sábado, 26 de março de 2016

O REGRESSO EM NÓS DE D. SEBASTIÃO OU O FIM DO SEBASTIANISMO


Por Paulo Borges


Sobre um fundo negro recorta-se a figura de D. Sebastião representado a meio corpo com uma armadura tauxiada ricamente decorada a ouro com motivos geométricos, e de cuja gorjeira e punhos saem folhos claros encanudados. Com a mão esquerda apoiada no punho da espada e a outra à cintura, o rei tem à sua esquerda um cão. Este retrato de D. Sebastião com a idade de 17 anos filia-se à produção tradicional de retratos de Corte iniciada por Anthonis Moro e desenvolvida pelo pintor português Cristóvão de Morais. A imagem do jovem rei representado a três quartos revela algumas das características técnicas e pictóricas deste pintor, e, como nota Annemarie Jordan, os olhos amendoados, as orelhas pontiagudas, o espaço entre os dedos alongados, os lábios carnudos e cerrados, a cabeça oval e a paleta contrastada dos pretos, vermelhos e brancos, aproximam muito este quadro de um outro retrato de D. Sebastião figurado a corpo inteiro, que se encontra no Convento das Descalzas Reales, em Madri. No quadro de Lisboa, destinado a ser oferecido ao Papa Pio V, D. Sebastião surge como um cavaleiro cristão, simbolismo que, neste caso, é ainda reforçado pela armadura e pela espada sobre a qual se apoia a mão esquerda, elementos que remetem para uma tipologia de retratos de Corte dos Habsburgo. Por sua vez, a presença de um cão liga esta pintura às mais antigas representações de Carlos V, o primeiro monarca a ter-se feito retratar na companhia de um cão, pintado em 1530, por Jakob Seisenegger (Kunsthistorisches Museum, Viena). Pintura atribuída a Cristóvão de Morais (ativo c. 1539-1580) e datada entre 1571-1574, hoje exposta no Museu Nacional de Arte Antiga, em Lisboa.


D. Sebastião

Sperai! Caí no areal e na hora adversa
Que Deus concede aos seus
Para o intervalo em que esteja a alma imersa
Em sonhos que são Deus.

Que importa o areal, a morte e a desventura
Se com Deus me guardei?
É O que eu me sonhei que eterno dura,
É Esse que regressarei.

O segundo poema que tem como título “D. Sebastião” é o primeiro dos cinco “Símbolos” que abrem a terceira parte, “O Encoberto”, da Mensagem. Nele o poeta volta a dar voz a um rei que – falando sempre como esse ser “que há” e não “que houve”, ou seja, como imortal dotado da “grandeza” de ser livre da “Sorte”  exorta a que esperem pelo seu regresso aqueles que ainda permanecem escravos da comum condição mortal e humana, reproduzindo a sua submissão ao Destino enquanto cadáveres adiados que procriam. D. Sebastião continua a ser aqui, numa coerência rigorosa, a figura de um rei-Outro, de uma consciência desperta que exorta os que esperam o seu regresso ao mundo dos homens a que não esperem que regresse o mesmo que partiu. Efectivamente, tendo-se convertido No que se sonhou, tendo-se tornado Naquele que se desejou, um ser emancipado do Destino, e sendo isso “eterno”, não pode senão ser “Esse” que regressará. Não faz sentido assim que o esperem com uma expectativa adequada ao que foi e já não é nem poderá nunca mais ser, não faz sentido que o esperem com a predominante esperança sebastianista que sobrevive à possibilidade do regresso físico do rei desaparecido em Alcácer-Quibir e se converte num paradigma da mentalidade portuguesa em épocas de crise e profunda insatisfação, fruto da laicização da expectativa messiânica: a expectativa de que surja um mero líder político, redentor da pátria oprimida e decadente, restaurador da ordem ameaçada e condutor da nação em períodos de crise da identidade e sentido da sua vida histórica. O D. Sebastião de Pessoa exorta a que o esperem, mas não como o Mesmo, antes como Outro, não como mortal, antes como imortal.

D. Sebastião exorta ao fim do sebastianismo comum, recordando que o seu fracasso humano, pessoal e histórico não foi senão o reverso do divino dom de uma oportunidade superior a todo o triunfo bélico e a todo o poder e glória temporais. Caindo “no areal e na hora adversa”, segundo a percepção mundana e exterior, D. Sebastião na verdade acedeu ao “intervalo” da imersão da “alma” “em sonhos que são Deus”, concedido pelo divino aos “seus”, ou seja, aos que o buscam acima de tudo, aos seus “amigos”.

