Teresa
Filósofa é um livro “libertino”, publicado em 1748, supostamente de autoria
do marquês d’Argens.
Por
que então eles não são inteiramente inocentes? – disse a Sra. C... – Pois vos
esforçastes em dizer que eles não ferem absolutamente o interesse da sociedade,
que somos levados a isso por uma necessidade tão natural a certos
temperamentos, tão carente de alívio quanto as necessidades da fome e da
sede... Vós me demonstrastes muito bem que agimos somente pela vontade de Deus,
que a natureza não passa de uma palavra vazia de sentido e é somente o efeito,
do qual Deus é a causa. Mas da religião, o que direis? Ela nos proíbe os
prazeres concupiscentes fora do casamento. Será isto ainda uma palavra vazia de
sentido?
O
quê, madame? – respondeu o Abade –, não vos lembrais, portanto, que,
absolutamente, não somos livres, que todas as nossas ações são necessariamente
determinadas? E se não somos livres, como podemos pecar? Mas já que quereis,
entremos seriamente em matéria sobre o capítulo das religiões. Conheço a vossa
discrição, a vossa prudência, e temo tanto menos me explicar quanto protesto
diante de Deus pela boa-fé com que procurei separar a verdade da ilusão. Eis o
resumo de meus trabalhos e de minhas reflexões sobre essa importante matéria.
“Deus
é bom, digo eu. Sua bondade me assegura que, se eu procurar ardorosamente saber
se é um culto verdadeiro que ele exige de mim, ele não me enganará,
evidentemente chegarei a conhecer esse culto, de outra forma Deus seria
injusto. Ele me deu a razão para eu me servir dela. Em que poderia melhor
empregá-la?
“Se
um cristão de boa-fé não quiser examinar a sua religião, por que ele quererá
(assim como o exige) que um maometano de boa-fé examine a sua? Tanto um quanto
outro acreditam que sua religião lhes foi revelada por Deus, um por Jesus
Cristo, o outro por Maomé.
“A
fé somente nos vem porque homens nos disseram que Deus fez a revelação de
certas verdades. Mas, da mesma forma, outros homens o disseram aos sectários
das outras religiões. Em quais acreditar? Para sabê-lo, é preciso portanto
examinar, pois tudo o que nos vem dos homens deve ser submetido à nossa razão.
“Todos
os autores das diversas religiões espalhadas sobre a terra se vangloriaram de
que Deus as tinha revelado para eles. Em quais acreditar? Examinemos qual é a
verdadeira. Mas como tudo é preconceito da infância e da educação, para julgar
de maneira sadia, é preciso sacrificar a Deus qualquer preconceito e, em
seguida, examinar com a luz da razão uma coisa da qual depende a nossa
felicidade ou a nossa desgraça durante nossa vida e durante a eternidade.
“Primeiramente
observo que há quatro partes no mundo, que no máximo a vigésima parte de uma
dessas quatro partes é católica, que todos os habitantes das outras partes
dizem que adoramos um homem, o pão, que multiplicamos a Divindade, que quase
todos os padres se contradisseram em seus escritos, o que prova que não estavam
inspirados por Deus.
“Todas
as mudanças de religião, desde Adão, feitas por Moisés, por Salomão, por Jesus
Cristo e, em seguida pelos padres, demonstram que essas religiões não passam de
obra dos homens. Deus jamais varia! Ele é imutável.
“Deus está em todo lugar. Contudo, a Sagrada Escritura diz que Deus buscou Adão no paraíso terrestre: Adam, ubi es[8], que Deus passeou ali, que falou sobre Jó com o diabo.
“A
razão me diz que Deus não está sujeito a nenhuma paixão. Entretanto, no Gênese,
no capítulo VI, fazem Deus dizer que se arrependeu de ter criado o homem, que a
sua cólera não foi ineficaz. Deus parece tão fraco, na religião cristã, que não
pode reduzir o homem ao ponto que gostaria: ele o pune pela água, em seguida
pelo fogo, o homem continua o mesmo; ele envia profetas, os homens ainda são os
mesmos; ele tem somente um filho único, ele o envia, contudo os homens não
mudam em nada. Quantas coisas ridículas a religião cristã atribui a Deus!
