Por Leandro Delamare, 18°
Quem terá sido o primeiro
Maçom negro? E o primeiro Venerável negro?
Hoje em dia, nada há de
surpreendente na presença numerosa de Maçons negros, principalmente na
Maçonaria do Novo Mundo. Nos Estados Unidos, não há quem desconheça a
importância das Grandes Lojas do sistema Prince Hall. Além disto, temos hoje
uma Maçonaria já muito forte em muitos dos países do continente africano. Sem
contar que importantes Lojas americanas tradicionais, como a Grand Lodge of the District of Columbia
têm Veneráveis não apenas negros, mas também africanos. O Ir:. Teko A. Foly,
por exemplo, veio de Togo!
Saber quem foi o primeiro
Maçom negro é uma indagação natural, principalmente nos países da América
Latina, de população tão miscigenada. Não é muito difícil encontrar relatos
que nos esclareçam quem foi esse primeiro Maçom negro. Para nosso alívio, não
há quase contradições. Nossas pesquisas, que nos conduziram a diversos autores
no exterior e alguns também aqui, apontam para um mesmo nome: Ângelo Soliman.
Nossa curiosidade inicial
foi despertada por um artigo da revista Hiram (1/2004), publicação do Grande
Oriente da Itália, com um artigo excelente, Ângelo
Soliman, il primo Venerabile africano. Instigados por esse “furo de reportagem”,
por que não cavar mais fundo para saber? Felizmente, hoje temos a internet.
Baseado na documentação
existente podemos afirmar – com quase toda certeza – que Ângelo Soliman foi
realmente o primeiro Maçom negro. Mais do que isto, foi o primeiro Venerável
Mestre de ascendência africana na história da Maçonaria moderna. Esta
informação nos permite também perceber que desde os seus primórdios, a
Maçonaria já era uma instituição que pregava algo não muito presente nas diversas
outras instituições da época: o igualitarismo.
Nosso Irmão Ângelo Soliman
nasceu em 1721 na África, o local exato não se sabe. Existem documentos
históricos que dizem simplesmente que foi em um lugar desconhecido.
Outros dizem que foi no sul
da Etiópia. Mas também existem referencias sólidas de que ele nasceu em algum
lugar no norte da Nigéria, no império de Wandala, onde hoje atualmente é o
Camarões ou, ainda, no nordeste da Nigéria.
Seu nome original era Mmadi Fazer, o mesmo nome de um rei que
governava um território islâmico africano. Ele foi vendido como escravo aos
sete anos de idade, trabalhando como guardião de camelos no Marrocos. Anos
mais tarde, algo típico das trocas comerciais entre os povos do mediterrâneo
desde os primórdios dos tempos, do Mediterrâneo, quando era escravo de uma
senhora rica da nobreza siciliana, foi batizado em 11 de setembro de 1731, com
o nome de Ângelo Soliman e então enviado como um presente para a família
Lobkowitz. Com isso Ângelo se tornou um fiel aliado do príncipe Johann Georg
Christian Lobkowitz, que na época governava a Sicília, acompanhando o mesmo
nos campos de batalha na Lombardia, Transilvânia, Bohemia e Hungria.
Após a morte do general
Lobkowitz ele foi enviado como propriedade do príncipe Wenzel von Liechtensteing,
que em 1755 o levou para sua residência, em Viena.
Com a experiência adquirida
em todas as suas viagens sociais e militares, Ângelo se tornou uma pessoa
muito culta e, em muito pouco tempo, foi promovido em seu trabalho. Por seus
méritos, ganhou a confiança da família, chegando inclusive a ser o tutor do
príncipeAloys.
Soliman se casou com
Magdalena, viúva do Secretário Anton Christiano e irmã do futuro general
francês Kellermann, em 6 de fevereiro de 1768, na Catedral de Santo Estêvão, em
Viena, em uma cerimonia secreta, com dispensa especial do cardeal Migazzi.
Este segredo foi mantido pelo cardeal. Não era para menos. Afinal, o casamento
de uma viúva francesa com um africano geraria muito comentário na sociedade
europeia, extremamente conservadora como era na época. Seria mesmo um dos
pontos de conflito entre ele e o príncipe ultraconservador.
Não se sabe realmente se
havia outros motivos para que o casamento fosse mantido em segredo. Porém,
mesmo com todas as precauções, o príncipe Liechtenstein acabou sabendo do
casamento e dispensou os serviços de Soliman, fazendo dele, assim, um homem
livre.
A família Soliman-Kellermann
morava em uma casa propriedade de sua esposa Magdalena, no subúrbio
Weissgarber, onde em 1772, deu à luz a sua filha, J osephine, e onde viveu até
1783.
