sexta-feira, 24 de maio de 2024

BABEL

 
 

Por Montesquieu
  
CARTA 109
 
RICA A  * * *
 

A universidade de Paris é a filha mais velha dos reis da França, e muito velha, pois tem mais de novecentos anos1; por isso de vez em quando sonha. Contaram-me que ela teve, há algum tempo, uma grande discussão com alguns doutores por causa da letra Q2 que a Universidade queria que fosse pronunciada como K. A discussão se acalorou tanto, que alguns chegaram a ser despojados de seus bens; foi necessária a intervenção do Parlamento para acabar com a intriga e deu permissão, por meio de uma sentença solene, a todos os súditos do rei da França para pronunciar essa letra como melhor lhes aprouvesse. Era realmente bonito ver os dois organismos mais respeitáveis da Europa ocupados em decidir sobre a sorte de uma letra do alfabeto! Parece, meu caro, que as cabeças dos maiores homens se reduzem quando estão reunidas e que, onde há mais sábios, há menos sabedoria. Os grandes organismos se apegam sempre tão fortemente às minúcias, aos usos inúteis, que o essencial sempre vem somente em segundo plano. Ouvi dizer que um rei de Aragão3, tendo feito a união dos Estados de Aragão e da Catalunha, as primeiras sessões foram realizadas para decidir em que língua as decisões seriam transcritas; a disputa foi renhida; os Estados teriam rompido mil vezes, se não tivessem imagino um expediente que consistisse em que o pedido fosse feito em catalão e a resposta fosse dada em aragonês.

 

De Paris, 25 de lua de Zilkagé, 1718.


Notas:

1 – Montesquieu segue a tradição popular que fazia remontar a fundação da Universidade a Carlos Magno (747-814); na verdade, foi fundada e organizada entre 1150 e 1170 (nota do tradutor).

2 – Quer falar da querela de Ramus (nota do autor).

3 – Foi em 1620 (nota do autor).

 
REFERÊNCIA:
MONTESQUIEU. Cartas Persas. v. II. Tradução de Antônio Geraldo da Silva. Coleção Grandes Obras do Pensamento Universal, n. 47. São Paulo: Editora Escala, 2006. p. 263.

sábado, 18 de maio de 2024

A DEGENERAÇÃO SOCIAL SEGUNDO LAO-TZU

 
 

Por Richard Wilhelm

 

Fazem parte dos pronunciamentos mais radicais de Lao-Tzu as seções que encerram sua crítica às condições políticas e sociais da sua época. Nessas seções, ele dá seguimento de maneira direta à tendência revolucionária dos séculos anteriores.

“O povo passa fome porque seus superiores cobram impostos demais, por isso, eles passam fome. O povo é difícil de ser governado porque seus superiores querem exigir demais, por isso, eles são difíceis de serem governados. O povo não leva a morte a sério, porque os seus superiores buscam uma vida demasiado opulenta; por isso, eles não levam a morte a sério.”

Nessas palavras, complementadas por muitas outras, Lao-Tzu critica as condições governamentais e sociais da sua época. Quando é realmente assim, quando os homens só têm de esperar a morte, quer trabalhem pacificamente ou se dediquem a fomentar perigosas revoluções, não há dúvida de que não se importarão com mais nada e seguirão o caminho mais curto, segundo reza um livro de canções: “Se eu soubesse que teria de passar por isso, melhor seria que jamais tivesse nascido!”

A razão pela qual essas situações surgem no Estado, segundo Lao-Tzu, é o fato de o governo se intrometer demais nos assuntos dos cidadãos.

Quanto mais se evitam os fatos, tanto mais pobre se torna o povo; quanto mais leis e decretos são promulgados, tanto mais ladrões e assaltantes há. Todas essas intromissões do governo na vida privada dos indivíduos só podem ter como consequência inquietação e prejuízo. É inteiramente impossível que as condições possam ser melhoradas com a pressão e a violência. O povo torturado opõe resistência passiva à pressão e, por fim, se revolta. E é bem possível que, apesar de tudo, possa parecer que as coisas estão em pleno florescimento: as amplas estradas podem ser belas e planas, mas o povo anda pelos atalhos; a corte pode ser rica e suntuosa, mas, nos campos, cresce a erva daninha, e os silos estão vazios. As vestes das pessoas importantes são ricas e belas e cada um leva no cinto um punhal. Elas são descomedidas ao comer e ao beber. E predomina a ganância e não o Tao. No entanto, o contrassenso logo encontra forçosamente o seu fim.

