele explique por
que apareceu para nós, que mensagem traz do inconsciente ou o que quer saber de
nós.’72 Marie-Louise Franz observa que o diálogo sempre contém um
elemento de surpresa, e a pessoa pode sentir ‘o quão estranhamente vivo é o
parceiro de conversa’.73
4. Após a formulação criativa e a
compreensão do significado e do valor vem a questão-chave de o que fazer com o
material produzido. O próximo passo deve ser um confronto moral com o material
que se produziu, e é importante estar ciente de que, com o uso de drogas, esta
fase do processo estará ausente, uma vez que o ego não tem como assumir a
responsabilidade requerida.
Jung explica que:
A
mudança de atitude é provocada com a integração à consciência dos conteúdos
anteriormente inconscientes. Essa integração traz, inevitavelmente, uma mudança
muito perceptível. A mudança nunca é neutra. Trata-se, essencialmente, de um
alargamento da consciência, de um desafio e um risco para a totalidade da
personalidade - o risco inerente ao desenvolvimento da consciência humana.74
Assim, o ponto de partida
depende do inconsciente: um estado de espírito, um pensamento obsessivo, uma
imagem de um sonho ou uma imagem que ganha vida por si só. Não existem
requisitos preliminares para a imaginação ativa, ela não requer controle da
respiração, relaxamento, visualizações ou uma postura específica do corpo, e a
experiência normalmente dura entre dez e quinze minutos.75 Por mais
simples que pareça, no entanto, esse processo tem suas dificuldades iniciais: a
crítica interna, dúvidas sobre se é meramente uma invenção, e a impaciência com
a cooperação do inconsciente. Mas é o ego que assume a liderança,
concentrando-se na imagem mental e dando-lhe forma. O simples fato de se permanecer
na fronteira permite que as portas entre consciente e inconsciente se ampliem,
e pode-se perceber a existência de uma gama de experiências abaixo do limiar da
consciência. Nesta fase, há uma duplicação da consciência: o ego ainda está
presente, desperto, mas também a imagem mental que surgiu do inconsciente.
Normalmente, a imagem mudará, pois ‘o simples fato de contemplá-la a animará’.76
Então, tudo deve ser registrado por escrito para refletir o que está
acontecendo no segundo plano. É fundamental que se trate o imaginário como
sendo tão real quanto a realidade externa, ‘exatamente como se um diálogo
estivesse ocorrendo entre dois seres humanos com direitos iguais’.77
O vai e vem desse diálogo
permite que a imagem mental ou o personagem torne-se um mediador entre aquilo
que é desconhecido e o que é manifesto. Se esse processo é levado a sério – não
literalmente –, o resultado final é a colaboração entre o mundo interior de
imagens e o mundo externo.78 Os benefícios imediatos são uma
aceleração no processo de amadurecimento, o desenvolvimento da personalidade e
um alargamento da consciência, dado que os conteúdos inconscientes tendem a
complementar ou corrigir atitudes unilaterais.
No entanto, como Jung deixou
claro, esse método não é totalmente isento de perigos, e nem todos os
indivíduos são adequados para isso. Deve-se ter cuidado no caso de indivíduos
fragmentados, pois conteúdos subliminares ativados podem dominar a mente
consciente, levando a um intervalo psicótico.79 Tampouco deve a
imaginação ativa ser praticada como um meio de influenciar outras pessoas, mas
apenas para se chegar à verdade sobre si mesmo.80 Finalmente, é
sempre um desafio assimilar um conteúdo inconsciente, considerando-se que uma
expansão da consciência torna o ego responsável pelo que era anteriormente
inconsciente, e o indivíduo se depara com a tarefa de fazer um esforço
consciente para viver de acordo com o que foi descoberto.
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No contexto dos estados
alterados de consciência, isso é uma inovação: como tem sido demonstrado, há
uma diferença significativa entre a imaginação ativa e as imagens no sonho,
onde a consciência é reduzida pelo sono profundo, e também entre ela e os
estados alterados de consciência psicodelicamente induzidos, nos quais a
faculdade analítica é prejudicada ou comprometida. O tipo de integração
facilitada pela imaginação ativa só é possível em um estado de vigília, ou
seja, em um estado consciente da mente; talvez a noção de ‘estado alterado de
percepção consciente’ (awareness) proposta por Erika Fromm fosse uma
melhor designação para a imaginação ativa.82
NOTAS
3 Para exemplos de relatos clássicos e
modernos, ver: ‘The Blessings of Madness’, em: Dodds, The Greeks and the
Irrational, pp. 64-101. ‘Religio Mentis’, em: Fowden, The Egyptian
Hermes, pp. 95-115. Benz, ‘Swedenborg’s Visions’, em: Idem, Emanuel
Swedenborg, pp. 275-326; Harner, ‘The Role of Hallucinogenic Plants in
European Witchcraft’.
4 Para informação adicional sobre a noção de linha de base, ver I. Barušs, Alterations of Consciousness, p.9.
70 Ibid, p. 78, § 155; Shamdasani,
‘Introdução’, em: Jung, O Livro Vermelho, p. 48.
71 Para mais detalhes, ver Hannah, Encounters
with the Soul, pp. 16-21; Shamdasani, ‘Introdução’, em: Jung, O Livro
Vermelho, pp. 48-9; Jung, Mysterium Coniunctionis, p. 495-6, § 706;
Idem, The Structure and Dynamics of the Psyche, pp. 67-91, §131-140; Von
Franz, Psychotherapy, pp. 163-168; Hull, ‘Bibliographical Notes on
Active Imagination’, pp. 115-120.
72 Hannah, Encounters
with the Soul, p. 21.
73 Von Franz, Psychotherapy,
p.149.
74 Jung, The
Symbolic Life, p. 613, § 1402.
75 Humbert, ‘Active
Imagination’, pp. 103, 109-111.
76 Jung, Mysterium
Coniunctionis, p. 495, § 706.
77 Idem, The
Structure and Dynamics of the Psyche, p. 89, § 186. Ver também Vannoy
Adams, ‘The Archetypal School’, p. 111.
78 Jung, MDR, p.
220. Shamdasani,
‘Introdução’, em: Jung, O Livro Vermelho, p. 218.
79 Idem,
‘Prefatory Note’, ‘The Transcendent Function’, em: The Structure and
Dynamics of the Psyche, p. 68.
80 Von Franz, Psychotherapy, p. 175.
82 Fromm,
‘Altered States of Consciousness and Ego Psychology’, p. 563.
MIRANDA, Punita. A Imaginação Ativa de C. G. Jung: Personalidades Alternadas e Estados Alterados de Consciência. Actas/Anais I Congresso Lusófono sobre Esoterismo Ocidental. v. II. Estudos Junguianos: O Homem Moderno em Busca da Alma. Lisboa, 2016. ISBN: 978-989-757-048-3.
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