quarta-feira, 3 de abril de 2024

MISTÉRIO

 

Por Florbela Espanca
 

Mistério

 
Gosto de ti, ó chuva, nos beirados,
Dizendo coisas que ninguém entende!
Da tua cantilena se desprende
Um sonho de magia e de pecados.
 
Dos teus pálidos dedos delicados
Uma alada canção palpita e ascende,
Frases que a nossa boca não aprende
Murmúrios por caminhos desolados.
 
Pelo meu rosto branco, sempre frio,
Fazes passar o lúgubre arrepio
Das sensações estranhas, dolorosas...
 
Talvez um dia entenda o teu mistério...
Quando, inerte, na paz do cemitério,
O meu corpo matar a fome às rosas!
 

Florbela Espanca, in “Charneca em Flor”

 
 

Não Ser

 
Quem me dera voltar à inocência
Das coisas brutas, sãs, inanimadas,
Despir o vão orgulho, a incoerência:
– Mantos rotos de estátuas mutiladas!
 
Ah! arrancar às carnes laceradas
Seu mísero segredo de consciência!
Ah! poder ser apenas florescência
De astros em puras noites deslumbradas!
 
Ser nostálgico choupo ao entardecer,
De ramos graves, plácidos, absortos
Na mágica tarefa de viver!
 
Ser haste, seiva, ramaria inquieta,
Erguer ao sol o coração dos mortos
Na urna de oiro duma flor aberta!...

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