Por Richard Wilhelm
Fazem parte dos pronunciamentos mais radicais
de Lao-Tzu as seções que encerram sua crítica às condições políticas e sociais
da sua época. Nessas seções, ele dá seguimento de maneira direta à tendência
revolucionária dos séculos anteriores.
“O povo passa fome porque seus superiores
cobram impostos demais, por isso, eles passam fome. O povo é difícil de ser
governado porque seus superiores querem exigir demais, por isso, eles são
difíceis de serem governados. O povo não leva a morte a sério, porque os seus
superiores buscam uma vida demasiado opulenta; por isso, eles não levam a morte
a sério.”
Nessas palavras, complementadas por muitas
outras, Lao-Tzu critica as condições governamentais e sociais da sua época.
Quando é realmente assim, quando os homens só têm de esperar a morte, quer
trabalhem pacificamente ou se dediquem a fomentar perigosas revoluções, não há
dúvida de que não se importarão com mais nada e seguirão o caminho mais curto,
segundo reza um livro de canções: “Se eu soubesse que teria de passar por isso,
melhor seria que jamais tivesse nascido!”
A razão pela qual essas situações surgem no
Estado, segundo Lao-Tzu, é o fato de o governo se intrometer demais nos
assuntos dos cidadãos.
Quanto mais se evitam os fatos, tanto mais
pobre se torna o povo; quanto mais leis e decretos são promulgados, tanto mais
ladrões e assaltantes há. Todas essas intromissões do governo na vida privada
dos indivíduos só podem ter como consequência inquietação e prejuízo. É
inteiramente impossível que as condições possam ser melhoradas com a pressão e
a violência. O povo torturado opõe resistência passiva à pressão e, por fim, se
revolta. E é bem possível que, apesar de tudo, possa parecer que as coisas
estão em pleno florescimento: as amplas estradas podem ser belas e planas, mas
o povo anda pelos atalhos; a corte pode ser rica e suntuosa, mas, nos campos,
cresce a erva daninha, e os silos estão vazios. As vestes das pessoas
importantes são ricas e belas e cada um leva no cinto um punhal. Elas são
descomedidas ao comer e ao beber. E predomina a ganância e não o Tao. No
entanto, o contrassenso logo encontra forçosamente o seu fim.
Nessas circunstâncias, também nada se pode mudar
pele fato de alguns indivíduos, em tais épocas, se destacarem, desejando
preservar a moral do povo, louvando as virtudes, se possível recompensando-as,
ou dando preferência aos que são capazes, castigando com a prisão e a espada os
que não pagam. Quanto mais se desencadear sobre o povo a espada do algoz, menos
as pessoas se importarão com a morte e mais ousadas, pérfidas e desobedientes
se tornarão. É mais certo que o Estado em que prevalecem tais condições também
corra perigo.
É plenamente justificada essa crítica de
Lao-Tzu. Confúcio tem exatamente a mesma visão. Para ele também é batalha perdida
querer estabelecer a ordem mediante pressões e leis. Confúcio também é contra a
mecanização da administração estatal e a intromissão nos assuntos privados. No
entanto, há, na continuação do pensamento dos dois, diferenças características.
Para Confúcio, a cultura é algo valioso em si. É necessário apenas mantê-la viva, reforçar as
energias que sustentam e vivificam o organismo cultural e obstar as forças que
a perturbam, mecanizam e exteriorizam, aniquilando-a. Por isso, Confúcio
elabora um sistema de tensões e de relações. A moral deve assegurar como princípio
da organização das classes o superior e o inferior. Mas essas relações devem se
distribuir de tal modo que cada um seja, de algum modo, autoridade, de um lado,
ainda que apenas no círculo familiar, enquanto, de outro, fique sujeito a uma
autoridade acima. Daí a importância conferida à moral por Confúcio. Para ele as
tensões dos relacionamentos são apenas uma fonte de energia para a ordem da
sociedade. Os superiores têm, cada um deles, a responsabilidade maior e respondem
pela influência que exercem pelo seu exemplo e maneira de ser. É preciso tornar
possível essa influência; dela resulta a organização em classes, que precisa
ser posta em execução. Daí a responsabilidade do líder.
Nesse particular, Lao-Tzu é bem mais radical.
