domingo, 22 de maio de 2022

A NOITE ESCURA DA ALMA NA VISÃO POÉTICA DE SÃO JOÃO DA CRUZ

 

A “noite escura da alma”, também conhecida como “noite negra da alma”, ou ainda “o chamado do tentador”, é uma experiência espiritual conhecida por todos os buscadores na Senda.

São João da Cruz foi quem mais belamente descreveu este período cheio de angústias, mas também repleto de promessas para o áureo alvorecer, que logo se avizinha.

 

Por Sérgio Carlos Covello, FRC

 

A “noite escura da alma” é metáfora de uma experiência mística que envolve paradoxo, porque essa experiência é iluminativa e, no entanto, obscurece a consciência e acarreta sofrimento. Para extrair sentido dessa contradição, faz-se necessário examinar o rico simbolismo da noite no imaginário dos povos. Entre  os  mitos gregos, Noite  é o nome da deusa que personifica as trevas superiores e é representada por uma figura feminina envolta em manto escuro, a percorrer  o céu,  enquanto  seu irmão, Érebo, simboliza as trevas inferiores.

A deusa Noite gerou várias divindades, algumas benéficas, outras maléficas, sendo a mais importante delas o Dia (Hêmera), a divindade que trouxe a luz ao universo. Também na tradição judaica, a noite apresenta ora um aspecto negativo, ora um aspecto positivo. No Gênesis, ela denomina as trevas, sendo inferior à luz: “E viu Deus que a luz era boa, e fez separação entre a luz e as trevas. Chamou Deus a Luz, Dia, e as trevas, Noite (1.4-5)”.

Em outras passagens, porém, a Bíblia ressalta o aspecto positivo da noite. Por exemplo, em Jó 35.10, lê-se que “Deus inspira canções de louvor durante a noite”. A noite é, portanto, o momento da inspiração divina. E em Salmos, 19.2, a noite relaciona-se com a sabedoria: “Uma noite – diz o salmista – revela conhecimento à outra noite”. Não por outra razão a coruja, pássaro notívago, representa de longa data, a filosofia, simbolizando o saber e a clarividência.

Na arte poética, a noite é geralmente evocada como o período propício ao romance, pois, cessadas as atividades laborativas do dia, o ser humano pode ir livremente em busca do outro. Neste caso, a noite exerce fascínio: “Tudo tem suave encanto quando a noite vem”, diz uma canção de amor. Na esfera psíquica, a noite  significa a face  oculta da consciência, o inconsciente, que, durante o sono, geralmente à noite, vem à tela mental através de símbolos que expressam não só os desejos, mas também a sabedoria, a criatividade e as mais belas intuições.

Na teologia mística, a noite  foi  aos  poucos adquirindo o sentido de estado de consciência com relação à Divindade, a eterna Incógnita escondida metaforicamente no manto negro da noite. “Deus habita as trevas” – dizem os místicos, porque nunca ninguém conseguiu ver Deus, e tudo o que sabemos sobre Ele são conceitos humanos. O homem presume que existe uma causa inteligente para o universo e a chama de Deus, atribuindo-lhe qualidades humanas (como a bondade, a justiça e a misericórdia). Cria, assim, Deus à sua imagem e semelhança. A teologia mística, ao contrário da  teologia especulativa (baseada em conceitos e teorias), objetiva um conhecimento experimental – a posse  interior de Deus pela contemplação que implica o despojamento do ego, visando à união  da alma com “aquele  que está além de todo ser e de todo saber”.