O que são este “intervalo”, esta imersão e estes “sonhos que são Deus”? “Intervalo”, do latim intervallum, é o espaço ou distância entre dois pontos ou lugares, que etimologicamente são duas paliçadas ou trincheiras (vallum), também com o sentido de baluartes, defesas, protecções. O “intervalo”, ainda segundo um dos sentidos da palavra latina, sugere-se como o repouso ou descanso da “alma” em algo que não a pré-ocupa com a construção de limites e muros autoprotectores, o repouso ou descanso da “alma” relativamente a toda a pré-ocupação, mental, emocional ou física, com a separação entre uma coisa e outra, a divisão entre si e o outro, a defesa e o ataque, a dualidade, o medo e a (in)segurança. Livre de tudo isso, é no intervalo disso tudo, na “pausa” (outro sentido do intervallum latino) de toda essa agitação, que se pode abrir e absorver plenamente “em sonhos que são Deus”. Ou seja, no contexto da Mensagem, viver a “loucura” daquela ânsia de “grandeza” trans-mundana e transcensão de toda a “Sorte”/condição mortal que se converte nisso e é já isso mesmo a que ardentemente aspira. O desejo veemente dessa “grandeza” insuperável é já a vibrante e imanente epifania do divino. Como escreve Pessoa no poema “D. Fernando. Infante de Portugal”: “E esta febre de Além, que me consome, / E este querer grandeza são seu nome / Dentro em mim a vibrar”. É isso que torna o sujeito “cheio de Deus” e é isso, e apenas isso, que o pode ressuscitar, já em vida, de ser a “besta sadia” e “cadáver adiado que procria”, vergado pelas indomadas “forças cegas” ao triste contentamento com a vida doméstica e vegetativa. É isso, e apenas isso, que o pode ressuscitar do tempo dos quatro impérios e operar a sua superação no Quinto, a “verdade” pela qual “morreu D. Sebastião” (cf. o poema “O Quinto Império”), que evidentemente nada tem a ver com qualquer domínio mundano, temporal e político. Do mesmo modo que em D. Sebastião o ser “que há” transcende o “que houve”, assim também o Quinto Império transcende o plano onde decorrem e se dissipam os quatro, não podendo propriamente dizer-se que venha temporalmente após eles, enquanto símbolo de uma possibilidade que transcende o tempo e o espaço e que é a própria possibilidade do homem ou da consciência se imortalizar.

A alma de D. Sebastião está pois “imersa / Em sonhos que são Deus”. O que é, todavia, “Deus”? A palavra procede da raiz indo-europeia dei, que significa “tudo o que brilha”, donde vem o sânscrito deva (deus), o iraniano daeva (demónio) e o português dia [1]. Deus indica não um ser ou um ente, algo que exista e possa ser objecto, algo que possa ser visto por alguém, mas antes a própria luz invisível que torna todas as coisas visíveis, em termos inteligíveis ou sensíveis, o ilimitado espaço luminoso que é matriz de todas as possibilidades de manifestação e consciência, o nada inerente ao aparecimento de tudo [2] (* cf . também o "nada que é de tudo" em Agostinho da Silva). É aí que verdadeiramente cai, imerge e reside o D. Sebastião transfigurado, que realiza a suma potencialidade de todo o homem. É nisso que se guarda, baluarte sem defesas e assim inexpugnável pela derrota no “areal”, “a morte e a desventura”. É Isso, afinal, que se sonhou e tornou, num sonho/desejo/imaginação criadora (ou desveladora) que converte o amante na coisa amada (cf. Luís de Camões), que realiza isso que imagina, em tudo distinto daquele sonho ilusório e irreal que preside à história do mundo e dos homens e à sucessão dos quatro impérios mundanos. “O” que se sonhou, esse “Deus”/ matriz intemporal de toda a manifestação, transcende a consciência temporal e a sua ilusão intrínseca, sendo da ordem do eterno. É só “Esse” que D. Sebastião pode regressar, não o rei humano morto ou desaparecido no areal, ou um seu substituto, mitificado pelo sebastianismo e esperado pelos sebastianistas de todos os tempos, mas o sujeito transfigurado em Deus, dei-ficado, ou seja, iluminado. Desperto e livre, em nada se distingue desse espaço primordial, anterior a todas as coisas e de todas envolvente como a matriz que as possibilita, mas que, na experiência mundana e condicionada, apenas se abre nos inter-valos entre uma coisa e outra, entes, pensamentos, palavras e acções.

