Por
Laurentino Gomes
Proclamada a República, uma das primeiras providências do novo regime foi redesenhar parte
da geografia brasileira. Estradas, ruas, praças, escolas, repartições públicas
e até cidades inteiras tiveram suas denominações alteradas para homenagear os
heróis republicanos. Estátuas, obeliscos, chafarizes e outros monumentos foram
construídos em ritmo frenético para celebrar o acontecimento. No Rio de
Janeiro, ao todo 46 logradouros mudaram de nome. As ruas da Constituição e do
Imperador passaram a ser chamadas oficialmente como do Governo Provisório e do
Exército Libertador. A praça Dom Pedro II, o largo da Imperatriz e a rua da
Princesa tornaram-se, respectivamente, praça do Marechal Deodoro, praça Quintino
Bocaiúva e rua Rui Barbosa. Até mesmo vias de nomes singelos e poéticos, tão
peculiares na época da colonização portuguesa, foram vítimas da síndrome
rebatizatória do governo. A rua da Misericórdia virou rua do Batalhão
Acadêmico. O Beco das Cancelas foi reclassificado como travessa e passou a
ostentar o nome do dr. Vicente de Sousa, um dos líderes civis da revolução hoje
menos lembrado.
Iniciativas
semelhantes foram adotadas na maioria das cidades, que ainda hoje exibem no seu
mapa os nomes de personalidades republicanas, como Floriano Peixoto, Silva
Jardim e Benjamin Constant. [...]
O
objetivo dessas medidas não era apenas exaltar a República. Tratava-se,
principalmente, de eliminar o mais rapidamente da paisagem os vestígios da
Monarquia. [...]
O
esforço incluiu ainda a criação de datas cívicas, a mudança da bandeira, uma
tentativa fracassada de alterar o próprio hino nacional e até a adoção de novo
tratamento dispensado às autoridades. Por lei, “Saúde e Fraternidade”, divisa
emprestada da maçonaria e usada na Revolução Francesa, converteu-se em saudação
obrigatória no Brasil republicano. Na correspondência oficial adotou-se o
tratamento de “Cidadão” em lugar do mais cerimonioso “Vossa Excelência” dos
tempos do Império. Assim, ofícios e despachos do governo passaram a trazer
expressões como “Cidadão Presidente”, “Cidadão Ministro” e “Cidadão General”.
Ao
mudar o protocolo oficial, erguer monumentos, criar datas cívicas e rebatizar
ruas, praças e instituições com os nomes de novos heróis nacionais, o regime
procurava, na verdade, conquistar corações e mentes dos brasileiros até então
arredios ou apáticos diante da Proclamação da República. No fundo, buscava-se
dar uma nova identidade ao país, descolada de seu passado monárquico, projeto
que acabaria por alterar o próprio ensino de história do Brasil e teria grande
impacto nos livros didáticos, no jornalismo, na literatura, no teatro, na
pintura e em outras formas de arte. “Heróis são símbolos poderosos, encarnações
de ideias e aspirações, pontos de referência, fulcros de identificação”,
escreveu o mineiro José Murilo de Carvalho, autor de A formação das almas,
excelente estudo sobre a construção do imaginário republicano no Brasil. “São,
por isso, instrumentos eficazes para atingir a cabeça e o coração dos cidadãos
a serviço da legitimação de regimes políticos.”2
Um
caso de particular interesse, analisado em profundidade por José Murilo de
Carvalho, envolve a figura de Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes. Até a
Proclamação da República, o mártir da Inconfidência Mineira ocupava um papel
dúbio e secundário na galeria dos heróis nacionais. Embora fosse um precursor
do movimento pela Independência, esse papel o colocava na condição de
concorrente de um herói mais ao gosto da Monarquia, o imperador Pedro I,
protagonista do Grito do Ipiranga em 1822. Além disso, participara de uma
conspiração republicana contra a Monarquia portuguesa, da qual o Império
brasileiro havia herdado suas raízes e principais características. Sua sentença
de morte na forca, em 1792, fora assinada por ninguém menos que a bisavó do
imperador Pedro II, a rainha dona Maria I, também conhecida como “a rainha
louca”.
Por
essas razões, Tiradentes havia passado quase um século em relativa obscuridade
na história oficial brasileira. Com exceção de iniciativas isoladas, ninguém no
Brasil imperial tinha muito interesse em promovê-lo a símbolo das aspirações
nacionais. A partir de 1889, ele renasceu das cinzas na condição de herói
republicano. Nos anos seguintes, sua imagem seria usada de forma habilidosa
para promover o novo regime. A primeira comemoração oficial do seu martírio
aconteceu no Rio de Janeiro no dia 21 de abril de 1890, cumprindo-se um decreto
que transformava a data em feriado nacional junto com o Quinze de Novembro. Os
artistas contribuíram para o sucesso da construção do novo mito associando a
iconografia de Tiradentes à de Jesus Cristo — apelo poderoso em um país de
forte tradição católica. Em quadros e reproduções da época, o mártir da
Inconfidência aparece de barbas e cabelos compridos, ar sereno, vestindo uma
túnica branca, sob a estrutura da forca que lembra a cruz no Calvário. Desfiles
comemorativos da Inconfidência remetiam à encenação da Via-Sacra, na
Sexta-Feira da Paixão. Um artigo publicado no jornal O Paiz em 21 de
abril de 1891 se referia à “vaporosa e diáfana figura do mártir da
Inconfidência, pálida e aureolada, serena e doce como a de Jesus Nazareno”.3
Observação do blog:
O feriado de Tiradentes (dia 21 de abril; 21 de
Arquimedes, segundo o calendário positivista) foi instituído no calendário
oficial republicano por indicação do Demétrio Ribeiro, ministro da Agricultura e
membro da Igreja Positivista do Brasil, com o texto da proposta do decreto
elaborado por essa instituição.
Para a ocasião, Décio Villares, pintor oficial da
Igreja Positivista do Brasil, criou um semblante em evidente referência à
imagem de Cristo. Executado em litografia, ele foi distribuído à população
presente na celebração.
O projeto positivista de construção de uma nação laica
e de uma religião civil fracassou e teve que ceder ao apelo do sentimento
religioso católico. Dentre as razões do insucesso, os positivistas eram contrários à
obrigatoriedade do ensino e não implementaram uma ação educadora dos valores
cívicos às crianças, ao passo que as famílias brasileiras eram predominantemente
católicas. Todavia, o próprio Rousseau, criador da religião civil, já defendia a
educação cívica estatal para a estruturação e manutenção do Estado.
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