Para ele a cultura e o organismo estatal não têm valor próprio algum. São organizações
que existem por causa dos homens. Funcionam melhor quando não se percebe nada
de suas engrenagens. Quando um grande soberano sabe liderar, as pessoas mal
percebem que ele existe. As obras e os trabalhos são realizados e todo mundo
pensa: “Somos livres!”.
Assim, a liberdade e a autonomia são os princípios
fundamentais da organização estatal, no entender de Lao-Tzu. Deixar as pessoas “não
agir”, não se intrometer, não governar, eis a regra máxima. Porque, quando nada
se faz, tudo caminha por si mesmo. Desse modo, o “não agir” é o princípio de
Lao-Tzu. As reformas propostas por ele são, por ora, puramente negativas:
livrarmo-nos decididamente de tudo o que é proclamado como moral e cultura,
como santidade, conhecimento, moralidade, dever, arte e lucro, porque todas
essas coisas não passam de meras aparências. São apenas nomes pronunciados e
venerados, ordens que todos louvam, mas que não mais correspondem a realidade
alguma. Assim, todo esse sistema de mentiras convencionais nada produz, senão o
falso brilho que ilude a triste verdade.
Todo mal provém do crescimento sufocante do
conhecimento; o conhecimento de nomes revela à mente coisas que não existem,
despertando assim a ambição. Quanto maior a dificuldade de obter essas coisas imaginadas,
tanto mais veemente se torna o desejo. Começa assim a luta, o roubo, o
assassinato. É a fantasia que seduz os homens: as cores, os sons, os
condimentos, os jogos, as preciosidades raras, todo esse brilho da aparência
desvia o coração humano do que é profundo e real, e faz nascer a ilusão e o egoísmo.
Portanto, se quisermos realmente melhorar,
deveremos diminuir a ilusão. Mas a ilusão do povo só pode ser eliminada quando
os líderes derem o exemplo, não valorizando os bens difíceis de conseguir;
quando eles mesmos forem humildes diante de suas necessidades; quando evitarem
todo o fausto e vaidade; quando se colocarem modesta e serenamente entre as
pessoas, ignorando o próprio ego e desaparecendo, por assim dizer, do pedestal,
a fim de agir de maneira ainda mais unificada com as energias da natureza.
Quando, desse modo, os líderes abandonarem o
que está distante e se dedicarem ao real e ao que está próximo, o povo será fácil
de ser corrigido. No entanto, quando se tem a ambição do poder e da riqueza,
logicamente será necessário dar ao povo esclarecimento e instrução; para tal,
são todos os tipos de instrumentos e máquinas, para produzir os bens. A
profusão desses bens deverá reverter em benefício dos superiores. Esses meios
de progresso – máquinas e armas, que Lao-Tzu cita, considerados em conjunto, de
“aparelhos afiados” – são, não obstante, fatores de desordem. Portanto, não se
deveria usá-los. Regressar da civilização à natureza: o caminho apontado por Lao-Tzu
não seria o esclarecimento do povo, mas a sua volta à simplicidade. Quando os
desejos se manifestam e o conhecimento é ostentado, a simplicidade infinita
deve abafá-los. E os que têm o conhecimento devem ser impedidos de se destacar.
Mas como complemento do idílio de um povo
sereno e unido à natureza, é indispensável a assistência ao seu bem-estar. O
povo se manterá por si mesmo afastado das ilusões e das fantasias quando suas
condições reais forem satisfatórias. Assim, um sábio cuida para que o povo
passe bem, sua alimentação seja boa e suficiente, sua habitação confortável e
segura, sua vida serena e feliz. O sábio cuida do corpo do povo, para que tenha
o indispensável e seus ossos sejam fortalecidos; só assim o seu coração, por si
só, se esvazia, isto é, fica livre do desejo e da insatisfação.
Um grande reino deve ser dirigido do mesmo modo
que fritamos peixes miúdos: não se deve raspá-los, sacudi-los nem queimá-los,
mas manipulá-los de modo bem suave e calmo. Desse modo, os homens se ajustarão
de novo ao estado pacífico da natureza, do qual foram arrancados pelas ilusões.
REFERÊNCIA:
WILHELM, Richard. V.
Estado e Sociedade. In: LAO-TZU. Tao-Te King: o livro do caminho
e do sentido da vida para alcançar a integridade. Tradução de Richard Wilhelm;
Margit Martincic. 2. Ed. São Paulo: Editora Pensamento, 2023. p. 181-186.