sexta-feira, 6 de dezembro de 2024

A SELVA DE OPINIÕES

 

Por Buda

 

Assim, pelo fato de pensar nos assuntos que não devem ser pensados, e de não pensar nos assuntos que devem ser pensados, os obstáculos não surgidos aparecem nele [homem não-esclarecido], e os obstáculos já presentes aumentam.

Assim, sem sabedoria, ele pensa: “Existi no passado?” “Não existi no passado?” “Que fui no passado?” “Como fui no passado?” “O que tendo sido anteriormente, fui num passado remoto?” “Existirei no futuro?” “Não existirei no futuro?” “Que serei no futuro?” “O que serei posteriormente, num futuro remoto?” O presente também o torna perplexo sobre si mesmo: “Existo?” “Não existo?” “Que sou?” “Como serei?” “De onde venho?” “Para onde irei?”

Assim, pensando sem sabedoria, uma das seis opiniões errôneas aparecem nele: “Tenho uma alma?”; esta opinião falsa nasce nele como verdadeira e firme. “Não tenho alma?”; esta opinião falsa nasce nele como verdadeira e firme. “Por meio da alma, eu conheço a alma”; essa opinião falsa nasce nele como verdadeira e firme. “Por meio da alma, eu conheço a não-alma”; esta opinião falsa nasce nele como verídica e firme. Ou ainda esta outra opinião falsa surge nele: “Esta minha alma, que se expressa e sente, recebe aqui e lá o resultado das boas e más ações, ou esta minha alma é permanente, fixa, eterna, imutável, e assim permanece eternamente?”

Isto, ó discípulos, é denominado especulação de opiniões, selva de opiniões, deserto de opiniões, perversão de opiniões, agitação de opiniões e vínculo às opiniões.

Preso a estes vínculos de opiniões, o homem comum e não instruído na Doutrina não está liberto do nascimento, da velhice, da morte, das tristezas, lamentações, sofrimento, aflições, agonias; ele não está livre de dukkha [existência do sofrimento], eu o digo.

 [...]

Assim, por não pensar nos assuntos que não devem ser pensados, e pensar nos assuntos que devem ser pensados, os obstáculos não surgidos não aparecem nele, e os obstáculos já presentes decrescem.

[...]

Observando assim, ele se liberta de três vínculos: da ilusão do eu, da dúvida e da crença na eficácia de regras e rituais (cerimônias).

Tais são os obstáculos que devem ser superados pelo discernimento.

 

REFERÊNCIA:
BUDA. DISCURSO SOBRE TODOS OS OBSTÁCULOS: SABBASAVA SUTTA. In: SILVA, Georges da; HOMENKO, Rita. Budismo: psicologia do autoconhecimento (o caminho da correta compreensão). São Paulo: Pensamento, 1982. p. 140-141. Trechos selecionados. Colchetes nossos.

quinta-feira, 5 de dezembro de 2024

TANTAS REGRAS E REGULAÇÕES!

 

In Teresa Filósofa

 

Como homens puderam imaginar que a Divindade achava-se mais honrada, mais satisfeita, por vê-los comer um arenque e não uma calhandra, uma sopa de cebola e não uma sopa de toucinho, um linguado e não uma perdiz, e que essa mesma Divindade os condenaria para sempre se em certos dias eles dessem preferência à sopa de toucinho?

 

* * * * * *

 

Por Montesquieu

 

Um homem fazia todos os dias esta oração a Deus, “Senhor, nada entendo das discussões que sem cessar se produzem a teu respeito; gostaria de te servir segundo tua vontade, mas todos aqueles que consulto querem que eu te sirva à maneira deles. Quando quero te dirigir minha oração, não sei em que língua devo te falar. Tampouco sei que postura devo tomar: um diz que devo orar de pé, outro quer que fique sentado; outro exige que meu corpo se ponha de joelhos. Isso não é tudo. Há quem determina que eu deva me lavar todas as manhãs com água fria; outros sustentam que tu me olharias com horror, se não mandasse cortar um pequeno pedaço de minha carne. Outro dia me aconteceu que comi um coelho num caravançará; três homens que estavam perto me deixaram tremendo; os três afirmaram que te havia ofendido gravemente; um, porque esse animal era impuro1, outro, porque havia sido sufocado2; outro, enfim, porque não era peixe3. Um brâmane que passava por lá e ao qual pedi que fosse o juiz da questão, me disse: “Não têm razão porque, pelo que parece, não mataste o animal. – Sim, fui eu mesmo – lhe disse. Ah! Cometeste uma ação abominável, retrucou com voz severa, e Deus não te perdoará nunca, quem sabe se a alma de teu pai não tinha passado para esse animal?” Todas essas coisas, senhor, me deixam numa confusão insuperável; não posso mover a cabeça que estou prestes a te ofender, entretanto, gostaria de te agradar e empregar para tanto a vida que de ti recebi. Não sei se me engano, mas acredito que o melhor meio para chegar a isso é viver como bom cidadão na sociedade em que me fizeste nascer e como bom pai na família que me deste.”

 

De Paris, 8 da lua de Shahban, 1713.

 

Notas do autor:
1 Um judeu
2 Um turco
3 Um armênio

 

REFERÊNCIAS:
MONTESQUIEU. Cartas Persas. v. I. Tradução de Antônio Geraldo da Silva. Coleção Grandes Obras do Pensamento Universal, n. 47. São Paulo: Editora Escala, 2006. p. 114.
 
[D’ARGENS, Jean-Baptiste Boyer] Teresa Filósofa. Tradução de Carlota Gomes. Porto Alegre: L&PM, 2015. p. 99-100.

NA CAVERNA

 


Por Friedrich Nietzsche
 

O conceito de “Deus” foi inventado como antítese do conceito de vida - concentra em si, em espantosa unidade, tudo que é nocivo, venenoso e difamador; todo o ódio contra a vida. Os conceitos de “além” e de “mundo verdadeiro” foram inventados para depreciar o único mundo que existe – para não legar à nossa realidade terrena nenhuma meta, nenhuma razão, nenhum afazer. Os conceitos de “alma”, de “espírito” e, por último, o conceito de “alma imortal” foram inventados para desprezar o corpo, para adoecê-lo, torná-lo “santo”, para contrapor uma espantosa despreocupação em relação a todas as coisas da vida que merecem ser tratadas com seriedade, ou seja, as questões de nutrição e moradia, de regime intelectual, assistência aos doentes, a limpeza e o clima. Em vez de saúde, encontramos a “salvação da alma” – ou seja, a folie circulaire, flutuando entre convulsões e penitência e a histeria da redenção. O conceito de “pecado”, juntamente com o instrumento de tortura que lhe é inerente, que é o conceito de “livre-arbítrio”, foi inventado para confundir e embaralhar nossos instintos e tornar a desconfiança em relação a eles a segunda natureza do homem!

 

The concept “God” was invented as the opposite of the concept life—everything detrimental, poisonous, and slanderous, and all deadly hostility to life, was bound together in one horrible unite in him. The concepts “beyond” and “true world” were invented in order to depreciate the only world that exists—in order that no goal or aim, no sense or task, might be left to earthly reality. The concepts “soul,” “spirit,” and last of all the concept “immortal soul,” were invented in order to throw contempt on the body, in order to make it sick and “holy,” in order to cultivate an attitude of appalling levity towards all things in life which deserve to be treated seriously, i. e. the questions of nutrition and habitation, of intellectual diet, the treatment of the sick, cleanliness, and weather. Instead of health, we find the “salvation of the soul”— that is to say, folie circulaire fluctuating between convulsions and penitence and the hysteria of redemption. The concept “sin,” together with the torture instrument appertaining to it, which is the concept “free will,” was invented in order to confuse and muddle our instincts, and to render the mistrust of them man’s second nature!

 
 
REFERÊNCIA:
NIETZSCHE, Friedrich. Ecce Homo. Portland, Maine: Smith & Sale, Printers, 1911. p. 59-60. Tradução nossa.