Cabe a este respeito recordar um fundamental poema inglês de Pessoa, “The King of Gaps”, “O Rei das fendas/ brechas,/ aberturas/ hiatos/ lacunas/ vazios/ intervalos/ abismos”, que muito ajuda a compreender o “intervalo” em que está imerso o D. Sebastião pessoano. Este “rei desconhecido”, senhor de um “estranho Reino dos Vazios” com o qual coincide, figura isso que há “entre” uma “coisa” e outra “coisa”, o intervalar e não entificado espaço vazio que se desvela entre as entidades, o fundo informe onde as formas se recortam e definem, bem designado como “entre-seres”. Se num sentido parece assumir a função de um Mesmo indiferenciado, perante o qual tudo o que nele se delimita surge como as múltiplas formas da sua alteridade, ou se noutro sentido podemos pensá-lo como o Outro enquanto transcende e envolve todas as formas do mesmo, num outro sentido podemos reconhecer-lhe uma transcensão mais radical, tanto do mesmo como do outro, tanto do idêntico como do diferente, na medida em que estes se constituam no âmbito de uma relação mútua entre formas e entidades que só se torna possível por haver esse espaço não-entitativo do “estranho Reino dos Vazios” que permite a constituição e o reconhecimento da relação e do relacionado.

Seja como for, é Nisso que imerge D. Sebastião e é Isso/Esse que anuncia regressar. Este segundo poema dedicado a D. Sebastião confirma a transfiguração do herói épico e trágico, malogrado protagonista histórico, num intemporal avatar espiritual, qual Bodhisattva ou Redentor gnóstico que, desperto e iluminado, se dirige aos homens, pela voz de Pessoa, seu poeta-profeta, ensinando-lhes já a necessidade de transformação da sua esperança quanto ao seu futuro regresso para junto deles, que tudo indica nada ter a ver com uma redenção política e temporal, mas antes com o exercício de um magistério espiritual que não visa senão conduzi-los ao mesmo estado livre e desperto, à mesma libertação da “Sorte”, à mesma ressurreição, dei-ficação ou iluminação.

Esta é uma possibilidade de leitura, que não contradiz outra, mais funda e acalentada pelo próprio Pessoa, em que o regresso de D. Sebastião, como é aliás mais adequado a uma potência espiritual, não é tanto exterior quanto interior, podendo dar-se a qualquer momento em todo o homem que evoque em si o mesmo que D. Sebastião evocou. D. Sebastião, ou seja, uma potência espiritual desperta e livre do espaço e do tempo, regressa efectivamente em todo aquele que deseje a mesma libertação da “Sorte” e se afunde no mesmo “intervalo” divino, na mesma luminosa matriz primordial de todas as coisas [3]. Que isto seja susceptível de uma expressão colectiva, adverte-o também Pessoa, ao dizer do “mito sebastianista, com raízes profundas no passado e na alma portuguesa”: “Comecemos por nos embebedar desse sonho, por o integrar em nós, por o incarnar. Feito isso, cada um de nós independentemente e a sós consigo, o sonho se derramará sem esforço em tudo que dissermos ou escrevermos, e a atmosfera estará criada, em que todos os outros, como nós, o respirem. Então se dará na alma da Nação o fenómeno imprevisível de onde nascerão as Novas Descobertas, a Criação do Mundo Novo, o Quinto Império. Terá regressado El-Rei D. Sebastião” [4].

Regressará, em nós, D. Sebastião, mas, fundamental não o esquecer, Outro, jamais o mesmo. O que implica que, em nós, o mesmo morra e deixe aparecer o Outro.

Assim se desencobre o Encoberto. O que reside entre cada coisa, pensamento, palavra e acção.


[1] Cf. Odon Vallet, Petit lexique des mots essentiels, Paris, Albin Michel, 2007, pp.63-64.

[2] Cf. Jean-Yves Leloup, “Notre Père”, Paris, Albin Michel, 2007, pp.173-174.

[3] É isso que salientamos neste texto decisivo: “A metempsicose. A alma é imortal e, se desaparece, torna a aparecer onde é evocada através da sua forma. Assim, morto D. Sebastião, o corpo, se conseguirmos evocar qualquer cousa em nós que se assemelha à forma do esforço de D. Sebastião, ipso facto o teremos evocado e a alma dela entrará para a forma que evocámos. Por isso quando houverdes criado uma cousa cuja forma seja idêntica à do pensamento de D. Sebastião, D. Sebastião terá regressado, mas não só regressado modo dizendo, mas na sua realidade e presença concreta, posto que não fisicamente pessoal. Um acontecimento é um homem, ou um espírito sob forma impessoal” – Fernando Pessoa, Sobre Portugal. Introdução ao problema nacional, recolha de textos de Maria Isabel Rocheta e Maria Paula Morão, introdução e organização de Joel Serrão. Lisboa, Ática, 1979, p.196.

[4] Cf. Ibid., p. 255.

FONTE:
BORGES, Paulo. O regresso em nós de D. Sebastião ou o fim do sebastianismo. Disponível em: < http://serpenteemplumada.blogspot.com.br/2009/12/o-regresso-em-nos-de-d-sebastiao-ou-o.html>. Acesso em: 26 mar. 2016.

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