Por
Paulo Borges
Sobre um fundo negro recorta-se a figura de D.
Sebastião representado a meio corpo com uma armadura tauxiada ricamente
decorada a ouro com motivos geométricos, e de cuja gorjeira e punhos
saem folhos claros encanudados. Com a mão esquerda apoiada no punho da espada e
a outra à cintura, o rei tem à sua esquerda um cão. Este retrato de D.
Sebastião com a idade de 17 anos filia-se à produção tradicional de retratos de
Corte iniciada por Anthonis Moro e desenvolvida pelo pintor português Cristóvão
de Morais. A imagem do jovem rei representado a três quartos revela algumas das
características técnicas e pictóricas deste pintor, e, como nota Annemarie
Jordan, os olhos amendoados, as orelhas pontiagudas, o
espaço entre os dedos alongados, os lábios carnudos e cerrados, a cabeça oval e
a paleta contrastada dos pretos, vermelhos e brancos, aproximam muito este
quadro de um outro retrato de D. Sebastião figurado a corpo inteiro, que se
encontra no Convento das Descalzas Reales, em Madri. No quadro de Lisboa,
destinado a ser oferecido ao Papa Pio V, D. Sebastião surge como um cavaleiro
cristão, simbolismo que, neste caso, é ainda reforçado pela armadura e pela
espada sobre a qual se apoia a mão esquerda, elementos que remetem para uma
tipologia de retratos de Corte dos Habsburgo. Por sua vez, a presença de um cão
liga esta pintura às mais antigas representações de Carlos V, o primeiro
monarca a ter-se feito retratar na companhia de um cão, pintado em 1530, por
Jakob Seisenegger (Kunsthistorisches Museum, Viena). Pintura atribuída a
Cristóvão de Morais (ativo c. 1539-1580) e datada entre 1571-1574, hoje exposta
no Museu Nacional de Arte Antiga, em Lisboa.
D. Sebastião
Sperai! Caí no areal e na
hora adversa
Que Deus concede aos seus
Para o intervalo em que
esteja a alma imersa
Em sonhos que são Deus.
Que importa o areal, a morte
e a desventura
Se com Deus me guardei?
É O que eu me sonhei que
eterno dura,
É Esse que regressarei.
O segundo poema que tem como
título “D. Sebastião” é o primeiro dos cinco “Símbolos” que abrem a terceira
parte, “O Encoberto”, da Mensagem. Nele o poeta volta a dar voz a um rei que –
falando sempre como esse ser “que há” e não “que houve”, ou seja, como imortal
dotado da “grandeza” de ser livre da “Sorte” – exorta a que esperem pelo seu
regresso aqueles que ainda permanecem escravos da comum condição mortal e
humana, reproduzindo a sua submissão ao Destino enquanto cadáveres adiados que
procriam. D. Sebastião continua a ser aqui, numa coerência rigorosa, a figura
de um rei-Outro, de uma consciência desperta que exorta os que esperam o seu
regresso ao mundo dos homens a que não esperem que regresse o mesmo que partiu.
Efectivamente, tendo-se convertido No que se sonhou, tendo-se tornado Naquele
que se desejou, um ser emancipado do Destino, e sendo isso “eterno”, não pode senão
ser “Esse” que regressará. Não faz sentido assim que o esperem com uma
expectativa adequada ao que foi e já não é nem poderá nunca mais ser, não faz
sentido que o esperem com a predominante esperança sebastianista que sobrevive
à possibilidade do regresso físico do rei desaparecido em Alcácer-Quibir e se
converte num paradigma da mentalidade portuguesa em épocas de crise e profunda
insatisfação, fruto da laicização da expectativa messiânica: a expectativa de
que surja um mero líder político, redentor da pátria oprimida e decadente,
restaurador da ordem ameaçada e condutor da nação em períodos de crise da
identidade e sentido da sua vida histórica. O D. Sebastião de Pessoa exorta a
que o esperem, mas não como o Mesmo, antes como Outro, não como mortal, antes
como imortal.
D. Sebastião exorta ao fim
do sebastianismo comum, recordando que o seu fracasso humano, pessoal e
histórico não foi senão o reverso do divino dom de uma oportunidade superior a
todo o triunfo bélico e a todo o poder e glória temporais. Caindo “no areal e
na hora adversa”, segundo a percepção mundana e exterior, D. Sebastião na
verdade acedeu ao “intervalo” da imersão da “alma” “em sonhos que são Deus”,
concedido pelo divino aos “seus”, ou seja, aos que o buscam acima de tudo, aos
seus “amigos”.