Soliman
Maçom
Soliman foi iniciado na
década entre 1771 e 1781, na Loja Zur Eintracht
Wahren (Para a Verdadeira Concórdia),
Loja esta que também tinha em seus quadros diversos membros da elite social,
política e artística de Viena. Existem inclusive diversos relatos da época que
das frequentes visitas de Mozart à loja de Soliman. Este escolhera Massinissa
como seu nome heróico, homenagem ao rei da Numídia, que viveu em 240-148 a. C.
Soliman foi Venerável Mestre
desta mesma Loja por um período e deu um novo alento à cultura dos Maçons. Ele
mudou o ritual para permitir a leitura de ensaios científicos na Loja, que
incentivava seus membros a produzir trabalhos acadêmicos, música e poesia para
sessões meio públicas, de modo a produzir debate e difundir conhecimentos. E
foi além, porque a Loja fazia publicações periódicas. Um trecho publicado na
internet pela Loja Amen Ra nº 584, de
Milwaukee, no estado americano de Wisconsin, permite calcular o impacto das
ações de Ângelo: “Viena, assim, rapidamente tornou-se um centro da República de
Letras, gerando uma notável atividade em prol do Iluminismo em curto tempo”.
Da mesma forma que muitos
intelectuais de sua Loja, ele se tornou um modelo muito respeitado da Maçonaria
progressista do seu tempo. Seu salário anual modesto, apenas 600 florins, fez
com que Soliman tenha vivido com sua família à beira da pobreza. Ainda assim,
ele sempre prezou muito pela cultura e pelos estudos. Basta salientar que ele
falava fluentemente seis idiomas: latim, italiano, francês, alemão, inglês e
tcheco.
No ano de sua aposentadoria,
Soliman foi impedido de viver em sua casa no subúrbio de Viena e passou então
a viver com sua esposa e filha no palácio Liechtenstein. Após a morte de sua
esposa, o que acorreu em 1786, tornou-se insociável, colocando toda a sua energia
na educação de sua filha Josephine. Ele se sentia livre, tinha uma boa saúde, e
não deixava qualquer traço do declínio natural da idade nem sua aparência externa
atrapalhar seus planos.
Soliman morreu em 21 de novembro
de 1796, inesperadamente às duas da tarde, durante uma caminhada ao longo do rio.
Poucas horas após sua morte, seu corpo foi reivindicado pelo Imperador Francisco
II (1768-1835), que ordenou que o escultor Franz Traller trocasse a roupa e o empalhasse.
O corpo foi moldado em gesso a pedido do monarca, que tinha o estranho hábito de
colecionar corpos humanos empalhados.
Apesar dos apelos de sua filha,
os protestos indignados de seus irmãos Maçons e até mesmo as objeções do arcebispo
católico, o Imperador colocou em exposição, em seu museu particular.
O destino post mortem de Ângelo Soliman em Viena causou
tal comoção que foram escritas diversas historias e documentos sobre o caso. Se
foi um exemplo de vingança torpe contra um negro livre, foi também, ao mesmo tempo,
uma demonstração de voyeurismo bizarro, discriminação e racismo. O corpo recheado
e exposto de Soliman, montado em uma moldura de madeira, para o resto do longo
reinado do imperador Francisco II, permaneceu em exposição, juntamente com os
animais selvagens no museu do Imperador. Não há o que se espantar. O gosto pelo
bizarro continua nos dias de hoje. Basta lembrar dos circos de horrores dos séculos
passados e dos filmes de terror que ainda fazem sucesso...
Esforços foram inúteis para se
obter os restos do cadáver para que se pudesse enterrá-lo. Muitos criticavam duramente
a “curiosidade” despertada pela exposição escandalosa de um ser humano quase nu,
de rara beleza e pele escura. Para Viena em geral, e em particular para os Maçons,
vetores das teorias do progresso humano pela Ilustração, o desrespeito a Soliman
foi um testemunho vivo da política da oligarquia reacionária.
Lamentavelmente, após a morte
do imperador José II (1741- 1790), que em 1781 tinha publicado o Édito de Tolerância
e quatro anos mais tarde concedia ao Maçons “proteção e liberdade”, seu sobrinho
e sucessor Francisco II , depois de enfrentar uma conspiração no início de seu reinado,
não só ordenou a prisão e execução de alguns dos republicanos no círculo de Mozart,
mas também a prisão do marquês de Lafayette, amigo de George Washington. Isto
pode ser atribuído, em parte, aos tempos em que vivia. No mesmo ano em que assumiu
o trono, a Revolução Francesa mandava Luís XVI e sua tia, a rainha austríaca,
Maria Antonieta, ao cadafalso. Obviamente as reformas sociais e políticas preconizadas
pela Maçonaria, implantadas a ferro e fogo pelo adversário temível, Napoleão Bonaparte,
em nada contribuíram para angariar sua simpatia. Porém, seu comportamento em relação
a Ângelo Soliman, por si só, teria estabelecido sua reputação intransigente e reacionária
– e mórbida.