“Todos
estão de acordo que Deus sabe o que deve acontecer durante a eternidade. Mas
Deus – diz-se – somente conhece o resultado de nossas ações depois de ter
previsto que abusaríamos de sua misericórdia e que cometeríamos essas mesmas
ações. Desse conhecimento, todavia, resulta o fato de que Deus, fazendo-nos
nascer, já sabia que estaríamos infalivelmente perdidos e eternamente
infelizes.
“Vemos
na Sagrada Escritura que Deus enviou profetas para avisar os homens e
exortá-los a mudar de conduta. Ora, Deus, que sabe tudo, não ignorava que os
homens não mudariam, absolutamente, de conduta. Portanto a Sagrada Escritura
supõe que Deus é um ser enganador. Podem essas idéias estar de acordo com a
certeza que temos da bondade infinita de Deus?
“Supõe-se
que Deus, que é todo-poderoso, tenha um rival perigoso no diabo que,
incessantemente, mesmo contra a sua vontade, lhe tira três quartos do pequeno
número de homens que ele escolheu, pelos quais seu Filho se sacrificou, sem se
preocupar com o resto do gênero humano. Que lastimáveis absurdos!
“Segundo
a religião cristã, pecamos somente pela tentação. É o diabo – dizem – que nos
tenta. Deus tinha somente que aniquilar o diabo, estaríamos todos salvos: há
muita injustiça ou impotência de sua parte!
“Uma
porção bastante grande dos ministros da religião católica pretende que Deus nos
dá mandamentos, mas sustenta que não poderíamos cumpri-los sem a graça, que
Deus dá a quem lhe agrada e que, contudo, Deus pune aqueles que não os
observam! Que contradição! Que impiedade monstruosa!
“Existe
algo tão miserável quanto dizer que Deus é vingativo, ciumento, irado, quanto
ver que os católicos dirigem as suas preces aos santos, como se esses santos estivessem
em todo lugar assim como Deus, como se esses santos pudessem ler nos corações
dos homens e ouvi-los?
“Que
ridículo dizer que devemos fazer tudo para a maior glória de Deus. Será que a
glória de Deus pode ser aumentada pela imaginação, pelas ações dos homens?
Podem eles aumentar alguma coisa Nele? Ele não se basta a si mesmo?
“Como
homens puderam imaginar que a Divindade achava-se mais honrada, mais
satisfeita, por vê-los comer um arenque e não uma calhandra[9], uma sopa de
cebola e não uma sopa de toucinho, um linguado e não uma perdiz, e que essa
mesma Divindade os condenaria para sempre se em certos dias eles dessem
preferência à sopa de toucinho?
“Fracos
mortais! Acreditais poder ofender a Deus! Acaso poderíeis pelo menos ofender a
um rei, um príncipe, que seriam razoáveis? Eles desprezariam vossa fraqueza e
vossa impotência. Anunciam-vos um Deus vingador e vos dizem que a vingança é um
crime. Que contradição! Asseguram-vos que perdoar uma ofensa é uma virtude e
ousam vos dizer que Deus se vinga de uma ofensa involuntária por uma eternidade
de suplícios!
“Se
existe um Deus, há um culto. Contudo, antes da criação do mundo, devemos
convir, havia um Deus e nenhum culto.
Aliás,
desde a criação, existem animais que não prestam nenhum culto a Deus. Se não
existisse nenhum homem, sempre haveria um Deus, criaturas e nenhum culto. A
mania dos homens é a de julgar ações de Deus por aquelas que lhes são próprias.
“A
religião cristã dá uma falsa idéia de Deus, pois a justiça humana, segundo ela,
é uma emanação da justiça divina.
Ora,
segundo a justiça humana, somente poderíamos censurar as ações de Deus para com
seu Filho, para com Adão, para com os povos a quem nunca se fez pregações, para
com as crianças que morrem antes do batismo.
“Segundo
a religião cristã, é preciso tender para a maior perfeição. O estado de
virgindade, segundo ela, é mais perfeito do que o do casamento. Ora, é evidente
que a perfeição da religião cristã tende à destruição do gênero humano. Se os
esforços, os discursos dos padres tivessem sucesso, em sessenta ou oitenta anos
o gênero humano estaria destruído. Pode essa religião ser de Deus?
“Existe
algo de mais absurdo do que mandar padres, monges, outras pessoas orarem por
si? Julga-se Deus como se julgam reis.
“Que
excesso de loucura acreditar que Deus nos fez nascer para somente fazermos o
que é contranatural, o que pode nos tornar infelizes nesse mundo, exigindo que
recusássemos tudo o que satisfaz os sentidos, os apetites que ele nos deu! O
que mais poderia fazer um tirano obstinado em nos perseguir desde o instante do
nascimento até o da nossa morte?
“Para
ser perfeito cristão é preciso ser ignorante, acreditar cegamente, renunciar a
todos os prazeres, às honras, às riquezas, abandonar os seus pais, os seus
amigos, guardar a sua virgindade, numa palavra, fazer tudo o que é contrário à
natureza. Contudo, essa natureza, com certeza, opera somente pela vontade de
Deus. Que contradição a religião supõe num ser infinitamente justo e bom!
“Uma
vez que Deus é o criador e o senhor de todas as coisas, devemos utilizá-las com
a finalidade para a qual Ele as criou e nos servirmos delas segundo o fim que
Ele se propôs ao criá-las. Tanto que, pela razão, pelos sentimentos interiores
que Ele nos deu, podemos conhecer seus desígnios e os seus objetivos e
conciliá-los com o interesse da sociedade estabelecida entre os homens no país
que habitamos.
“O
homem não é feito para ser ocioso: é preciso que ele se ocupe com alguma coisa
que tenha por fim o seu próprio benefício, conciliado com o bem geral. Deus não
quis somente a felicidade de alguns em particular, Ele quer a felicidade de
todos. Portanto devemos nos prestar mutuamente todos os serviços possíveis,
contanto que esses serviços não destruam algumas ramificações da sociedade
estabelecida: é este último ponto que deve dirigir as nossas ações.
Conservando-o, no que fazemos, em nosso estado, cumprimos todos os nossos
deveres. O resto não passa de quimera, ilusão, preconceitos.
ORIGEM
DAS RELIGIÕES
“Todas
as religiões, sem nenhuma exceção, são obra dos homens. Não existe uma que não
tenha tido os seus mártires, os seus pretensos milagres. O que provam a mais os
nossos, a mais do que os das outras religiões?
“As
religiões, inicialmente, foram estabelecidas pelo temor: o trovão, os
temporais, os ventos, o granizo, destruíam os frutos, as sementes que
alimentavam os primeiros homens espalhados na superfície da terra. A sua
impotência em evitar esses acontecimentos obrigou-os a recorrer às preces para
o que eles reconheciam ser mais poderoso do que eles e que acreditavam estar
disposto a atormentá-los. Como conseqüência, homens ambiciosos, grandes gênios,
políticos importantes, nascidos em séculos diferentes, em diversas regiões,
tiraram partido da credulidade dos povos, anunciaram deuses, em geral
estranhos, fantasiosos, tiranos, estabeleceram cultos, começaram a formar
sociedades das quais pudessem se tornar os chefes, os legisladores. Eles
reconheceram que, para manter essas sociedades, era necessário que cada um dos
seus membros, em geral, sacrificasse as suas paixões, os seus prazeres
particulares para a felicidade dos outros. Daí a necessidade de fazer
considerar um equivalente de recompensas a serem esperadas e penas a serem
temidas que determinassem a execução desses sacrifícios. Portanto, esses
políticos imaginaram as religiões. Todas prometem recompensas e anunciam penas
que levam uma grande parte dos homens a resistir à inclinação natural que têm
de se apropriarem do bem, da mulher, da filha de outrem, de se vingarem,
falarem mal, manchar a reputação do seu próximo a fim de tornar a sua mais
proeminente.”
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