O que são este “intervalo”,
esta imersão e estes “sonhos que são Deus”? “Intervalo”, do latim intervallum, é o espaço ou distância
entre dois pontos ou lugares, que etimologicamente são duas paliçadas ou
trincheiras (vallum), também com o
sentido de baluartes, defesas, protecções. O “intervalo”, ainda segundo um dos
sentidos da palavra latina, sugere-se como o repouso ou descanso da “alma” em
algo que não a pré-ocupa com a construção de limites e muros autoprotectores, o
repouso ou descanso da “alma” relativamente a toda a pré-ocupação, mental,
emocional ou física, com a separação entre uma coisa e outra, a divisão entre
si e o outro, a defesa e o ataque, a dualidade, o medo e a (in)segurança. Livre
de tudo isso, é no intervalo disso tudo, na “pausa” (outro sentido do intervallum latino) de toda essa
agitação, que se pode abrir e absorver plenamente “em sonhos que são Deus”. Ou
seja, no contexto da Mensagem, viver a “loucura” daquela ânsia de “grandeza”
trans-mundana e transcensão de toda a “Sorte”/condição mortal que se converte
nisso e é já isso mesmo a que ardentemente aspira. O desejo veemente dessa
“grandeza” insuperável é já a vibrante e imanente epifania do divino. Como
escreve Pessoa no poema “D. Fernando. Infante de Portugal”: “E esta febre de
Além, que me consome, / E este querer grandeza são seu nome / Dentro em mim a
vibrar”. É isso que torna o sujeito “cheio de Deus” e é isso, e apenas isso,
que o pode ressuscitar, já em vida, de ser a “besta sadia” e “cadáver adiado
que procria”, vergado pelas indomadas “forças cegas” ao triste contentamento
com a vida doméstica e vegetativa. É isso, e apenas isso, que o pode
ressuscitar do tempo dos quatro impérios e operar a sua superação no Quinto, a
“verdade” pela qual “morreu D. Sebastião” (cf. o poema “O Quinto Império”), que
evidentemente nada tem a ver com qualquer domínio mundano, temporal e político.
Do mesmo modo que em D. Sebastião o ser “que há” transcende o “que houve”,
assim também o Quinto Império transcende o plano onde decorrem e se dissipam os
quatro, não podendo propriamente dizer-se que venha temporalmente após eles,
enquanto símbolo de uma possibilidade que transcende o tempo e o espaço e que é
a própria possibilidade do homem ou da consciência se imortalizar.
A alma de D. Sebastião está
pois “imersa / Em sonhos que são Deus”. O que é, todavia, “Deus”? A palavra
procede da raiz indo-europeia dei, que significa “tudo o que brilha”, donde vem
o sânscrito deva (deus), o iraniano daeva
(demónio) e o português dia [1]. Deus indica não um ser ou um ente, algo que
exista e possa ser objecto, algo que possa ser visto por alguém, mas antes a
própria luz invisível que torna todas as coisas visíveis, em termos
inteligíveis ou sensíveis, o ilimitado espaço luminoso que é matriz de todas as
possibilidades de manifestação e consciência, o nada inerente ao aparecimento
de tudo [2] (* cf . também o "nada que é de tudo" em Agostinho da
Silva). É aí que verdadeiramente cai, imerge e reside o D. Sebastião
transfigurado, que realiza a suma potencialidade de todo o homem. É nisso que
se guarda, baluarte sem defesas e assim inexpugnável pela derrota no “areal”,
“a morte e a desventura”. É Isso, afinal, que se sonhou e tornou, num
sonho/desejo/imaginação criadora (ou desveladora) que converte o amante na
coisa amada (cf. Luís de Camões), que realiza isso que imagina, em tudo
distinto daquele sonho ilusório e irreal que preside à história do mundo e dos
homens e à sucessão dos quatro impérios mundanos. “O” que se sonhou, esse
“Deus”/ matriz intemporal de toda a manifestação, transcende a consciência
temporal e a sua ilusão intrínseca, sendo da ordem do eterno. É só “Esse” que
D. Sebastião pode regressar, não o rei humano morto ou desaparecido no areal,
ou um seu substituto, mitificado pelo sebastianismo e esperado pelos
sebastianistas de todos os tempos, mas o sujeito transfigurado em Deus,
dei-ficado, ou seja, iluminado. Desperto e livre, em nada se distingue desse
espaço primordial, anterior a todas as coisas e de todas envolvente como a matriz
que as possibilita, mas que, na experiência mundana e condicionada, apenas se
abre nos inter-valos entre uma coisa e outra, entes, pensamentos, palavras e
acções.
Cabe a este respeito
recordar um fundamental poema inglês de Pessoa, “The King of Gaps”, “O Rei das fendas/ brechas,/ aberturas/ hiatos/ lacunas/ vazios/ intervalos/ abismos”, que muito
ajuda a compreender o “intervalo” em que está imerso o D. Sebastião pessoano.
Este “rei desconhecido”, senhor de um “estranho Reino dos Vazios” com o qual
coincide, figura isso que há “entre” uma “coisa” e outra “coisa”, o intervalar
e não entificado espaço vazio que se desvela entre as entidades, o fundo
informe onde as formas se recortam e definem, bem designado como “entre-seres”.
