sábado, 28 de maio de 2022

DESPERTAR, DE SAM HARRIS – APONTAMENTOS

 

 

HARRIS, Sam. Despertar: um guia para a espiritualidade sem religião. Laura Teixeira Motta (trad.). 1. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.

 

A prática da meditação por longo tempo também está associada a uma variedade de mudanças estruturais no cérebro. Meditadores tendem a possuir corpo caloso e hipocampo maiores (nos dois hemisférios). A prática também está relacionada a uma maior espessura da substância cinzenta e à maior formação de sulcos e giros no córtex. Algumas dessas diferenças se salientam em especial em praticantes mais velhos, o que sugere que a meditação poderia proteger contra um adelgaçamento do córtex devido à idade. A importância cognitiva, emocional e comportamental desses achados anatômicos ainda não foi estudada, mas não é difícil ver que eles poderiam explicar os tipos de experiências e mudanças psicológicas relatadas por meditadores.

 

p. 132.

 

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A suprema sabedoria da iluminação, seja ela o que for, não pode se constituir de experiências fugazes. O objetivo da meditação é descobrir uma forma de bem-estar que seja inerente à natureza da mente. Portanto, ela tem de estar disponível no contexto das visões, dos sons, das sensações e até dos pensamentos comuns. Experiências culminantes são ótimas, mas a liberdade verdadeira precisa coincidir com a vida normal de quando estamos acordados.

 

p. 135.

 

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Embora a filosofia do Advaita, e as próprias palavras de Ramana, tendam a corroborar a interpretação metafísica de ensinamentos desse tipo, sua validade não é metafísica. Em vez disso, ela é experiencial. Todo o Advaita pode ser sintetizado em uma série de afirmações simples e possíveis de serem testadas: a consciência é a condição prévia de toda experiência; o self ou ego é uma aparição ilusória dentro dela; se você procurar com atenção o que chama de “eu”, o sentimento de ser um self distinto desaparecerá; o que resta, por experiência, é um campo de consciência - livre, indivisa e intrinsecamente não contaminada por seus conteúdos sempre mutáveis.

 

p. 140-141.

 

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Eis o perigo de ensinamentos não duais como os que Poonja-ji fornecia a todos os que lhe procuravam. Era fácil alguém se iludir pensando que alcançara um avanço permanente, ainda mais porque ele garantia que todos os avanços tinham de ser permanentes. Já os ensinamentos do Dzogchen deixavam claro que pensar sobre o que existe além do pensamento continua a ser pensar, e um vislumbre da ausência de self em geral é apenas o começo de um processo que precisa alcançar a realização. Ser capaz de ficar absolutamente livre do sentido de self é o começo, não o fim, da jornada espiritual.

 

p. 145.

 

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A mudança de perspectiva não é uma questão de se ter novos pensamentos. É bem fácil pensar que este livro é apenas uma aparição na consciência. Outra coisa é reconhecê-lo como tal, antes que esse pensamento surja.

O gesto que precipita esse insight para a maioria das pessoas é tentar inverter a consciência – procurar por aquilo que está procurando – e notar, no primeiro instante em que se busca o self, o que acontece com a aparente divisão entre sujeito e objeto. Você ainda sente que está ali, atrás dos seus olhos, olhando para um mundo de objetos?

É mesmo possível buscar o sentimento que você chama de “eu” e não o encontrar de um modo conclusivo.

 

p. 152.

 

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Como é que uma coisa pode estar logo à superfície da experiência e ser difícil de ver? Já esbocei uma analogia com o ponto cego óptico. Mas outras analogias nos dão uma noção mais clara da mudança sutil na atenção que é necessária para vermos o que está bem diante dos nossos olhos.

Todos já tivemos a experiência de olhar pela janela e notar de repente nosso reflexo na vidraça. Nesse momento, temos uma escolha: usar a janela como janela e ver o mundo lá fora ou usá-la como espelho. É extraordinariamente fácil transitar entre esses dois pontos de vista, mas impossível conseguir enfocar bem os dois ao mesmo tempo. Essa mudança de perspectiva fornece uma boa analogia para como é reconhecer o caráter ilusório do self pela primeira vez e para explicar por que podemos demorar tanto para conseguir esse reconhecimento.

Imagine que você quer mostrar a alguém como uma janela também funciona como espelho. Seu amigo nunca viu esse efeito e duvida do que você diz. Você lhe mostra a maior janela da casa e, embora as condições sejam perfeitas para que ele veja seu reflexo, ele é imediatamente cativado pelo mundo lá fora. Que vista bonita! Quem são seus vizinhos? Aquilo é uma macieira ou uma figueira? Você começa a dizer que existem duas vistas e que o reflexo do seu amigo está bem diante dele agora, mas ele só nota que o cachorro do vizinho escapou pela porta da frente e está correndo na calçada. A cada momento, está claro para você que o seu amigo está olhando direto através da imagem de seu rosto sem vê-la.

 

p. 158-159.

 

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Mas não devemos nos precipitar e sentir saudade da contracultura dos anos 1960. É verdade que houve descobertas cruciais para as esferas social e psicológica e que as drogas foram centrais nesse processo, mas basta ler relatos sobre a época, como Slouching Towards Bethlehem, de Joan Didion, para ver o problema que existe em uma sociedade voltada para o êxtase a qualquer custo.

Para cada insight de valor duradouro produzido por drogas, houve um exército de zumbis com flores na cabeça que se arrastaram para o fracasso e o arrependimento. Ligar-se, sintonizar-se e cair fora é uma atitude sábia, ou até benigna, apenas se você puder entrar em um modo de vida que faça sentido ética e materialmente e não deixar seus filhos soltos na rua no meio dos carros.

O abuso e a dependência de drogas são problemas muito reais, cujos remédios são educação e tratamento médico, e não a prisão. De fato, hoje nos Estados Unidos parece que a oxicodona e outros analgésicos prescritos em farmacoterapia representam a maior porcentagem de abuso. Esses medicamentos devem ser declarados ilegais? Claro que não. Mas é necessário informar as pessoas sobre seus riscos, e os dependentes precisam de tratamento. E todas as drogas –inclusive álcool, cigarro e aspirina – têm de ser mantidas fora do alcance das crianças.

 

p. 199.

 

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Tenho duas filhas que um dia usarão drogas. Obviamente farei tudo ao meu alcance para garantir que elas as usem com sabedoria, mas uma vida inteiramente sem drogas não é algo previsível e nem, a meu ver, desejável. Espero que um dia elas apreciem uma xícara de chá ou café pela manhã como eu faço. Se tomarem bebidas alcoólicas na vida adulta, o que é provável que aconteça, eu as incentivarei a fazê-lo com segurança. Se decidirem fumar maconha, recomendarei moderação. Do fumo se deve fugir, e farei tudo o que estiver no limite da ação de um pai que se preze para mantê-las longe dele. Nem é preciso dizer que, se eu souber que uma de minhas filhas acabará por adquirir gosto por metanfetamina ou heroína, talvez eu nunca mais consiga dormir. Mas se elas não experimentarem uma substância psicodélica como a psilocibina ou o LSD pelo menos uma vez na vida adulta, pensarei se não terão perdido um dos ritos de passagem mais importantes que um ser humano pode vivenciar.


p. 200.

 

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Pode parecer que a eficácia de substâncias psicodélicas estabelece, sem sombra de dúvida, a base material da vida mental e espiritual, já que a introdução dessas drogas no cérebro é a causa óbvia de todo apocalipse sobrenatural subsequente. Contudo, é possível, se não efetivamente plausível, usarmos essa evidência com o efeito oposto e argumentar, como fez Aldous Huxley em seu clássico As portas da percepção, que a função primária do cérebro talvez seja eliminatória: seu propósito pode ser impedir que uma dimensão transpessoal da mente inunde a consciência e, com isso, permitir que primatas como nós sigam pelo mundo sem se deslumbrar a cada passo com fenômenos visionários que não são relevantes para a sobrevivência física. Huxley pensava no cérebro como uma espécie de “válvula redutora” para a “Mente Como um Todo”. De fato, a ideia de que o cérebro é um filtro e não a origem da mente remonta a Henri Bergson e William James. Para Huxley, isso explicaria a eficácia das substâncias psicodélicas: elas podem ser apenas um meio material de abrir a torneira.

 

p. 202.

 

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Muitos se perguntam qual seria a diferença entre a meditação (e outras práticas contemplativas) e o efeito de substâncias psicodélicas. Será que essas drogas são uma forma de trapacear, ou o único meio para o despertar autêntico? Nenhuma das alternativas. Todas as drogas psicoativas modulam a neuroquímica cerebral existente – seja imitando neurotransmissores específicos, seja levando os próprios neurotransmissores a serem mais ou menos ativos. Tudo o que uma pessoa pode experimentar com uma droga é, em certo nível, uma expressão do potencial do cérebro. Portanto, o que quer que se possa ver ou sentir depois de ingerir LSD, provavelmente poderia ser visto ou sentido por alguém, em algum lugar, sem a droga.

Não se pode negar, porém, que as substâncias psicodélicas são um meio demasiado potente para alterar a consciência. Ainda que se ensine uma pessoa a meditar, a orar, a entoar cânticos ou a praticar ioga, não há nenhuma garantia de que algo venha a acontecer. Dependendo de sua aptidão ou interesse, a única recompensa por seus esforços pode ser tédio e dor nas costas. Por outro lado, se alguém ingerir cem microgramas de LSD, o que acontecerá a seguir irá depender de vários fatores, mas não há dúvida de que alguma coisa vai acontecer. E tédio não está na lista. Em uma hora, o significado da existência se abaterá sobre essa pessoa como uma avalanche. Como o falecido Terence McKenna nunca se cansava de frisar, essa garantia de um efeito profundo, para o bem ou para o mal, é o que separa as substâncias psicodélicas de qualquer outro meio de exploração espiritual.

 

p. 205.

 

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A meditação pode abrir a mente para um conjunto semelhante de estados conscientes, mas de um modo muito menos aleatório. Se o LSD é como ser amarrado a um foguete, aprender a meditar é como desfraldar delicadamente uma vela. Sim, é possível, mesmo com orientação, ir parar em algum lugar aterrador, e algumas pessoas provavelmente não devem passar longos períodos em prática intensiva. Mas o efeito geral do treinamento de meditação é o de nos acomodarmos ainda mais na própria pele e sofrermos menos dentro dela.

Como expliquei em A morte da fé, considero a maioria das experiências psicodélicas desnorteantes em potencial. Não garantem a sabedoria nem um claro reconhecimento da ausência de self na consciência. Elas garantem apenas que os conteúdos da consciência mudarão. A meu ver, experiências visionárias desse tipo, consideradas no todo, são neutras do ponto de vista ético. Portanto, parece que os êxtases psicodélicos devem ser orientados para nosso bem-estar pessoal e coletivo por algum outro princípio. Como ressaltou Daniel Pinchbeck em seu interessante livro Breaking Open the Head, o fato de que tanto os maias como os astecas usavam drogas psicodélicas e eram praticantes entusiásticos do sacrifício humano faz parecer qualquer conexão idealista entre o xamanismo baseado em plantas e uma sociedade iluminada terrivelmente ingênua.

A forma de transcendência que parece ligar de modo direto o comportamento ético e o bem-estar humano é a que ocorre no dia a dia durante a vigília. É ao deixar de nos apegar aos conteúdos da consciência – aos nossos pensamentos, humores e desejos – que progredimos. Esse projeto, a princípio, não requer que experimentemos mais conteúdo. Ficar livre do self, que é tanto o objetivo como o alicerce da vida espiritual, coincide com a percepção e a cognição normais – muito embora, como já mencionei, possa ser difícil de se alcançar.

 

p. 208-209.

 

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Os objetivos da espiritualidade não são exatamente os mesmos da ciência, mas tampouco são acientíficos. Sonde sua mente, ou preste atenção às conversas que tem com outras pessoas, e você descobrirá que não existem fronteiras reais entre a ciência e qualquer outra disciplina que tente fazer afirmações válidas sobre o mundo com base em evidências e lógica. Quando as afirmações e os métodos de comprovação admitem a experimentação e/ou a descrição matemática, tendemos a dizer que nossos interesses são “científicos”; quando se relacionam a questões mais abstratas, ou à consistência do nosso próprio pensamento, costumamos dizer que somos “filosóficos”; quando apenas queremos saber como as pessoas se comportavam no passado, chamamos nossos interesses de “históricos” ou “jornalísticos”; e quando o compromisso de uma pessoa com as evidências e a lógica se torna perigosamente tênue ou se rompe sob o fardo do medo, do autoengano, do tribalismo ou do êxtase, reconhecemos que ela está sendo “religiosa”.

As fronteiras entre as disciplinas intelectuais verdadeiras são hoje impostas por pouco mais do que os orçamentos e a arquitetura das universidades. O Sudário de Turim é uma farsa medieval? Essa é uma questão para a história, obviamente, e para a arqueologia, mas as técnicas de datação por radiocarbono implicam que também é uma questão de química e física. A verdadeira distinção que deve nos interessar – e observá-la é o sine qua non da atitude científica – é entre exigir boas razões para aquilo em que se acredita e ficar satisfeito com razões ruins. A espiritualidade requer o mesmo comprometimento com a honestidade intelectual.

Assim que reconhecemos a ausência de self na consciência, a prática da meditação se torna apenas um meio para nos familiarizarmos mais com ela. O objetivo, dali por diante, é não mais desconsiderar o que já foi estabelecido. Paradoxalmente, isso ainda requer disciplina, e reservar tempo para a meditação é indispensável. Mas a verdadeira disciplina é permanecermos comprometidos, a vida inteira, com o despertar do sonho do self. Para isso, não é preciso aceitar nada com base na fé. Na verdade, a única alternativa é permanecermos confusos quanto à natureza da mente.

 

p. 211.

 

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A espiritualidade continua a ser a grande lacuna no secularismo, humanismo, racionalismo, ateísmo e todas as outras posturas defensivas que homens e mulheres racionais adotam na presença da fé irracional. Pessoas de ambos os lados dessa divisão imaginam que a experiência visionária não tem lugar no contexto da ciência, salvo nos corredores de um hospital para doentes mentais. Enquanto não pudermos falar sobre a espiritualidade em termos racionais – reconhecendo a validade da autotranscendência –, nosso mundo permanecerá dilacerado pelo dogmatismo. Este livro é minha tentativa de iniciar a conversa.

 

p. 215.

 

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