Nessas circunstâncias, também nada se pode mudar pele fato de alguns indivíduos, em tais épocas, se destacarem, desejando preservar a moral do povo, louvando as virtudes, se possível recompensando-as, ou dando preferência aos que são capazes, castigando com a prisão e a espada os que não pagam. Quanto mais se desencadear sobre o povo a espada do algoz, menos as pessoas se importarão com a morte e mais ousadas, pérfidas e desobedientes se tornarão. É mais certo que o Estado em que prevalecem tais condições também corra perigo.

É plenamente justificada essa crítica de Lao-Tzu. Confúcio tem exatamente a mesma visão. Para ele também é batalha perdida querer estabelecer a ordem mediante pressões e leis. Confúcio também é contra a mecanização da administração estatal e a intromissão nos assuntos privados. No entanto, há, na continuação do pensamento dos dois, diferenças características. Para Confúcio, a cultura é algo valioso em si. É  necessário apenas mantê-la viva, reforçar as energias que sustentam e vivificam o organismo cultural e obstar as forças que a perturbam, mecanizam e exteriorizam, aniquilando-a. Por isso, Confúcio elabora um sistema de tensões e de relações. A moral deve assegurar como princípio da organização das classes o superior e o inferior. Mas essas relações devem se distribuir de tal modo que cada um seja, de algum modo, autoridade, de um lado, ainda que apenas no círculo familiar, enquanto, de outro, fique sujeito a uma autoridade acima. Daí a importância conferida à moral por Confúcio. Para ele as tensões dos relacionamentos são apenas uma fonte de energia para a ordem da sociedade. Os superiores têm, cada um deles, a responsabilidade maior e respondem pela influência que exercem pelo seu exemplo e maneira de ser. É preciso tornar possível essa influência; dela resulta a organização em classes, que precisa ser posta em execução. Daí a responsabilidade do líder.

Nesse particular, Lao-Tzu é bem mais radical. Para ele a cultura e o organismo estatal não têm valor próprio algum. São organizações que existem por causa dos homens. Funcionam melhor quando não se percebe nada de suas engrenagens. Quando um grande soberano sabe liderar, as pessoas mal percebem que ele existe. As obras e os trabalhos são realizados e todo mundo pensa: “Somos livres!”.

Assim, a liberdade e a autonomia são os princípios fundamentais da organização estatal, no entender de Lao-Tzu. Deixar as pessoas “não agir”, não se intrometer, não governar, eis a regra máxima. Porque, quando nada se faz, tudo caminha por si mesmo. Desse modo, o “não agir” é o princípio de Lao-Tzu. As reformas propostas por ele são, por ora, puramente negativas: livrarmo-nos decididamente de tudo o que é proclamado como moral e cultura, como santidade, conhecimento, moralidade, dever, arte e lucro, porque todas essas coisas não passam de meras aparências. São apenas nomes pronunciados e venerados, ordens que todos louvam, mas que não mais correspondem a realidade alguma. Assim, todo esse sistema de mentiras convencionais nada produz, senão o falso brilho que ilude a triste verdade.

Todo mal provém do crescimento sufocante do conhecimento; o conhecimento de nomes revela à mente coisas que não existem, despertando assim a ambição. Quanto maior a dificuldade de obter essas coisas imaginadas, tanto mais veemente se torna o desejo. Começa assim a luta, o roubo, o assassinato. É a fantasia que seduz os homens: as cores, os sons, os condimentos, os jogos, as preciosidades raras, todo esse brilho da aparência desvia o coração humano do que é profundo e real, e faz nascer a ilusão e o egoísmo.

Portanto, se quisermos realmente melhorar, deveremos diminuir a ilusão. Mas a ilusão do povo só pode ser eliminada quando os líderes derem o exemplo, não valorizando os bens difíceis de conseguir; quando eles mesmos forem humildes diante de suas necessidades; quando evitarem todo o fausto e vaidade; quando se colocarem modesta e serenamente entre as pessoas, ignorando o próprio ego e desaparecendo, por assim dizer, do pedestal, a fim de agir de maneira ainda mais unificada com as energias da natureza.