Se num sentido parece assumir a função de um Mesmo indiferenciado, perante o
qual tudo o que nele se delimita surge como as múltiplas formas da sua
alteridade, ou se noutro sentido podemos pensá-lo como o Outro enquanto
transcende e envolve todas as formas do mesmo, num outro sentido podemos
reconhecer-lhe uma transcensão mais radical, tanto do mesmo como do outro,
tanto do idêntico como do diferente, na medida em que estes se constituam no
âmbito de uma relação mútua entre formas e entidades que só se torna possível
por haver esse espaço não-entitativo do “estranho Reino dos Vazios” que permite
a constituição e o reconhecimento da relação e do relacionado.
Seja como for, é Nisso que
imerge D. Sebastião e é Isso/Esse que anuncia regressar. Este segundo poema
dedicado a D. Sebastião confirma a transfiguração do herói épico e trágico,
malogrado protagonista histórico, num intemporal avatar espiritual, qual
Bodhisattva ou Redentor gnóstico que, desperto e iluminado, se dirige aos
homens, pela voz de Pessoa, seu poeta-profeta, ensinando-lhes já a necessidade
de transformação da sua esperança quanto ao seu futuro regresso para junto
deles, que tudo indica nada ter a ver com uma redenção política e temporal, mas
antes com o exercício de um magistério espiritual que não visa senão
conduzi-los ao mesmo estado livre e desperto, à mesma libertação da “Sorte”, à
mesma ressurreição, dei-ficação ou iluminação.
Esta é uma possibilidade de
leitura, que não contradiz outra, mais funda e acalentada pelo próprio Pessoa,
em que o regresso de D. Sebastião, como é aliás mais adequado a uma potência
espiritual, não é tanto exterior quanto interior, podendo dar-se a qualquer
momento em todo o homem que evoque em si o mesmo que D. Sebastião evocou. D.
Sebastião, ou seja, uma potência espiritual desperta e livre do espaço e do
tempo, regressa efectivamente em todo aquele que deseje a mesma libertação da
“Sorte” e se afunde no mesmo “intervalo” divino, na mesma luminosa matriz
primordial de todas as coisas [3]. Que isto seja susceptível de uma expressão
colectiva, adverte-o também Pessoa, ao dizer do “mito sebastianista, com raízes
profundas no passado e na alma portuguesa”: “Comecemos por nos embebedar desse
sonho, por o integrar em nós, por o incarnar. Feito isso, cada um de nós
independentemente e a sós consigo, o sonho se derramará sem esforço em tudo que
dissermos ou escrevermos, e a atmosfera estará criada, em que todos os outros,
como nós, o respirem. Então se dará na alma da Nação o fenómeno imprevisível de
onde nascerão as Novas Descobertas, a Criação do Mundo Novo, o Quinto Império.
Terá regressado El-Rei D. Sebastião” [4].
Regressará, em nós, D.
Sebastião, mas, fundamental não o esquecer, Outro, jamais o mesmo. O que
implica que, em nós, o mesmo morra e deixe aparecer o Outro.
Assim se desencobre o Encoberto.
O que reside entre cada coisa, pensamento, palavra e acção.
[1] Cf. Odon Vallet,
Petit lexique des mots essentiels, Paris, Albin Michel, 2007, pp.63-64.
[2] Cf. Jean-Yves
Leloup, “Notre Père”, Paris, Albin Michel, 2007, pp.173-174.
[3]
É isso que salientamos neste texto decisivo: “A metempsicose. A alma é imortal
e, se desaparece, torna a aparecer onde é evocada através da sua forma. Assim,
morto D. Sebastião, o corpo, se conseguirmos evocar qualquer cousa em nós que
se assemelha à forma do esforço de D. Sebastião, ipso facto o teremos evocado e
a alma dela entrará para a forma que evocámos. Por isso quando houverdes criado
uma cousa cuja forma seja idêntica à do pensamento de D. Sebastião, D.
Sebastião terá regressado, mas não só regressado modo dizendo, mas na sua
realidade e presença concreta, posto que não fisicamente pessoal. Um
acontecimento é um homem, ou um espírito sob forma impessoal” – Fernando
Pessoa, Sobre Portugal. Introdução ao problema nacional, recolha de textos de
Maria Isabel Rocheta e Maria Paula Morão, introdução e organização de Joel
Serrão. Lisboa, Ática, 1979, p.196.
[4]
Cf. Ibid., p. 255.
FONTE:
BORGES,
Paulo. O regresso em nós de D. Sebastião
ou o fim do sebastianismo. Disponível em: < http://serpenteemplumada.blogspot.com.br/2009/12/o-regresso-em-nos-de-d-sebastiao-ou-o.html>.
Acesso em: 26 mar. 2016.
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