Colin Dickey em seu livro, Cranioklepty, narra como a cabeça do compositor
Franz Haydn foi roubada da sepultura. Aparentemente, a julgar pelo subtítulo do
livro, Grave robbing and the search for
genius (o roubo de sepulturas e a busca pela genialidade) vemos que a
Europa ainda não se havia livrado do apego às relíquias da Idade Média, se bem
que por motivos diversos.
Na verdade, Soliman não
estava sozinho nesse circo de horrores, ainda nada raro na época. Após embalsamar o raro “espécime”
humano para mostrar em seu gabinete de história natural, foram adicionados,
nos seis anos seguintes, uma menina de seis anos, de pele da mesma cor,
presente de Maria Carolina, rainha das Duas Sicílias, e finalmente Pietro
Michele Angiola, ex-tratador do Zoológico do palácio Schönbrunn, montando um
camelo. Em 1806, o novo diretor do gabinete de ciências naturais, Carl
Schreiber, decidiu que não era apro¬priado expor exemplares humanos e decidiu
colocá-los em uma sala ao lado, para mostrar apenas aos que expressamente
solicitassem. Mas, apesar de todos os escrúpulos, a coleção se expandiu. Em
1808, o Gabinete recebeu um presente de pele escura, ex-enfermeiro chefe do hospital
de Misericordia, Joseph Hammer.
As relíquias macabras de
Soliman e seus companheiros de infortúnio sucumbiram aos movimentos revolucionários
de 1848. Quando uma granada foi atirada na biblioteca Hofburg, em 31 de
outubro, foram tomadas pelas chamas. Não restam vestígios das relíquias de
Ângelo Soliman e dos outros.
Soliman, por ser negro e
Maçom, certamente era peculiar em uma sociedade cuja postura reacionária fora
radicalizada pelas consequências da Revolução Francesa e pelas ações de
Napoleão. Para a prática abominável e falta de respeito, resta-nos a certeza de
que Soliman só foi alcançado pelo racismo depois de sua morte, mesmo em uma
sociedade decadente e já nos seus estertores. Mesmo mal conhecido, Ângelo
Soliman merece ser lembrado não apenas pela primazia como Maçom, mas como
emblema da Maçonaria diversificada que temos hoje.
Há rumores de que ele teria
sido a inspiração para dois personagens na obra de Wolfgang Amadeus Mozart: o
Monotastos, da Flauta Mágica, e Bassa
Selim, de O Rapto do Serralha.
Recentemente, o Museu de Viena organizou uma exposição de sucesso a ele dedicada,
intitulada Soliman, um africano em Viena.
Em algum ponto do passado, a
mesma Áustria que nos deu Haydn e Mozart, nos deu também Ângelo Soliman.
Colar da Ordem do Tosão de Ouro, instituída
em 1540 pelo duque Felipe IlI, da Borgonha, uma das ordens de maior prestígio
na Europa. Ângelo Soliman, apesar dos preconceitos, era detentor da
condecoração.
Canaletto pintou Viena ao tempo de Soliman e Mozart.
Aqui, detalhe do quadro mostra a praça de Freyung.
Selo austríaco em homenagem a Soliman.
Reconstituição de Ângelo Soliman, a partir da
máscara mortuária, feita pelo escultor Franz Traller, para a exposição do Museu
de Viena.
Mozart em sua Loja, tela de Ignaz Unterberger
FONTE:
DELAMARE,
Leandro. O primeiro maçom negro. In Astrea.
ano XC, n. 36. jan-jun 2015. Órgão oficial do Supremo Conselho Grau 33º do Rito
Escocês Antigo e Aceito da Maçonaria para a República Federativa do Brasil. Rio
de Janeiro: Infinity Editorial e Promocional, 2015. p. 21-24.
Muito louvavel a historia de Angelo Soliman só que nos deixa uma duvida que fim levou seu corpo empalhado e porque a Maçonaria não o sequestrou com todo seu poder na epoca dos fatos.
ResponderExcluirA relíquia macabra ficou na coleção imperial até que, durante a revolução de 1848, uma bomba jogada na biblioteca do palácio destruiu os restos de Angelo Soliman com uma explosão de chamas misericordiosas.
Excluir(http://filhosdehiran.blogspot.com.br/2010/10/angelo-soliman-o-macom-negro.html)
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluir