quinta-feira, 5 de dezembro de 2024

TANTAS REGRAS E REGULAÇÕES!

 

In Teresa Filósofa

 

Como homens puderam imaginar que a Divindade achava-se mais honrada, mais satisfeita, por vê-los comer um arenque e não uma calhandra, uma sopa de cebola e não uma sopa de toucinho, um linguado e não uma perdiz, e que essa mesma Divindade os condenaria para sempre se em certos dias eles dessem preferência à sopa de toucinho?

 

* * * * * *

 

Por Montesquieu

 

Um homem fazia todos os dias esta oração a Deus, “Senhor, nada entendo das discussões que sem cessar se produzem a teu respeito; gostaria de te servir segundo tua vontade, mas todos aqueles que consulto querem que eu te sirva à maneira deles. Quando quero te dirigir minha oração, não sei em que língua devo te falar. Tampouco sei que postura devo tomar: um diz que devo orar de pé, outro quer que fique sentado; outro exige que meu corpo se ponha de joelhos. Isso não é tudo. Há quem determina que eu deva me lavar todas as manhãs com água fria; outros sustentam que tu me olharias com horror, se não mandasse cortar um pequeno pedaço de minha carne. Outro dia me aconteceu que comi um coelho num caravançará; três homens que estavam perto me deixaram tremendo; os três afirmaram que te havia ofendido gravemente; um, porque esse animal era impuro1, outro, porque havia sido sufocado2; outro, enfim, porque não era peixe3. Um brâmane que passava por lá e ao qual pedi que fosse o juiz da questão, me disse: “Não têm razão porque, pelo que parece, não mataste o animal. – Sim, fui eu mesmo – lhe disse. Ah! Cometeste uma ação abominável, retrucou com voz severa, e Deus não te perdoará nunca, quem sabe se a alma de teu pai não tinha passado para esse animal?” Todas essas coisas, senhor, me deixam numa confusão insuperável; não posso mover a cabeça que estou prestes a te ofender, entretanto, gostaria de te agradar e empregar para tanto a vida que de ti recebi. Não sei se me engano, mas acredito que o melhor meio para chegar a isso é viver como bom cidadão na sociedade em que me fizeste nascer e como bom pai na família que me deste.”

 

De Paris, 8 da lua de Shahban, 1713.

 

Notas do autor:
1 Um judeu
2 Um turco
3 Um armênio

 

REFERÊNCIAS:
MONTESQUIEU. Cartas Persas. v. I. Tradução de Antônio Geraldo da Silva. Coleção Grandes Obras do Pensamento Universal, n. 47. São Paulo: Editora Escala, 2006. p. 114.
 
[D’ARGENS, Jean-Baptiste Boyer] Teresa Filósofa. Tradução de Carlota Gomes. Porto Alegre: L&PM, 2015. p. 99-100.

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