Quando, desse modo, os líderes abandonarem o que está distante e se dedicarem ao real e ao que está próximo, o povo será fácil de ser corrigido. No entanto, quando se tem a ambição do poder e da riqueza, logicamente será necessário dar ao povo esclarecimento e instrução; para tal, são todos os tipos de instrumentos e máquinas, para produzir os bens. A profusão desses bens deverá reverter em benefício dos superiores. Esses meios de progresso – máquinas e armas, que Lao-Tzu cita, considerados em conjunto, de “aparelhos afiados” – são, não obstante, fatores de desordem. Portanto, não se deveria usá-los. Regressar da civilização à natureza: o caminho apontado por Lao-Tzu não seria o esclarecimento do povo, mas a sua volta à simplicidade. Quando os desejos se manifestam e o conhecimento é ostentado, a simplicidade infinita deve abafá-los. E os que têm o conhecimento devem ser impedidos de se destacar.

Mas como complemento do idílio de um povo sereno e unido à natureza, é indispensável a assistência ao seu bem-estar. O povo se manterá por si mesmo afastado das ilusões e das fantasias quando suas condições reais forem satisfatórias. Assim, um sábio cuida para que o povo passe bem, sua alimentação seja boa e suficiente, sua habitação confortável e segura, sua vida serena e feliz. O sábio cuida do corpo do povo, para que tenha o indispensável e seus ossos sejam fortalecidos; só assim o seu coração, por si só, se esvazia, isto é, fica livre do desejo e da insatisfação.

Um grande reino deve ser dirigido do mesmo modo que fritamos peixes miúdos: não se deve raspá-los, sacudi-los nem queimá-los, mas manipulá-los de modo bem suave e calmo. Desse modo, os homens se ajustarão de novo ao estado pacífico da natureza, do qual foram arrancados pelas ilusões.

 

REFERÊNCIA:

WILHELM, Richard. V. Estado e Sociedade. In: LAO-TZU. Tao-Te King: o livro do caminho e do sentido da vida para alcançar a integridade. Tradução de Richard Wilhelm; Margit Martincic. 2. Ed. São Paulo: Editora Pensamento, 2023. p. 181-186.

sexta-feira, 17 de maio de 2024

A POBRE RIQUEZA SEGUNDO EPICURO

 


Por João Florindo Batista Segundo

 

“A pobreza medida pela finalidade da natureza é uma grande riqueza; a riqueza se não limitada, é uma grande pobreza.”

 

(Epicuro. Sent. Vat. 25)

 

Epicuro (341 a.C. – 271 ou 270 a.C.), discípulo de Demócrito, legou-nos atemporais lições de vida em seu texto Carta sobre a felicidade, o qual, apesar de pouco extenso, contém profundos orientações para quem busca uma vida feliz.

Aqui, contextualizaremos a referida obra com a sentença epicurea acima, levando em consideração a lição do sábio sobre a phronesis (prudência, ponderação), que é o supremo bem adquirido pelo ser humano que se autodomina.

Tal ponderação é caracterizada pela rejeição de desejos supérfluos, os quais são como mel no início, mas se tornam fel no final. Em detrimento disso, o sábio deve fruir dos desejos naturais e dos desejos necessários, buscando a felicidade e o bem-estar físico e mental.

Logo, o ensinamento de Epicuro não exige um estilo de vida marcado por extremas austeridades ou eremitismo, mas também não aprova o gozo desenfreado dos prazeres. Podemos dizer que a Carta nos apresenta um “caminho do meio”.

Portanto, a riqueza sem limites está no polo oposto de uma vida de miséria absoluta e ambas não conduzem o ser humano a uma existência prazerosa (lembrando que o prazer é o início e a consecução da vida feliz).

Despiciendo elencar as dificuldades que uma vida de miséria traz à pessoa, que sequer ingere os nutrientes suficientes para manter o próprio corpo. Então, precisamos esclarecer como a riqueza pode se tornar pobreza.

Ora, quem acumula riquezas, geralmente, quanto mais tem, mais quer. Diversificando suas atividades, realizando investimentos de alto risco, a pessoa ocupa cada vez mais seu tempo com o aumento da própria riqueza. Enchendo-se de ansiedade e incertezas, dedicando cada vez menos tempo ao cuidado de si e ao carinho da família, lentamente, ela se torna escrava de seu patrimônio.

Por vezes, até os círculos sociais desses abastados são marcados pelas falsas amizades, que deles se aproximam apenas pelo que têm e não pelo que são. Ademais, desde a Antiguidade, os ricos necessitam cercar-se de guardas para protegerem seu patrimônio.

Deslocando esse panorama para os nossos dias, os constantes relatos de suicídios de milionários demonstram que apenas o sucesso material é insuficiente para nos trazer felicidade. Deste modo, permanece verdadeira a afirmação de Epicuro que a riqueza sem limites é uma grande pobreza.

Por outro lado, aquele que aprende a viver com o suficiente para a manutenção própria e da família, sem excessos incompatíveis com sua condição financeira, segundo o filósofo, possui as condições de potencialmente ser feliz, pois o pouco que tem não lhe causa as precauções e ansiedades que acometem os ricos, bem como, a tendência geral é que seus amigos sejam de fato verdadeiros, pois sabem que o ponderado pouco de material tem a oferecer.

Chegamos ao fim dessa curta jornada pelo pensamento de Epicuro, enfatizando que surpreendentemente, nossa sociedade, com todo o seu progresso, ainda sofre das mesmas mazelas dos antigos, todas decorrentes da falta de ponderação.

 

REFERÊNCIAS:

EPICURO. Sentenças Vaticanas. Texto, tradução e comentários de João Quartim de Moraes. Coleção Clássicos da Filosofia. São Paulo: Loyola, 2014.
 

EPICURO. Cartas de Epicuro: sobre a filosofia da natureza, sobre os fenômenos celestes, sobre a felicidade. Tradução de Edson Bini. 1. ed. São Paulo: Edipro, 2021.

ENTRE A PAIXÃO VIOLENTA E A LANGUIDEZ: A BOA TRISTEZA, EM MICHEL DE MONTAIGNE

 


 

Por João Florindo Batista Segundo

 

No ensaio Da tristeza, inicialmente, Michel de Montaigne (1533-1592) parece apresentar ao leitor as consequências da tristeza sobre a mente e o corpo do ser humano. Porém, ao longo do texto, ele também expõe as consequências negativas provocadas por um extravasamento de felicidade.

É de se pensar então sobre que tipo de emoção o ensaísta francês do século XVI está realmente a advogar.

Observemos quando ele afirma em relação à tristeza que “um embrutecimento sombrio, surdo e mudo [...] se apodera de nós quando as ocorrências nos esmagam ultrapassando o que nos é dado suportar” (Montaigne, 2016, p. 48), ao passo que, em relação à paixão (geralmente considerada como algo bom), as pessoas ficam com o pensamento e o corpo abatidos, daí “a inesperada e fortuita impotência que surpreende o amante tão fora de propósito” (ibid., p. 49).

De fato, ele desafia as concepções tradicionais da tristeza e da alegria, ao demonstrar que o excesso de ambas pode levar a estados físicos e mentais semelhantes de completa perda de controle e até mesmo, à morte. No final do texto, o autor arremata: “Quanto a mim, sou pouco predisposto a essas paixões violentas; tenho uma sensibilidade naturalmente grosseira e a torno mais espessa ainda e empedernida mediante raciocínios diários” (ibid., p. 50).

Diante dessa afirmação, compreendemos que Montaigne se inclinava para a melancolia, que, nas palavras de Rüdiger van der Heiden, é “a paz triste da sabedoria profunda” (apud Calazans, 2012, p. 145). Esse estado emocional está além da tristeza comum e é fruto da reflexão sobre aspectos mais profundos da vida e da existência.

Lembremos que no Renascimento, a melancolia por vezes era associada à sabedoria e à criatividade, concepção explorada com maestria na gravura Melancolia I, do pintor e ilustrador alemão Albrecht Dürer (1471-1528).

