quinta-feira, 24 de março de 2016

O PRIMEIRO MAÇOM NEGRO




Por Leandro Delamare, 18° 

Quem terá sido o primeiro Maçom negro? E o primei­ro Venerável negro?

Hoje em dia, nada há de surpreen­dente na presença numerosa de Maçons negros, principalmente na Maçonaria do Novo Mundo. Nos Estados Unidos, não há quem des­conheça a importância das Grandes Lojas do sistema Prince Hall. Além disto, temos hoje uma Maçonaria já muito forte em muitos dos países do continente africano. Sem contar que importantes Lojas americanas tradicionais, como a Grand Lodge of the District of Columbia têm Vene­ráveis não apenas negros, mas tam­bém africanos. O Ir:. Teko A. Foly, por exemplo, veio de Togo!

Saber quem foi o primeiro Maçom negro é uma indagação natural, principalmente nos países da Amé­rica Latina, de população tão misci­genada. Não é muito difícil encon­trar relatos que nos esclareçam quem foi esse primeiro Maçom negro. Para nosso alívio, não há quase contradições. Nossas pesquisas, que nos conduziram a diversos autores no exterior e alguns tam­bém aqui, apontam para um mesmo nome: Ângelo Soliman.

Nossa curiosidade inicial foi desper­tada por um artigo da revista Hiram (1/2004), publicação do Grande Oriente da Itália, com um artigo excelente, Ângelo Soliman, il primo Venerabile africano. Instigados por esse “furo de reportagem”, por que não cavar mais fundo para saber? Felizmente, hoje temos a internet.

Baseado na documentação existen­te podemos afirmar – com quase toda certeza – que Ângelo Soliman foi realmente o primeiro Maçom negro. Mais do que isto, foi o prime­iro Venerável Mestre de ascendên­cia africana na história da Maçona­ria moderna. Esta informação nos permite também perceber que desde os seus primórdios, a Maçonaria já era uma instituição que pregava algo não muito presente nas diver­sas outras instituições da época: o igualitarismo.

Nosso Irmão Ângelo Soliman nas­ceu em 1721 na África, o local exato não se sabe. Existem documentos históricos que dizem simplesmente que foi em um lugar desconhecido.

Outros dizem que foi no sul da Etió­pia. Mas também existem referen­cias sólidas de que ele nasceu em algum lugar no norte da Nigéria, no império de Wandala, onde hoje atu­almente é o Camarões ou, ainda, no nordeste da Nigéria.

Seu nome original era Mmadi Fazer, o mesmo nome de um rei que governava um território islâmico africano. Ele foi vendido como escravo aos sete anos de idade, tra­balhando como guardião de came­los no Marrocos. Anos mais tarde, algo típico das trocas comerciais entre os povos do mediterrâneo desde os primórdios dos tempos, do Mediterrâneo, quando era escravo de uma senhora rica da nobreza siciliana, foi batizado em 11 de setembro de 1731, com o nome de Ângelo Soliman e então enviado como um presente para a família Lobkowitz. Com isso Ângelo se tornou um fiel aliado do príncipe Johann Georg Christian Lobko­witz, que na época governava a Sicília, acompanhando o mesmo nos campos de batalha na Lombardia, Transilvânia, Bohemia e Hungria.

Após a morte do general Lobkowitz ele foi enviado como propriedade do príncipe Wenzel von Liechtenste­ing, que em 1755 o levou para sua residência, em Viena.

Com a experiência adquirida em todas as suas viagens sociais e mili­tares, Ângelo se tornou uma pessoa muito culta e, em muito pouco tem­po, foi promovido em seu trabalho. Por seus méritos, ganhou a confian­ça da família, chegando inclusive a ser o tutor do príncipeAloys.

Soliman se casou com Magdalena, viúva do Secretário Anton Christia­no e irmã do futuro general francês Kellermann, em 6 de fevereiro de 1768, na Catedral de Santo Estêvão, em Viena, em uma cerimonia secre­ta, com dispensa especial do cardeal Migazzi. Este segredo foi mantido pelo cardeal. Não era para menos. Afinal, o casamento de uma viúva francesa com um africano geraria muito comentário na sociedade europeia, extremamente conserva­dora como era na época. Seria mesmo um dos pontos de conflito entre ele e o príncipe ultraconserva­dor.

Não se sabe realmente se havia outros motivos para que o casamen­to fosse mantido em segredo. Porém, mesmo com todas as preca­uções, o príncipe Liechtenstein acabou sabendo do casamento e dispensou os serviços de Soliman, fazendo dele, assim, um homem livre.