A esse estado de despojamento os místicos alemães do século 14 chamaram de  “noite  escura”,  expressão que foi consagrada 200 anos mais tarde pelo frade carmelita São João da Cruz, num poema lírico de oito estrofes em que  o poeta relata a própria passagem por essa prova que antecede à plena iluminação. Nos comentários ao poema, diz o autor que, mediante a noite escura, a alma se dispõe e encaminha para a divina união de amor. É possível explicar a jornada mística como a busca do Eu profundo, a dimensão expandida da consciência,  para  além  do  pequeno ego, de modo que a consciência individual se transforme em universal ou cósmica. Mas os místicos cristãos (e mesmo os não cristãos teístas) consideram a ampliação  da consciência como  a união  da alma com Deus, por  analogia com o casamento  humano, que é uma experiência transformadora na vida dos nubentes. Nessa etapa do desenvolvimento consciencial só entram as pessoas espiritualmente adiantadas, isto é, as que  já se  converteram para a sua dimensão maior e obtiveram algum grau de luz. Não se trata de período agradável, visto que é de provação. Segundo São João da Cruz, a noite escura consiste na mortificação dos sentidos e do espírito, por isso que produz abatimento, esgotamento mental e fadiga. Mas esse transe é altamente desejável, porque faz surgir o homem novo, de consciência totalmente renovada.

A passagem pela noite escura da alma encontra apoio nas escrituras bíblicas. Tanto  no Antigo, como  no Novo Testamento, há vários exemplos de pessoas santificadas que sofrem provação antes de receberem um grande benefício. A noite do Cristo teve início no Getsêmane, pouco antes de  o Divino Mestre  ser preso, e terminou na cruz com a sensação  de abandono: “Eli, Eli, lama sabactâni” (MT 27.46).

Graças, porém, à tormenta física e mental, Jesus de Nazaré ressurgiu como o Cristo Cósmico Eterno, dando ensejo a uma das mais influentes tradições religiosas do mundo.

Na expressão Noite Escura, que dá nome à obra joanina, estão implícitos os vários sentidos figurados da noite: o mitológico (geratriz da luz), o sapiencial (momento da sabedoria e da inspiração divina), o poético (instante doce do amor) e o psicológico (centro de consciência transcendente). A análise, ainda que sumária, dos belos versos escritos em 1578 (*) permitirá a melhor compreensão dessa fase do desenvolvimento da consciência, na visão poética do monge que fez da busca do  Absoluto seu ideal  de vida:

 

Em uma noite escura,

De amor em vivas ânsias inflamada, (1)

Oh, ditosa ventura!

Saí sem ser notada, (2)

Já minha casa estando sossegada. (3)

 

Na escuridão, segura,

Pela secreta escada, disfarçada, (4)

Oh, ditosa ventura!

Na escuridão, velada,

Já minha casa estando sossegada.

 

Em noite tão ditosa,

E num segredo em que ninguém me via,

Nem eu olhava coisa,

Sem outra luz nem guia (5)

Além da que no coração me ardia.

 

Essa luz me guiava,

Com mais clareza que a do meio-dia,

Aonde me esperava

Quem eu bem conhecia, (6)

Em sítio onde ninguém aparecia. (7)

 

Oh, noite que me guiaste!

Oh, noite mais amável que a alvorada!

Oh, noite que juntaste

Amado com amada,

Amada já no Amado transformada! (8)

 

Em meu peito florido

Que, inteiro para ele só guardava,

Quedou-se adormecido,

E eu, terna, o regalava,

E dos cedros o leque o refrescava.

 

Da ameia a brisa amena, (9)

Quando eu os seus cabelos afagava,

Com sua mão serena

Em meu colo soprava,

E meus sentidos todos transportava.

 

Esquecida, quedei-me,

O rosto reclinado sobre o Amado; (10)

Tudo cessou. Deixei-me,

Largando meu cuidado

Por entre as açucenas olvidado. (11)

 

1 – O poeta fala por sua alma caracterizada como uma jovem em busca de seu amado. Alma (do gr. Psykhé, através do latim anima) é, na maioria das línguas modernas, palavra feminina. Na mitologia grega, Psiqué era o nome de uma jovem sumamente bela que, desposada pelo deus Eros (o Amor), passou a conviver com os deuses no Olimpo. A metáfora deixa entrever que a alma humana ao amar, se diviniza. A alma, que no poema joanino, relata sua aventura amorosa, é adiantada em espiritualidade, pois está incendiada do amor de Deus.