Fica claro que, para o filósofo francês, a vida humana é decepcionante e que nenhum empreendimento resulta em satisfação plena. Por outro lado, não nos cabe desesperar ante essa constatação, até porque, tanto as alegrias quanto as tristezas que o mundo nos apresenta são passageiras.

Alega o ensaísta que raciocinava diariamente sobre esse estado de coisas e uma das consequências da melancolia é dirigir-se à introspecção e ao autoexame, o que ajudava a compreender seus desejos e necessidades.

E ao afirmar que lhe faltavam paixões violentas, certamente Montaigne, pelo menos a essa altura, vivia sem se preocupar com recompensa ou reconhecimento, sem fazer comparações e sem se irritar com as injustiças do acaso; de fato, em última instância, essas alterações de humor não mudam a ordem das coisas e só conduzem à morte prematura. Ressaltemos que da sabedoria não pode resultar autodestruição, pois autodestruir-se não requer sabedoria.

Por fim, podemos destacar que a perspectiva de Montaigne demonstra seu profundo conhecimento dos meandros do ser humano, além de ser especialmente relevante nos tempos contemporâneos, em que a sociedade, via de regra, estigmatiza emoções que considera “negativas”.

 

REFERÊNCIAS: 

CALAZANS, José Carlos. A Melancolia de Albercht Dürer (1471-1528). Revista Lusófona de Ciência das Religiões. ano XI, n. 16/17, p. 135-152. 2012. Disponível em: https://revistas.ulusofona.pt/index.php/cienciareligioes/article/view/3818. Acesso em: 27 set. 2023.
 
MONTAIGNE, Michel de. Da Tristeza. In: MONTAIGNE, Michel de. Ensaios. Tradução e notas de Sérgio Millet; revisão técnica e notas adicionais de Edson Querubim; apresentação de André Scoralick. 1. ed. São Paulo: Editora 34, 2016. p. 47-50.

quarta-feira, 15 de maio de 2024

SOBRE A RELAÇÃO ENTRE A NATUREZA E A OBRA DE ARTE

 

 

Por João Florindo Batista Segundo

 

Tradicionalmente, a filosofia ocidental sempre considerou o belo da natureza como superior à obra artística, a qual, em Platão, por exemplo, seria mera representação das formas naturais que, por sua vez, eram cópias das formas ideais presentes no mundo suprassensível (a reminiscência conduziria às formas perfeitas).

Pouco depois de Platão, Aristóteles apresentou sua crítica à ideia de uma participação na Beleza suprema, dando ênfase a uma ordenação artística das formas de modo harmônico e visualizável. Tal harmonia é decorrente da vitória contra o caos da vida.

É somente a partir do idealismo alemão que o belo da Arte sobrepujou essa relação de inferioridade ante a natureza. Agora, mesmo aquilo que era considerado grotesco, feio e medonho ingressa no rol do que é produção artística e objeto de estudo da Estética.

Kant, nesse sentido, foi um dos precursores, ao apresentar e destacar o papel do juízo do gosto do observador da obra de arte. A sensação de prazer ou de desprazer do contemplador/leitor liberta-se da comparação da obra de arte com as formas ideais suprassensíveis e da necessidade de constatar uma luta contra o caos do mundo: o que importa agora é a construção da Beleza no íntimo do espírito do contemplador.

Além de estar liberta dos ideais platônicos e aristotélicos, a obra de arte também está além do artista e é mais confiável que ele, por se deixar ser livremente interpretada e indicar o trajeto para novas experiências do viver em um mundo porvir, como afirma Adorno.

Na arte contemporânea, descortina-se a harmonia naquilo que é surpreendentemente desprezível e tudo o que outrora era reles monturo e entulho adquire sua cidadania, sem nenhuma necessidade de replicar o mundo natural ou de tentar ordená-lo. A arte inaugura o mundo e dá à fealdade o seu espaço para se apresentar e permitir ao contemplador a participação em algo que transcende os fins imediatos da vida.

Em Adorno, a arte nos apresenta um modelo de comportamento alternativo à dominação da natureza externa (o mundo natural) e de nossa natureza interna que são impostas pela sociedade em seu progressivo processo de racionalização.