Por
Hermann Hesse
Intimamente feliz com a liberdade conquistada, Francisco percorria os vales
e as verdes colinas de sua terra, abençoado e bem- aventurado. A beleza desta
Terra revelou-se ao seu amor pueril e afetuoso como um mundo renascido e
transfigurado: as árvores em flor, a relva macia, as águas correntes e
cintilantes, as nuvens que passavam pelo azul-celeste e o canto de alegria dos
pássaros tornaram-se seus amigos fraternos. Pois de seus olhos e de seus ouvidos
caíra um véu, e ele enxergava o mundo purificado e sagrado, transfigurado como
nos primeiros dias do esplendor do Paraíso.
E não foi alucinação, embriaguez nem ilusão fugaz, pois, a partir daquele
dia, mesmo em tempos amargos, difíceis e muito dolorosos, Francisco continuou
sendo até o fim um bem-aventurado e eleito, que ouvia a voz de Deus em cada
caule, em cada riacho, e sobre ele a dor e o pecado não tinham poder nenhum.
Foi por isso que, ao longo dos séculos, incontáveis pessoas o amaram e o
veneraram, sua imagem e a história de sua vida foram mil vezes representadas,
contadas, cantadas e esculpidas por artistas, poetas e estudiosos, como nenhuma
imagem ou nenhum feito de príncipes e poderosos, e seu nome e sua reputação
chegaram aos nossos tempos como um cântico da vida e consolo divino, e o que
ele disse e fez ressoa hoje com tanto vigor como em sua época, há setecentos
anos. Houve outros santos, cuja alma não era menos pura e nobre, todavia nos
lembramos menos deles; ele, porém, era uma criança e um poeta, mestre e
professor do amor, amigo humilde e fraterno de todas as criaturas. E, se os
homens se esquecessem dele, as pedras e as fontes, as flores e os pássaros dele
falariam. Porque, como verdadeiro poeta, ele conseguia livrar todas essas
coisas do encanto que o pecado e a insensatez sobre elas pousara, revelando-as
em sua beleza pura e original diante de nossos olhos.
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Quando chegaram perto de
Assis, escolheram uma cabana vaga chamada Rivo Torto para ser sua morada. Ali,
na encosta da montanha, havia uma região solitária e selvagem onde Francisco
muitas vezes costumava passar vários dias seguidos a rezar e meditar, pois,
mesmo detestando profundamente o ócio e dedicando todas as suas forças a servir
o próximo, seu ânimo sensível e delicado sofria muito todos os dias ao ver a
miséria humana. Desse modo, costumava retirar-se na solidão para permitir que
seu coração cansado descansasse e rejuvenescesse nas fontes da vida.
Rejuvenescer diariamente na
vida da natureza e haurir energias da terra é uma arte magnífica e maravilhosa
que se encontra apenas em poetas e verdadeiros santos, e ele sempre a praticou
com incomparável maestria. Como uma criança e como um sábio, ele falava com as
flores, a relva, as águas e inúmeros animais, entoava cânticos em louvor a eles,
amava-os e consolava-os, alegrava-se com eles e participava de sua vida
inocente. Apenas aos diletos de Deus é concedido que a mente e o coração não
envelheçam e se mantenham a vida inteira com o frescor e a gratidão de
crianças. A bondade verdadeira e pura do coração é como um segredo mágico de
Salomão, que revela aos homens a linguagem dos animais e a essência íntima de
plantas, árvores, pedras e montanhas, de tal forma que a múltipla criação se
abre diante de seus olhos como uma unidade completa, sem abismos e reinos de
sombra ocultos e hostis. Sendo um eleito de Deus, Francisco compreendia a
beleza da Terra como raras vezes outro poeta a compreendera, amava cada
criatura, pequena ou grande, e elas o amavam e lhe davam respostas. Quando se
cansava de falar com pessoas, ia aos campos, às matas e aos vales e ouvia nas
fontes, nos ventos e no canto dos pássaros a poderosa e doce linguagem do
Paraíso. Sabia muito bem que não havia nada sobre a Terra que não tivesse alma,
e ia ao encontro de cada alma, mesmo a da relva e das pedras, com fraternal
respeito e amor.
REFERÊNCIA:
HESSE, Hermann. Francisco de Assis. Tradução: Kristina Michaelles. 4. ed. Rio de Janeiro: Record, 2022. p. 28-29, 37-38.
Já admirava demais Hermann Hesse. Agora então lhe presto minhas reverências! Reverências eternas a Francisco de puro Amor! 🙏
ResponderExcluirUm texto realmente excepcional! Obrigado pelo comentário! Hesse foi um grande admirador de São Francisco. E se pararmos para pensar, provavelmente São Francisco foi o primeiro a conciliar ecologia e espiritualidade.
ResponderExcluirPaz!