O conceito de “Deus”
foi inventado como antítese do conceito de vida - concentra em si, em espantosa
unidade, tudo que é nocivo, venenoso e difamador; todo o ódio contra a vida. Os
conceitos de “além” e de “mundo verdadeiro” foram inventados para depreciar o
único mundo que existe – para não legar à nossa realidade terrena nenhuma meta,
nenhuma razão, nenhum afazer. Os conceitos de “alma”, de “espírito” e, por
último, o conceito de “alma imortal” foram inventados para desprezar o corpo,
para adoecê-lo, torná-lo “santo”, para contrapor uma espantosa despreocupação em
relação a todas as coisas da vida que merecem ser tratadas com seriedade, ou
seja, as questões de nutrição e moradia, de regime intelectual, assistência aos
doentes, a limpeza e o clima. Em vez de saúde, encontramos a “salvação da alma”
– ou seja, a folie circulaire, flutuando entre convulsões e penitência e
a histeria da redenção. O conceito de “pecado”, juntamente com o instrumento de
tortura que lhe é inerente, que é o conceito de “livre-arbítrio”, foi inventado
para confundir e embaralhar nossos instintos e tornar a desconfiança em relação
a eles a segunda natureza do homem!
The concept “God” was invented as the opposite of the concept
life—everything detrimental, poisonous, and slanderous, and all deadly
hostility to life, was bound together in one horrible unite in him. The
concepts “beyond” and “true world” were invented in order to depreciate the
only world that exists—in order that no goal or aim, no sense or task, might be
left to earthly reality. The concepts “soul,” “spirit,” and last of all the
concept “immortal soul,” were invented in order to throw contempt on the body,
in order to make it sick and “holy,” in order to cultivate an attitude of
appalling levity towards all things in life which deserve to be treated
seriously, i. e. the questions of nutrition and habitation, of intellectual
diet, the treatment of the sick, cleanliness, and weather. Instead of health,
we find the “salvation of the soul”— that is to say, folie circulaire
fluctuating between convulsions and penitence and the hysteria of redemption.
The concept “sin,” together with the torture instrument appertaining to it,
which is the concept “free will,” was invented in order to confuse and muddle
our instincts, and to render the mistrust of them man’s second nature!
Salve João! Entendo a crítica de Nietzsche e concordo com o cerne da coisa. Mas na minha opinião essa crítica só é pertinente na medida em que caricaturiza os conceitos de Deus, de além, de alma, etc. para realçar alguns traços. Quando caricaturiza, salienta os sentidos problemáticos desses conceitos, mas ao mesmo tempo esconde o que, nesses mesmos conceitos, contradiz a própria crítica ou a própria caricatura. Eu pessoalmente compreendo todos esses conceitos citados por Nietzsche de forma inversa à acepção dada a eles na passagem. Para mim Deus é um outro nome para Vida (Michel Henry também pensa assim). "Alma e espírito" são expressões que realçam a profundidade sensível e afetiva do corpo, mostrando que o corpo humano é muito mais do que um objeto material qualquer (Um psicólogo que gosto, Alexander Lowen, tem um livro bom chamado "A Espiritualidade do Corpo"). "Além" é uma declaração de amor à vida vivida e real, o desejo que que ela perdure - e esse desejo é o que torna a coisa trágica (à la Unamuno). "Pecado" é tudo que prejudica a vida, que a violenta ou a deprecia. E livre-arbítrio é o nome dado à nossa capacidade de optar pelos instintos, pela intuição e pelas emoções ao invés de pautar a nossa vida apenas pelo intelecto frio. Mas o fato é que uma parte da tradição entendeu esses conceitos como Nietzsche acusa, como meios de depreciação da vida. Nesse caso, a crítica é justa e essencial.
ResponderExcluirBom dia, Professor Ramon! Salve!
ExcluirSempre bem-vindos os vossos comentários e vossa atenção para tão singelo blog. Também concordo que não devemos tomar o todo pela parte. A força criadora que alguns nomeiam como Deus está para além dessas "características" que os humanos lhe aplicam e das regras e regulações estabelecidas para se "religar" a ela.
Um ponto de Nietzsche despreza aí é a religião enquanto comunidade de sentido e espaço de sociabilidade: é graças a certos eventos religiosos que travamos contato com pessoas que, se não fosse por isso, jamais conheceríamos e que às vezes tornam-se nossas amigas pelo resto da vida.
Outro ponto que destaco são as pausas do trabalho proporcionadas pelos dias "santos" (hoje, feriados), momentos que podem ser empregados para a introspecção e que, minimamente, tornam a vida para o trabalho menos árida.
Ainda assim, como o senhor bem o disse, a crítica dele não deixa de ser pertinente, principalmente em relação aos fanatismos que depreciam o corpo em prol de um além do qual não temos qualquer prova de existência.
Até a próxima!
PS: Futuramente, espero ler os autores que o senhor citou. Já devidamente anotados.