sábado, 18 de maio de 2024

A DEGENERAÇÃO SOCIAL SEGUNDO LAO-TZU

 
 

Por Richard Wilhelm

 

Fazem parte dos pronunciamentos mais radicais de Lao-Tzu as seções que encerram sua crítica às condições políticas e sociais da sua época. Nessas seções, ele dá seguimento de maneira direta à tendência revolucionária dos séculos anteriores.

“O povo passa fome porque seus superiores cobram impostos demais, por isso, eles passam fome. O povo é difícil de ser governado porque seus superiores querem exigir demais, por isso, eles são difíceis de serem governados. O povo não leva a morte a sério, porque os seus superiores buscam uma vida demasiado opulenta; por isso, eles não levam a morte a sério.”

Nessas palavras, complementadas por muitas outras, Lao-Tzu critica as condições governamentais e sociais da sua época. Quando é realmente assim, quando os homens só têm de esperar a morte, quer trabalhem pacificamente ou se dediquem a fomentar perigosas revoluções, não há dúvida de que não se importarão com mais nada e seguirão o caminho mais curto, segundo reza um livro de canções: “Se eu soubesse que teria de passar por isso, melhor seria que jamais tivesse nascido!”

A razão pela qual essas situações surgem no Estado, segundo Lao-Tzu, é o fato de o governo se intrometer demais nos assuntos dos cidadãos.

Quanto mais se evitam os fatos, tanto mais pobre se torna o povo; quanto mais leis e decretos são promulgados, tanto mais ladrões e assaltantes há. Todas essas intromissões do governo na vida privada dos indivíduos só podem ter como consequência inquietação e prejuízo. É inteiramente impossível que as condições possam ser melhoradas com a pressão e a violência. O povo torturado opõe resistência passiva à pressão e, por fim, se revolta. E é bem possível que, apesar de tudo, possa parecer que as coisas estão em pleno florescimento: as amplas estradas podem ser belas e planas, mas o povo anda pelos atalhos; a corte pode ser rica e suntuosa, mas, nos campos, cresce a erva daninha, e os silos estão vazios. As vestes das pessoas importantes são ricas e belas e cada um leva no cinto um punhal. Elas são descomedidas ao comer e ao beber. E predomina a ganância e não o Tao. No entanto, o contrassenso logo encontra forçosamente o seu fim.

Nessas circunstâncias, também nada se pode mudar pele fato de alguns indivíduos, em tais épocas, se destacarem, desejando preservar a moral do povo, louvando as virtudes, se possível recompensando-as, ou dando preferência aos que são capazes, castigando com a prisão e a espada os que não pagam. Quanto mais se desencadear sobre o povo a espada do algoz, menos as pessoas se importarão com a morte e mais ousadas, pérfidas e desobedientes se tornarão. É mais certo que o Estado em que prevalecem tais condições também corra perigo.

É plenamente justificada essa crítica de Lao-Tzu. Confúcio tem exatamente a mesma visão. Para ele também é batalha perdida querer estabelecer a ordem mediante pressões e leis. Confúcio também é contra a mecanização da administração estatal e a intromissão nos assuntos privados. No entanto, há, na continuação do pensamento dos dois, diferenças características. Para Confúcio, a cultura é algo valioso em si. É  necessário apenas mantê-la viva, reforçar as energias que sustentam e vivificam o organismo cultural e obstar as forças que a perturbam, mecanizam e exteriorizam, aniquilando-a. Por isso, Confúcio elabora um sistema de tensões e de relações. A moral deve assegurar como princípio da organização das classes o superior e o inferior. Mas essas relações devem se distribuir de tal modo que cada um seja, de algum modo, autoridade, de um lado, ainda que apenas no círculo familiar, enquanto, de outro, fique sujeito a uma autoridade acima. Daí a importância conferida à moral por Confúcio. Para ele as tensões dos relacionamentos são apenas uma fonte de energia para a ordem da sociedade. Os superiores têm, cada um deles, a responsabilidade maior e respondem pela influência que exercem pelo seu exemplo e maneira de ser. É preciso tornar possível essa influência; dela resulta a organização em classes, que precisa ser posta em execução. Daí a responsabilidade do líder.

Nesse particular, Lao-Tzu é bem mais radical. Para ele a cultura e o organismo estatal não têm valor próprio algum. São organizações que existem por causa dos homens. Funcionam melhor quando não se percebe nada de suas engrenagens. Quando um grande soberano sabe liderar, as pessoas mal percebem que ele existe. As obras e os trabalhos são realizados e todo mundo pensa: “Somos livres!”.

Assim, a liberdade e a autonomia são os princípios fundamentais da organização estatal, no entender de Lao-Tzu. Deixar as pessoas “não agir”, não se intrometer, não governar, eis a regra máxima. Porque, quando nada se faz, tudo caminha por si mesmo. Desse modo, o “não agir” é o princípio de Lao-Tzu. As reformas propostas por ele são, por ora, puramente negativas: livrarmo-nos decididamente de tudo o que é proclamado como moral e cultura, como santidade, conhecimento, moralidade, dever, arte e lucro, porque todas essas coisas não passam de meras aparências. São apenas nomes pronunciados e venerados, ordens que todos louvam, mas que não mais correspondem a realidade alguma. Assim, todo esse sistema de mentiras convencionais nada produz, senão o falso brilho que ilude a triste verdade.

Todo mal provém do crescimento sufocante do conhecimento; o conhecimento de nomes revela à mente coisas que não existem, despertando assim a ambição. Quanto maior a dificuldade de obter essas coisas imaginadas, tanto mais veemente se torna o desejo. Começa assim a luta, o roubo, o assassinato. É a fantasia que seduz os homens: as cores, os sons, os condimentos, os jogos, as preciosidades raras, todo esse brilho da aparência desvia o coração humano do que é profundo e real, e faz nascer a ilusão e o egoísmo.

Portanto, se quisermos realmente melhorar, deveremos diminuir a ilusão. Mas a ilusão do povo só pode ser eliminada quando os líderes derem o exemplo, não valorizando os bens difíceis de conseguir; quando eles mesmos forem humildes diante de suas necessidades; quando evitarem todo o fausto e vaidade; quando se colocarem modesta e serenamente entre as pessoas, ignorando o próprio ego e desaparecendo, por assim dizer, do pedestal, a fim de agir de maneira ainda mais unificada com as energias da natureza.

Quando, desse modo, os líderes abandonarem o que está distante e se dedicarem ao real e ao que está próximo, o povo será fácil de ser corrigido. No entanto, quando se tem a ambição do poder e da riqueza, logicamente será necessário dar ao povo esclarecimento e instrução; para tal, são todos os tipos de instrumentos e máquinas, para produzir os bens. A profusão desses bens deverá reverter em benefício dos superiores. Esses meios de progresso – máquinas e armas, que Lao-Tzu cita, considerados em conjunto, de “aparelhos afiados” – são, não obstante, fatores de desordem. Portanto, não se deveria usá-los. Regressar da civilização à natureza: o caminho apontado por Lao-Tzu não seria o esclarecimento do povo, mas a sua volta à simplicidade. Quando os desejos se manifestam e o conhecimento é ostentado, a simplicidade infinita deve abafá-los. E os que têm o conhecimento devem ser impedidos de se destacar.

Mas como complemento do idílio de um povo sereno e unido à natureza, é indispensável a assistência ao seu bem-estar. O povo se manterá por si mesmo afastado das ilusões e das fantasias quando suas condições reais forem satisfatórias. Assim, um sábio cuida para que o povo passe bem, sua alimentação seja boa e suficiente, sua habitação confortável e segura, sua vida serena e feliz. O sábio cuida do corpo do povo, para que tenha o indispensável e seus ossos sejam fortalecidos; só assim o seu coração, por si só, se esvazia, isto é, fica livre do desejo e da insatisfação.

Um grande reino deve ser dirigido do mesmo modo que fritamos peixes miúdos: não se deve raspá-los, sacudi-los nem queimá-los, mas manipulá-los de modo bem suave e calmo. Desse modo, os homens se ajustarão de novo ao estado pacífico da natureza, do qual foram arrancados pelas ilusões.

 

REFERÊNCIA:

WILHELM, Richard. V. Estado e Sociedade. In: LAO-TZU. Tao-Te King: o livro do caminho e do sentido da vida para alcançar a integridade. Tradução de Richard Wilhelm; Margit Martincic. 2. Ed. São Paulo: Editora Pensamento, 2023. p. 181-186.

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