quinta-feira, 8 de dezembro de 2022

SÃO FRANCISCO

 

 

Por Hermann Hesse

  

Intimamente feliz com a liberdade conquistada, Francisco percorria os vales e as verdes colinas de sua terra, abençoado e bem- aventurado. A beleza desta Terra revelou-se ao seu amor pueril e afetuoso como um mundo renascido e transfigurado: as árvores em flor, a relva macia, as águas correntes e cintilantes, as nuvens que passavam pelo azul-celeste e o canto de alegria dos pássaros tornaram-se seus amigos fraternos. Pois de seus olhos e de seus ouvidos caíra um véu, e ele enxergava o mundo purificado e sagrado, transfigurado como nos primeiros dias do esplendor do Paraíso.

E não foi alucinação, embriaguez nem ilusão fugaz, pois, a partir daquele dia, mesmo em tempos amargos, difíceis e muito dolorosos, Francisco continuou sendo até o fim um bem-aventurado e eleito, que ouvia a voz de Deus em cada caule, em cada riacho, e sobre ele a dor e o pecado não tinham poder nenhum. Foi por isso que, ao longo dos séculos, incontáveis pessoas o amaram e o veneraram, sua imagem e a história de sua vida foram mil vezes representadas, contadas, cantadas e esculpidas por artistas, poetas e estudiosos, como nenhuma imagem ou nenhum feito de príncipes e poderosos, e seu nome e sua reputação chegaram aos nossos tempos como um cântico da vida e consolo divino, e o que ele disse e fez ressoa hoje com tanto vigor como em sua época, há setecentos anos. Houve outros santos, cuja alma não era menos pura e nobre, todavia nos lembramos menos deles; ele, porém, era uma criança e um poeta, mestre e professor do amor, amigo humilde e fraterno de todas as criaturas. E, se os homens se esquecessem dele, as pedras e as fontes, as flores e os pássaros dele falariam. Porque, como verdadeiro poeta, ele conseguia livrar todas essas coisas do encanto que o pecado e a insensatez sobre elas pousara, revelando-as em sua beleza pura e original diante de nossos olhos.

 

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Quando chegaram perto de Assis, escolheram uma cabana vaga chamada Rivo Torto para ser sua morada. Ali, na encosta da montanha, havia uma região solitária e selvagem onde Francisco muitas vezes costumava passar vários dias seguidos a rezar e meditar, pois, mesmo detestando profundamente o ócio e dedicando todas as suas forças a servir o próximo, seu ânimo sensível e delicado sofria muito todos os dias ao ver a miséria humana. Desse modo, costumava retirar-se na solidão para permitir que seu coração cansado descansasse e rejuvenescesse nas fontes da vida.

Rejuvenescer diariamente na vida da natureza e haurir energias da terra é uma arte magnífica e maravilhosa que se encontra apenas em poetas e verdadeiros santos, e ele sempre a praticou com incomparável maestria. Como uma criança e como um sábio, ele falava com as flores, a relva, as águas e inúmeros animais, entoava cânticos em louvor a eles, amava-os e consolava-os, alegrava-se com eles e participava de sua vida inocente. Apenas aos diletos de Deus é concedido que a mente e o coração não envelheçam e se mantenham a vida inteira com o frescor e a gratidão de crianças. A bondade verdadeira e pura do coração é como um segredo mágico de Salomão, que revela aos homens a linguagem dos animais e a essência íntima de plantas, árvores, pedras e montanhas, de tal forma que a múltipla criação se abre diante de seus olhos como uma unidade completa, sem abismos e reinos de sombra ocultos e hostis. Sendo um eleito de Deus, Francisco compreendia a beleza da Terra como raras vezes outro poeta a compreendera, amava cada criatura, pequena ou grande, e elas o amavam e lhe davam respostas. Quando se cansava de falar com pessoas, ia aos campos, às matas e aos vales e ouvia nas fontes, nos ventos e no canto dos pássaros a poderosa e doce linguagem do Paraíso. Sabia muito bem que não havia nada sobre a Terra que não tivesse alma, e ia ao encontro de cada alma, mesmo a da relva e das pedras, com fraternal respeito e amor.

 

REFERÊNCIA:

 

HESSE, Hermann. Francisco de Assis. Tradução: Kristina Michaelles. 4. ed. Rio de Janeiro: Record, 2022. p. 28-29, 37-38.

2 comentários:

  1. Já admirava demais Hermann Hesse. Agora então lhe presto minhas reverências! Reverências eternas a Francisco de puro Amor! 🙏

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  2. Um texto realmente excepcional! Obrigado pelo comentário! Hesse foi um grande admirador de São Francisco. E se pararmos para pensar, provavelmente São Francisco foi o primeiro a conciliar ecologia e espiritualidade.
    Paz!

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