segunda-feira, 24 de abril de 2023

O MALOGRADO NOVO CRISTO DOS REPUBLICANOS

 


 

Por Laurentino Gomes

 

Proclamada a República, uma das primeiras providências do novo regime foi redesenhar parte da geografia brasileira. Estradas, ruas, praças, escolas, repartições públicas e até cidades inteiras tiveram suas denominações alteradas para homenagear os heróis republicanos. Estátuas, obeliscos, chafarizes e outros monumentos foram construídos em ritmo frenético para celebrar o acontecimento. No Rio de Janeiro, ao todo 46 logradouros mudaram de nome. As ruas da Constituição e do Imperador passaram a ser chamadas oficialmente como do Governo Provisório e do Exército Libertador. A praça Dom Pedro II, o largo da Imperatriz e a rua da Princesa tornaram-se, respectivamente, praça do Marechal Deodoro, praça Quintino Bocaiúva e rua Rui Barbosa. Até mesmo vias de nomes singelos e poéticos, tão peculiares na época da colonização portuguesa, foram vítimas da síndrome rebatizatória do governo. A rua da Misericórdia virou rua do Batalhão Acadêmico. O Beco das Cancelas foi reclassificado como travessa e passou a ostentar o nome do dr. Vicente de Sousa, um dos líderes civis da revolução hoje menos lembrado.

Iniciativas semelhantes foram adotadas na maioria das cidades, que ainda hoje exibem no seu mapa os nomes de personalidades republicanas, como Floriano Peixoto, Silva Jardim e Benjamin Constant. [...]

O objetivo dessas medidas não era apenas exaltar a República. Tratava-se, principalmente, de eliminar o mais rapidamente da paisagem os vestígios da Monarquia. [...]

O esforço incluiu ainda a criação de datas cívicas, a mudança da bandeira, uma tentativa fracassada de alterar o próprio hino nacional e até a adoção de novo tratamento dispensado às autoridades. Por lei, “Saúde e Fraternidade”, divisa emprestada da maçonaria e usada na Revolução Francesa, converteu-se em saudação obrigatória no Brasil republicano. Na correspondência oficial adotou-se o tratamento de “Cidadão” em lugar do mais cerimonioso “Vossa Excelência” dos tempos do Império. Assim, ofícios e despachos do governo passaram a trazer expressões como “Cidadão Presidente”, “Cidadão Ministro” e “Cidadão General”.

Ao mudar o protocolo oficial, erguer monumentos, criar datas cívicas e rebatizar ruas, praças e instituições com os nomes de novos heróis nacionais, o regime procurava, na verdade, conquistar corações e mentes dos brasileiros até então arredios ou apáticos diante da Proclamação da República. No fundo, buscava-se dar uma nova identidade ao país, descolada de seu passado monárquico, projeto que acabaria por alterar o próprio ensino de história do Brasil e teria grande impacto nos livros didáticos, no jornalismo, na literatura, no teatro, na pintura e em outras formas de arte. “Heróis são símbolos poderosos, encarnações de ideias e aspirações, pontos de referência, fulcros de identificação”, escreveu o mineiro José Murilo de Carvalho, autor de A formação das almas, excelente estudo sobre a construção do imaginário republicano no Brasil. “São, por isso, instrumentos eficazes para atingir a cabeça e o coração dos cidadãos a serviço da legitimação de regimes políticos.”2

Um caso de particular interesse, analisado em profundidade por José Murilo de Carvalho, envolve a figura de Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes. Até a Proclamação da República, o mártir da Inconfidência Mineira ocupava um papel dúbio e secundário na galeria dos heróis nacionais. Embora fosse um precursor do movimento pela Independência, esse papel o colocava na condição de concorrente de um herói mais ao gosto da Monarquia, o imperador Pedro I, protagonista do Grito do Ipiranga em 1822. Além disso, participara de uma conspiração republicana contra a Monarquia portuguesa, da qual o Império brasileiro havia herdado suas raízes e principais características. Sua sentença de morte na forca, em 1792, fora assinada por ninguém menos que a bisavó do imperador Pedro II, a rainha dona Maria I, também conhecida como “a rainha louca”.

Por essas razões, Tiradentes havia passado quase um século em relativa obscuridade na história oficial brasileira. Com exceção de iniciativas isoladas, ninguém no Brasil imperial tinha muito interesse em promovê-lo a símbolo das aspirações nacionais. A partir de 1889, ele renasceu das cinzas na condição de herói republicano. Nos anos seguintes, sua imagem seria usada de forma habilidosa para promover o novo regime. A primeira comemoração oficial do seu martírio aconteceu no Rio de Janeiro no dia 21 de abril de 1890, cumprindo-se um decreto que transformava a data em feriado nacional junto com o Quinze de Novembro. Os artistas contribuíram para o sucesso da construção do novo mito associando a iconografia de Tiradentes à de Jesus Cristo — apelo poderoso em um país de forte tradição católica. Em quadros e reproduções da época, o mártir da Inconfidência aparece de barbas e cabelos compridos, ar sereno, vestindo uma túnica branca, sob a estrutura da forca que lembra a cruz no Calvário. Desfiles comemorativos da Inconfidência remetiam à encenação da Via-Sacra, na Sexta-Feira da Paixão. Um artigo publicado no jornal O Paiz em 21 de abril de 1891 se referia à “vaporosa e diáfana figura do mártir da Inconfidência, pálida e aureolada, serena e doce como  a de Jesus Nazareno”.3

 

NOTAS:
2 – José Murilo de Carvalho, A formação das almas, p. 55.
3 – Ibidem, p. 55-73.

 

REFERÊNCIA:
GOMES, Laurentino. 1889: como um imperador cansado, um marechal vaidoso e um professor injustiçado contribuíram para o fim da monarquia e a proclamação da República no Brasil. 1. ed. São Paulo: Globo, 2013. p. 315-318. Trechos selecionados.
 

Observação do blog:

O feriado de Tiradentes (dia 21 de abril; 21 de Arquimedes, segundo o calendário positivista) foi instituído no calendário oficial republicano por indicação do Demétrio Ribeiro, ministro da Agricultura e membro da Igreja Positivista do Brasil, com o texto da proposta do decreto elaborado por essa instituição.

Para a ocasião, Décio Villares, pintor oficial da Igreja Positivista do Brasil, criou um semblante em evidente referência à imagem de Cristo. Executado em litografia, ele foi distribuído à população presente na celebração.

O projeto positivista de construção de uma nação laica e de uma religião civil fracassou e teve que ceder ao apelo do sentimento religioso católico. Dentre as razões do insucesso, os positivistas eram contrários à obrigatoriedade do ensino e não implementaram uma ação educadora dos valores cívicos às crianças, ao passo que as famílias brasileiras eram predominantemente católicas. Todavia, o próprio Rousseau, criador da religião civil, já defendia a educação cívica estatal para a estruturação e manutenção do Estado.

 
REFERÊNCIAS:
KLEIN, Joel Thiago. Considerações críticas acerca da educação cívica na filosofia política de Rousseau. In: Dissertatio [41]. p. 249-291, inverno de 2015.
 
MARTINS, Gabriela Pereira. A sacralização da república. In: CSOnline – Revista Eletrônica de Ciências Sociais, ano 4, ed. 11. p. 101-115. set./dez. 2010.
 
TEMPLO DA HUMANIDADE. O rosto de Tiradentes. Disponível em: http://templodahumanidade.org.br/o-rosto-de-tiradentes/. Acesso em: 21 abr. 2023.

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