A família Soliman-Kellermann morava em uma casa propriedade de sua esposa Magdalena, no subúr­bio Weissgarber, onde em 1772, deu à luz a sua filha, J osephine, e onde viveu até 1783.

Soliman Maçom

Soliman foi iniciado na década entre 1771 e 1781, na Loja Zur Ein­tracht Wahren (Para a Verdadeira Concórdia), Loja esta que também tinha em seus quadros diversos membros da elite social, política e artística de Viena. Existem inclusi­ve diversos relatos da época que das frequentes visitas de Mozart à loja de Soliman. Este escolhera Massi­nissa como seu nome heróico, homenagem ao rei da Numídia, que viveu em 240-148 a. C.

Soliman foi Venerável Mestre desta mesma Loja por um período e deu um novo alento à cultura dos Maçons. Ele mudou o ritual para permitir a leitura de ensaios cientí­ficos na Loja, que incentivava seus membros a produzir trabalhos aca­dêmicos, música e poesia para ses­sões meio públicas, de modo a pro­duzir debate e difundir conheci­mentos. E foi além, porque a Loja fazia publicações periódicas. Um trecho publicado na internet pela Loja Amen Ra nº 584, de Milwau­kee, no estado americano de Wis­consin, permite calcular o impacto das ações de Ângelo: “Viena, assim, rapidamente tornou-se um centro da República de Letras, gerando uma notável atividade em prol do Iluminismo em curto tempo”.

Da mesma forma que muitos intelectuais de sua Loja, ele se tornou um modelo muito respeitado da Maçonaria progressista do seu tem­po. Seu salário anual modesto, apenas 600 florins, fez com que Soliman tenha vivido com sua famí­lia à beira da pobreza. Ainda assim, ele sempre prezou muito pela cultu­ra e pelos estudos. Basta salientar que ele falava fluentemente seis idiomas: latim, italiano, francês, alemão, inglês e tcheco.

No ano de sua aposentadoria, Soli­man foi impedido de viver em sua casa no subúrbio de Viena e passou então a viver com sua esposa e filha no palácio Liechtenstein. Após a morte de sua esposa, o que acorreu em 1786, tornou-se insociável, colocando toda a sua energia na educação de sua filha Josephine. Ele se sentia livre, tinha uma boa saúde, e não deixava qualquer traço do declínio natural da idade nem sua aparência externa atrapalhar seus planos.

Soliman morreu em 21 de novem­bro de 1796, inesperadamente às duas da tarde, durante uma cami­nhada ao longo do rio. Poucas horas após sua morte, seu corpo foi reivin­dicado pelo Imperador Francisco II (1768-1835), que ordenou que o escultor Franz Traller trocasse a roupa e o empalhasse. O corpo foi moldado em gesso a pedido do monarca, que tinha o estranho hábi­to de colecionar corpos humanos empalhados.

Apesar dos apelos de sua filha, os protestos indignados de seus irmãos Maçons e até mesmo as objeções do arcebispo católico, o Imperador colocou em exposição, em seu museu particular.

O destino post mortem de Ângelo Soliman em Viena causou tal como­ção que foram escritas diversas his­torias e documentos sobre o caso. Se foi um exemplo de vingança torpe contra um negro livre, foi também, ao mesmo tempo, uma demonstração de voyeurismo bizar­ro, discriminação e racismo. O corpo recheado e exposto de Soli­man, montado em uma moldura de madeira, para o resto do longo rei­nado do imperador Francisco II, permaneceu em exposição, junta­mente com os animais selvagens no museu do Imperador. Não há o que se espantar. O gosto pelo bizarro continua nos dias de hoje. Basta lembrar dos circos de horrores dos séculos passados e dos filmes de terror que ainda fazem sucesso...

Esforços foram inúteis para se obter os restos do cadáver para que se pudesse enterrá-lo. Muitos critica­vam duramente a “curiosidade” despertada pela exposição escandalosa de um ser humano quase nu, de rara beleza e pele escura. Para Viena em geral, e em particular para os Maçons, vetores das teorias do pro­gresso humano pela Ilustração, o desrespeito a Soliman foi um teste­munho vivo da política da oligar­quia reacionária.

Lamentavelmente, após a morte do imperador José II (1741- 1790), que em 1781 tinha publicado o Édito de Tolerância e quatro anos mais tarde concedia ao Maçons “proteção e liberdade”, seu sobrinho e sucessor Francisco II , depois de enfrentar uma conspiração no início de seu reinado, não só ordenou a prisão e execução de alguns dos republica­nos no círculo de Mozart, mas tam­bém a prisão do marquês de Lafa­yette, amigo de George Washing­ton. Isto pode ser atribuído, em parte, aos tempos em que vivia. No mesmo ano em que assumiu o tro­no, a Revolução Francesa mandava Luís XVI e sua tia, a rainha austría­ca, Maria Antonieta, ao cadafalso. Obviamente as reformas sociais e políticas preconizadas pela Maço­naria, implantadas a ferro e fogo pelo adversário temível, Napoleão Bonaparte, em nada contribuíram para angariar sua simpatia. Porém, seu comportamento em relação a Ângelo Soliman, por si só, teria estabelecido sua reputação intransi­gente e reacionária – e mórbida.

Colin Dickey em seu livro, Cranioklepty, narra como a cabeça do compositor Franz Haydn foi roubada da sepultura. Aparentemente, a julgar pelo subtítulo do livro, Grave robbing and the search for genius (o roubo de sepulturas e a busca pela genialidade) vemos que a Europa ainda não se havia livrado do apego às relíquias da Idade Média, se bem que por motivos diversos.

Na verdade, Soliman não estava sozinho nesse circo de horrores, ainda nada raro na  época. Após embalsamar o raro “espécime” humano para mostrar em seu gabinete de história natural, foram adicionados, nos seis anos seguintes, uma menina de seis anos, de pele da mesma cor, presente de Maria Carolina, rainha das Duas Sicílias, e finalmente Pietro Michele Angiola, ex-tratador do Zoológico do palácio Schönbrunn, montando um camelo. Em 1806, o novo diretor do gabinete de ciências naturais, Carl Schreiber, decidiu que não era apro¬priado expor exemplares humanos e decidiu colocá-los em uma sala ao lado, para mostrar apenas aos que expressamente solicitassem. Mas, apesar de todos os escrúpulos, a coleção se expandiu. Em 1808, o Gabinete recebeu um presente de pele escura, ex-enfermeiro chefe do hospital de Misericordia, Joseph Hammer.

As relíquias macabras de Soliman e seus companheiros de infortúnio sucumbiram aos movimentos revolucionários de 1848. Quando uma granada foi atirada na biblioteca Hofburg, em 31 de outubro, foram tomadas pelas chamas. Não restam vestígios das relíquias de Ângelo Soliman e dos outros.

Soliman, por ser negro e Maçom, certamente era peculiar em uma sociedade cuja postura reacionária fora radicalizada pelas consequências da Revolução Francesa e pelas ações de Napoleão. Para a prática abominável e falta de respeito, resta-nos a certeza de que Soliman só foi alcançado pelo racismo depois de sua morte, mesmo em uma sociedade decadente e já nos seus estertores. Mesmo mal conhecido, Ângelo Soliman merece ser lembrado não apenas pela primazia como Maçom, mas como emblema da Maçonaria diversificada que temos hoje.

Há rumores de que ele teria sido a inspiração para dois personagens na obra de Wolfgang Amadeus Mozart: o Monotastos, da Flauta Mágica, e Bassa Selim, de O Rapto do Serralha. Recentemente, o Museu de Viena organizou uma exposição de sucesso a ele dedicada, intitulada Soliman, um africano em Viena.

Em algum ponto do passado, a mesma Áustria que nos deu Haydn e Mozart, nos deu também Ângelo Soliman.



Colar da Ordem do Tosão de Ouro, instituída em 1540 pelo duque Felipe IlI, da Borgonha, uma das ordens de maior prestígio na Europa. Ângelo Soliman, apesar dos preconceitos, era detentor da condecoração.




Canaletto pintou Viena ao tempo de Soliman e Mozart. Aqui, detalhe do quadro mostra a praça de Freyung.



Selo austríaco em homenagem a Soliman.



Reconstituição de Ângelo Soliman, a partir da máscara mortuária, feita pelo escultor Franz Traller, para a exposição do Museu de Viena.
  




Mozart em sua Loja, tela de Ignaz Unterberger


FONTE:
DELAMARE, Leandro. O primeiro maçom negro. In Astrea. ano XC, n. 36. jan-jun 2015. Órgão oficial do Supremo Conselho Grau 33º do Rito Escocês Antigo e Aceito da Maçonaria para a República Federativa do Brasil. Rio de Janeiro: Infinity Editorial e Promocional, 2015. p. 21-24.

3 comentários:

  1. Muito louvavel a historia de Angelo Soliman só que nos deixa uma duvida que fim levou seu corpo empalhado e porque a Maçonaria não o sequestrou com todo seu poder na epoca dos fatos.

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    1. A relíquia macabra ficou na coleção imperial até que, durante a revolução de 1848, uma bomba jogada na biblioteca do palácio destruiu os restos de Angelo Soliman com uma explosão de chamas misericordiosas.

      (http://filhosdehiran.blogspot.com.br/2010/10/angelo-soliman-o-macom-negro.html)

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