2 – Sair sem ser notada significa que a alma saiu sem ser impedida pelos sentidos que compõem o ego e geram o apego às coisas externas.

3 – Como os castelos e as fortalezas, a casa representa o ser interior. Seus pavimentos são os vários estados mentais. O porão correspondente ao inconsciente inferior, enquanto o sótão, a superconsciência. Casa sossegada é a vida interior com pleno domínio das pulsões inferiores e das paixões menores.

4 – A escada mística da ascese rumo à Divindade. Note-se que para ir ao encontro do  amado,  a alma tem de elevar-se. A escada simboliza, de longa data, a iluminação gradual e a comunicação entre a terra e o céu, como em Gênesis, 28,11. No cristianismo primitivo, não se  conseguia imaginar  o acesso ao Reino dos céus senão  em forma de  subida. No decorrer dos tempos, cada doutrinador imaginou um número de degraus para a escada mística, correspondentes aos vários graus de perfeição espiritual. A de São João da Cruz tem 10 degraus, enquanto a de Santa Teresa de Ávila, sete. Todas, no entanto, são desdobramentos das três vias clássicas da jornada mística – a purificação, a iluminação e a vida unitiva.

5 – É unicamente a luz do amor que conduz a alma, em meio à escuridão, pois ela não dispõe de nada que lhe possa indicar o caminho em direção ao Amado. Como a consciência está obscurecida, não há apoiar-se na luz da razão ou de alguma evidência. Conforme S. João da Cruz, é o amor que faz a alma “voar para seu Deus pelo caminho da solidão, sem ela saber como e de que maneira”.

6 – Em sendo adiantada, a alma já conhece a Divindade para a qual é atraída.

7 – Em sítio onde ninguém  aparecia, ou seja, o centro da própria alma, ou o espírito, sua parte mais elevada, na qual se dá o encontro com  a Divindade. Na antiguidade tardia, Plotino enfatizou a consciência como aspecto privilegiado do ser humano, porque é onde se manifestam as verdades mais altas que o homem pode alcançar. “O sábio – diz – tira de si próprio aquilo que revela  aos outros e olha  para  si próprio, dado que não somente tende a unificar-se e a isolar-se das coisas externas, mas se dirige a si próprio e encontra todas as coisas”.

8 – Pela união com a Luz, a alma se transforma na Luz. Trata-se da identificação da consciência ordinária com a Consciência Cósmica.

9 – Chama-se ameia cada um dos arremates salientes separados por intervalos regulares, construídos na parte superior dos castelos, das torres e das muralhas que protegiam as cidades antigas. Vê-se que a alma chegou ao ponto mais elevado de si mesma. Por  sua vez, brisa amena é vento, símbolo  do  influxo espiritual de  origem celeste.  Como  mensageiro divino, o vento afasta as trevas. Assim como  na tradição bíblica, o “sopro  de  Deus”  animou o primeiro homem, faz surgir, na noite escura, o ser iluminado, o novo  homem  produzido  pela experiência mística.

10 – Esquecida de si quer dizer que a protagonista está com a atenção concentrada somente no Amado que encontrou nas profundezas do seu ser.

11 – Com a consciência expandida, a alma já não tem inquietação alguma, pois tornou-se iluminada e a sabedoria adquirida afasta as preocupações do ego.

 

* Texto em Português extraído das “Obras Completas de São João da Cruz”, trad. Carmelitas Descalças de Fátima (Portugal) e do Convento de Santa Teresa (Rio de Janeiro), 2ª Ed., 1988 , Petrópolis, Editora Vozes.

 

REFERÊNCIA: 

COVELLO, Sérgio Carlos. A Noite Escura da Alma, na Visão Poética de São João da Cruz. Disponível em: http://www.amorc.org.br/Imagens_publicacoes/noite%20escura.pdf. Acesso em: 13 abr. 2010.

 

Também publicado em O Rosacruz nº 271, ano 2010.

 

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